O direito à terra e a criminalização dos movimentos sociais
Artigo assinado por Israel Souza e Evelyn Thaís*
Assegurado pela Constituição Federal de 1988, o direito à moradia é uma responsabilidade comum da União, dos estados e dos municípios. A eles, conforme aponta o texto constitucional, cabe promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico para a população.
Em agosto de 2023, em Rio Branco (capital acreana), mais de 100 moradias que se encontravam em situação irregular foram demolidas, e os moradores foram retirados violentamente do local. Tal situação se deu na ocupação Terra Prometida.
Sob as ordens do governador Gladson Cameli, a força policial foi responsável por despejar mulheres, idosos e crianças. A ação contou com spray de pimenta e máquinas para demolir as humildes moradias, servindo como um reflexo da política do atual governo.
Além da violência em si, algo chama a atenção no episódio. Trata-se do fato de que invasão de terra não é uma prática estranha aos Cameli. Na década de 1980, empresas madeireiras dos Cameli causaram profundos danos ambientais e culturais ao povo Ashaninka do Rio Amônia, para explorar madeiras nobres, principalmente cedro e mogno, ilegalmente.
E mais. Em 1996, o MPF entrou com uma ação civil pública contra o empresário Orleir Messias Cameli e outras três pessoas – que acabaram condenados em primeira instância a indenizar a comunidade indígena Ashaninka-Kampa, no Acre, e a sociedade como um todo por desmatamento ilegal em suas terras. O crime ocorreu em três períodos, 1981, 1983 e 1985. Nessas ocasiões centenas de árvores foram derrubadas na terra indígena.
Segundo dados do processo, foi feito o corte ilegal de árvores com mais de 50 anos. Estima-se que cada árvore derrubada danifica aproximadamente 1,5 mil metros quadrados de floresta. Além disso, a prática causa assoreamento e fuga de animais. “Além do fato que a derrubada de gigantes da floresta mata, pelo esmagamento, inúmeras árvores menores, expõe o solo aos raios do sol, soterram igarapés e nascentes”, ressalta um trecho do referido documento.
Registre-se que, por lei, as terras indígenas são unidades protegidas, e apenas os indígenas podem caçar, pescar ou retirar madeiras para suas necessidades, já que fazem isso de acordo com seu tradicional modo de vida, gerando bem menos impactos.
Em 2020, a empresa de Cameli foi condenada pela Procuradoria Geral da República a pagar uma indenização no valor de R$ 20 milhões no caso Ashaninka do rio Amônia. Os apontados no processo tiveram que reconhecer publicamente a dimensão de todos os danos causados aos povos indígenas.
O local onde se encontrava a ocupação Terra Prometida recebeu mais moradores depois da campanha de Gladson, que se aproveitou da vulnerabilidade econômica e falta de acesso à moradia das famílias, prometendo posse de terras ocupadas por elas no intuito de persuadir estas famílias a apoiarem sua campanha e garantir seu voto. Mesmo sabendo da impossibilidade de cumprir a promessa eleitoreira, o governador usou de mentiras e promessas falsas para enganar as famílias.
Dias após a expulsão, em entrevista ao G1, um dos moradores despejados declarou: “O que mais a gente quer é realizar nosso sonho de ter uma casinha própria para ficarmos tranquilos. Desde sexta-feira (11/08/2023) que estamos sem dormir, eram drones rondando, um alvoroço. Nem dormi mais, até hoje ainda estou abalado, estou cansado de tudo”.
Histórias como essa são resultado da imprudência – ou seria da má-fé? – do governador, que não tem programa habitacional algum para essas pessoas, muito menos para o restante do Acre, uma vez que parcela considerável da população vive em situação de risco, em lugares onde não há nem saneamento básico.
Além do descaso sofrido por essas pessoas que não têm seu direito básico à moradia assegurado pelo Estado, elas ainda são tratadas como delinquentes, considerando o método de força policial utilizado quando houve resistência ao ato de restauração de posse. Essa ação não se difere da política de criminalização dos movimentos sociais, uma vez que foi utilizado força desproporcional contra a população com o único propósito de amedrontar qualquer tentativa de organização coletiva.
O caso Terra Prometida ocorre coincidentemente paralelo ao fim da CPI do MST, uma comissão perigosa e de percepção política antidemocrática, uma vez que criminaliza movimentos sociais que atuam na busca de um direito básico de todo e qualquer cidadão. Essa tentativa é uma estratégia para omitir as reais mazelas do campo brasileiro: crescente desmatamento, grilagem de terra, queimadas, violência no campo, uso da mão de obra análoga à escravidão, destruição e contaminação de bens naturais pelo uso de agrotóxicos.
Se a atuação dos movimentos sociais fosse tratada do mesmo modo como é tratada a atuação dos abastados, a exemplo dos Cameli, a situação era bem outra por estas terras. Ou os movimentos sociais seriam tratados com dignidade e respeito ou os abastados seriam tratados na ponta do coturno e com spray de pimenta nos olhos. Assim, sem dois pesos e duas medidas, estaria, enfim, estabelecida a justiça.
Até que isto se dê, porém, a Justiça tratará a uns como criminosos (ainda que necessitados da ajuda do Estado, e não de sua violência) e a outros como nobres senhores e senhoras (ainda que cometendo crimes com o fito de enriquecer ainda mais). E a verdade é que nosso estado jamais estará em dia com a democracia enquanto for comandado por coronéis, quer sejam velhos e carrancudos, quer sejam jovens e sorridentes.
Israel Souza é Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
Evelyn Thaís é Estudante do curso técnico em Meio Ambiente no Instituto Federal do Acre campus Cruzeiro do Sul