A MORTE DO RIO ACRE

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Ciência aponta que manancial pode “desaparecer” num futuro não distante

Após atingir a segunda maior alagação da história em março, rio Acre alcançou volume mais crítico de vazante, com 1,23m (Foto: Alexandre Cruz Noronha)




Dos varadouros de Rio Branco

O ano de 2024 já está caracterizado como um dos mais críticos para os efeitos das mudanças climáticas na região amazônica. Nos últimos meses, por exemplo, o rio Acre alcançou dois extremos (de cheia e de vazante) num intervalo de tempo muito curto na capital acreana. Em seis de março, o manancial teve a segunda maior alagação da história, quando seu nível alcançou 17,88m. No dia 21 de setembro, um novo recorde, agora de seca: 1,23m. (o anterior era 1,25m, de 5 de outubro de 2022) O volume mais baixo de vazante. Estas oscilações extremas, infelizmente, passaram a ser comuns ao longo dos últimos anos – e tendem a se intensificar daqui para a frente.

Em agosto de 2016, o pesquisador Evandro Ferreira, coordenador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em seu núcleo no Acre, publicou artigo no jornal A Gazeta analisando a possível “morte do rio Acre”. Oito anos atrás, a ciência já dava seus alertas sobre o colapso do rio num futuro não muito distante, conforme estamos a vivenciar agora neste verão de 2024. O artigo de Evandro Ferreira foi republicado no livro Acre Visto e Revisto, escrito em parceria com o paleontólogo Alceu Ranzi.

A pedido do Varadouro, Evandro Ferreira fez algumas atualizações de dados daquele artigo que previa a morte do nosso rio. Um artigo que permanece tão atual quanto aquele 2016, e mostra que, de lá pra cá, pouco ou nada foi feito para amenizar os impactos das ações do homem sobre o rio responsável por fornecer água para 60% da população acreana.

Leia artigo:

Quando o rio Acre irá secar durante o verão amazônico?

Evandro Ferreira*

Em dezembro de 2014 publicamos um artigo no jornal A Gazeta no qual questionávamos se a “morte” do rio Acre era inexorável. Dez anos depois estamos a testemunhar uma seca inédita do nosso rio que, infelizmente, corrobora o que havíamos comentado naquele artigo. Este texto é uma versão atualizada do referido artigo, com dados gentilmente repassados pelo Dr. Foster Brown (Woods Hole Research Center/Parque Zoobotânico da UFAC).

A ameaça de escassez de água potável no planeta é uma realidade em muitas regiões, especialmente as mais áridas ou sujeitas a graves desequilíbrios ambientais. Falar que tal cenário se materializará na Amazônia, com uma rede hidrográfica que abriga a maior reserva de água doce do planeta, soa surreal.

Entretanto, a rápida ocupação da mesma a partir dos anos 70 resultou na destruição de aproximadamente 20% de sua cobertura florestal e tornou factível a ameaça de escassez de água em algumas partes desta região nos próximos anos. Essa situação tem como agravante as mudanças climáticas em curso que tem causado eventos climáticos extremos, como a seca severa que vivenciamos atualmente no Acre.

E a região leste do Acre poderá ser uma das primeiras na Amazônia a ter que conviver com limitações hídricas se a degradação de seus remanescentes florestais e da sua rede hidrográfica não for controlada. Dos 24,6 mil km’ desmatados no Acre (cerca de 15% de seu território), cerca de 17,2 mil km2 ocorreram nesta região. Apesar do leste do Acre equivaler a apenas 22,5% do território acreano, ele concentra cerca de 70% do desmatamento registrado em todo o Estado.

A principal ameaça de crise hídrica no leste do Acre reside no rio Acre, que drena cerca de 90% da região (a outra bacia é a do rio Abunã) e abriga em sua área de influência cerca de 500 mil pessoas, aproximadamente 60% da população do Estado. Esta região é também a mais importante economicamente, representando cerca de 70% do produto interno bruto estadual.

Uma grave crise hídrica terá, portanto, sérias consequências socioeconômicas para todo o Acre e, possivelmente, para a região sul-ocidental da Amazônia. Um estudo realizado por Piontekowski e outros (2011) mostrou que dos 11,5 mil hectares das Áreas de Proteção Permanente (APP ou mata ciliar) do rio Acre em território acreano, cerca de 3,7 mil (+32%) tinham sido destruídas.

Em cinco dos oito municípios acreanos banhados pelo rio Acre, a taxa de destruição da APP ultrapassa 30%. Epitaciolândia e Rio Branco eliminaram, respectivamente, 57% e 43% da APP. Em regiões de planícies sedimentares recentes, como o leste do Acre, a conservação das APPs é estratégica para a sobrevivência de rios que as drenam.

Rios em planícies sedimentares são meândricos, tem curvas acentuadas em razão da erosão de suas margens pela ação da água, e mudam de curso com frequência, formando lagos em formato de meia lua ou ferradura. A existência de APPs ao longo desses rios ajuda a diminuir a erosão de suas margens e serve como barreira para o escoamento de sedimentos (argila, areia, pedregulhos) para seus leitos, evitando o seu assoreamento (ou aterramento).

Em rios assoreados, como parece ser o caso do rio Acre, os alagamentos são frequentes por ocasião de chuvas intensas. O rio Acre sofre de problemas decorrentes não apenas da destruição de sua mata ciliar, mas também do intenso desmatamento acontecido na área que ele drena na região leste do Acre. A tabela que ilustra esse artigo reflete bem a influência dessas ações humanas.


Entre as décadas de 70 (1971-1980) e 80 (1981-1990), o valor médio das cotas mínimas do rio Acre diminuiu apenas 2%. Esse valor, entretanto, caiu 16% entre a década de 80 e a de 90 (1991-2000), quando o desmatamento e a ocupação econômica da região leste do Acre se intensificaram. Entre a década de 90 e os anos 2000 (2001-2010) a diminuição da cota mínima chegou a 20%, um valor impressionante.

Um dado interessante é a amplitude das cotas mínimas em cada década: 67 cm entre 1971-1980, 85 cm entre 1981-1990, 97 cm entre 1991-2000 e 85 cm entre 2001-2010.

Em 2011, um ano climaticamente normal, a cota mínima do rio Acre atingiu 1,5 m em setembro, no final do período seco. Em julho de 2016, no início do verão amazônico, a cota mínima atingiu um nível abaixo de 1,5 m pela primeira vez na história.

A figura que ilustrou o artigo publicado em 2016 nos fazia questionar se a tendência de baixa no valor da cota mínima do rio Acre continuaria com a mesma intensidade nos próximos anos.

Isso, infelizmente, se confirmou de forma dramática. Em setembro de 2022, ano climaticmente normal, a cota atingiu 1,25 m. E agora em setembro de 2024, no auge de uma das mais severas secas na região, ela atingiu 1,23 m.

O agravamento da situação sugere que, ao contrário do que estimávamos 10 anos atrás, a “cota mínima média” do rio Acre ficou abaixo de 1,65 m por volta de 2020.

Nesse caso, ao longo da década atual, se a amplitude entre as cotas mínimas do rio Acre (diferença entre a maior e a menor cota mínima registrada em um período seco) ficar em cerca de 60 cm isso significará que testemunharemos nosso rio chegar a uma cota mínima de menos de um metro. Um desastre!

Se na próxima década (a partir de 2030) o ritmo de diminuição da cota mínima média do rio Acre se mantiver, ela poderá atingir, com regularidade, menos de 40 cm.

E se o cenário mais pessimista prevalecer (secas severas como a de 2024), é quase certo que algum dia entre os anos de 2031-2040, no auge do verão amazônico, o leito do rio Acre fique completamente seco no trecho que ele corta a cidade de Rio Branco.

Soa um futuro distante? Nem tanto. São apenas 16 anos. Nossos filhos, incluindo os adolescentes e aqueles que estão concluindo a faculdade hoje, e que tem vivo na memória o rio Acre com águas correntes no verão amazônico, poderão ser testemunhas desse desastre. Será esse o nosso legado para as futuras gerações?

Se isso acontecer, como você – então um idoso que deveria ser visto como um sábio – se justificaria para os jovens do futuro que não foi cúmplice desse desastre?

JORNAL A GAZETA
2/8/2016


* Evandro Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), baseado no Núcleo de Pesquisas do INPA no Acre desde 1988, e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Florestais na Universidade Federal do Acre. Possui Mestrado (1997) e Doutorado (2001) em sistemática de palmeiras, obtidos no The New York Botanical Garden e The City University of New York (USA).

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