Extrativistas sem reserva

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Quase 160 famílias podem ser desafetadas da Resex da Mata Grande, no Maranhão

A Resex Mata Grande abriga florestas de babaçu que são a principal fonte de renda para a comunidade. (Foto: Leonardo Milano)




A comunidade pede urgência da regulação fundiária da área e denuncia o desmatamento de matas nativas de babaçu; omissões do poder público, em especial do ICMBio, no processo de desapropriação agora deixa a comunidade tradicional de quebradeiras de babaçu em situação vulnerável.




Mayala Fernandes
colaboração para Varadouro


A Reserva Extrativista (Resex) Mata Grande, com área de aproximadamente 10.450 hectares, localizada nos municípios de Senador La Roque e Davinópolis, no Maranhão, é a primeira unidade de conservação cuja desafetação foi determinada via judicial. A desafetação de uma área, trata-se da manifestação de vontade do Poder Público mediante a qual um bem é subtraído do domínio público para ser incorporado ao domínio privado do Estado ou do particular.

A Resex foi criada através do Decreto Presidencial nº 532, de 20 de maio de 1992, à época da Rio92. Inicialmente, a unidade se destinaria a beneficiar cerca de 500 famílias que tinham na coleta de frutos e das Matas de Babaçu suas principais atividades produtivas. A sua criação visava garantir a preservação dos babaçuais e assegurar o acesso sustentável a esses recursos pelas comunidades locais.

Contudo, apesar de ter sido criada por decreto presidencial há 31 anos, até hoje sua área não foi regularizada do ponto de vista fundiário e continua sendo ocupada por propriedades particulares e por áreas posses que acabaram se multiplicando com o tempo, dificultando ainda mais o processo de regularização.

A Associação de Moradores da Vila Davi, que representa os proprietários e posseiros das terras que formam a reserva extrativista, entrou com uma Ação Civil contra o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e, a partir dessa ação civil, foi determinada via judicial a caducidade do decreto presidencial que criou a Resex Mata Grande.

Os desdobramentos, na esfera judicial, dessas ações em desfavor da Resex, visando a desafetação da unidade, têm resultados preocupantes e que requerem medidas do Poder Público. Sendo assim, a Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Extrativistas da Resex Mata Grande (Atramag) procurou apoio de organizações e encaminharam uma carta solicitando medidas urgentes à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Na carta, a comunidade pede urgência na regularização fundiária do território e renovação do Decreto Presidencial nº 532, de maio de 1992. Além disso, também denuncia o desmatamento de florestas e matas nativas de babaçu e atos lesivos ao patrimônio cultural imaterial do país, em desfavor do modo de criar, de fazer e de viver das populações extrativistas, beneficiárias da Resex.

“Não é possível que depois de 31 anos a Resex Mata Grande ainda não tenha rosto. Por essa morosidade do governo é que sofremos todos os tipos de constrangimento e violência verbal e ameaças. Não podemos acessar o babaçu nestas áreas porque quem se diz dono da terra não permite a coleta do babaçu, estamos perdendo nossa cultura e parte do nosso alimento”, afirma um trecho da carta endereçada à ministra.

A desafetação judicial

Na época, o decreto determinou que o poder público deveria realizar as necessárias desapropriações da área dos proprietários e posseiros existentes dentro daquele perímetro. Porém, apenas em 2012 a Resex Mata Grande encerrou a primeira etapa do trabalho de vistoria das fazendas no interior da unidade, que deveriam ter sido indenizadas para que fosse feito o processo de regularização fundiária.

Contudo, os autores da ação desfavorável à existência da Resex Mata Grande alegam que, desde a declaração de utilidade pública da área, até a presente data, não houve, nem por parte do Ibama, nem tão pouco pelo ICMBio, ações de desapropriação judicial ou tentativa de acordo extrajudicial amigável.

“É lamentável que se chegue a tal ponto, lembro que da época da criação eram 8 proprietários, hoje triplicou o número de proprietários provocando a maior descaracterização da Resex, derrubando todos os babaçuais” , cita a carta da Atramag à ministra Marina Silva “Os proprietários estão se utilizando da caducidade do decreto para continuarem a destruir os babaçuais e a flora em geral”, completa.

A sentença desfavorável à Resex, e às 158 famílias que são beneficiárias atualmente, se deu no âmbito de debate do qual também participou o Ministério Público Federal (MPF), tendo sido instaurados dois inquéritos civis e uma ação civil pública, dois deles foram apensados à ação movida pela Associação de Moradores da Vila Davi contra o Ibama e o ICMBio.

O MPF entrou com recurso especial para julgar improcedente os pedidos dos autores. A declaração de caducidade do decreto presidencial entra em confronto com o artigo 22 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), a Lei 9.985/2000 diz: “§ 7º A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.”.

O recurso especial do MPF não foi admitido, assim como o agravo interposto pelo ICMBio. Diante desse cenário, a situação da Resex Mata Grande foi arquivada com a seguinte situação determinada pela Justiça: “o decreto de criação da Resex Mata Grande ‘caducou’, não estabelece relações jurídicas. O ICMBio foi condenado a se abster de qualquer prática que promova a proibição ou restrição do direito de propriedade no território da reserva”.

“Sequer foram mensurados, ou foi definido como serão compensados os impactos e os danos morais coletivos e difusos causados em desfavor das 158 famílias tradicionais extrativistas que viram frustrada a implantação da reserva [até a presente data] e serão as maiores prejudicadas pela sua desafetação, que decorre da morosidade, ineficácia e ineficiência do poder público em implementar a política pública”, destaca Pedro Salles, presidente da Sociedade Brasileira de Engenheiros Florestais (SBEF), que acompanha a comunidade.

Comunidade vulnerável e babaçu em risco

As quebradeiras de coco babaçu da Resex Mata Grande têm dificuldade de acesso aos babaçuais. (Foto: Leonardo Milano)



A Reserva Extrativista Mata Grande, no Maranhão, foi uma das primeiras criadas no Brasil. Sua concepção foi resultado de anos de luta, culminando na aprovação da Lei nº 7.734, de 1996, conhecida como a Lei do Babaçu Livre. A iniciativa atendeu a uma demanda legítima das quebradeiras de coco babaçu e suas famílias, residentes nos povoados Água Viva, Alto dos Maurícias, Cajá-branca, Cumaru, Olho d’água, Mata Grande, Vila São Raimundo e Vila São Luís.

Porém, nos 31 anos que se seguiram desde a criação da Resex, as famílias que dependem da agricultura familiar e do extrativismo têm enfrentado inúmeras dificuldades, como o arrendamento das terras, por parte dos posseiros, para criação de animais e plantio, dificuldade no acesso aos babaçuais e alta no desmatamento.

Antônio da Conceição Sousa, presidente da Atramag, a organização que representa os beneficiários da Resex, denuncia que os fazendeiros estão destruindo os babaçuais e modificando a terra para a criação de gado. “Antes tinha muito babaçu, hoje a situação está crítica. Os caras querem acabar com tudo mesmo. Quando comprar a terra, a primeira coisa que pensam é em derrubar a palmeira para transformar em pasto para gado”, afirma Antônio.

O babaçu possui uma característica ímpar em relação a muitas outras fontes de matéria-prima: dele se aproveita tudo. Mais de 60 subprodutos são gerados com o coco babaçu. A preservação das palmeiras são alvos de ações de conservação da biodiversidade com o intuito de gerar renda para futuras gerações.

“O babaçu é regenerativo, se você não mexer rapidamente tem uma floresta, mas eles [os posseiros] estão utilizando veneno para matar as palmeiras filhotes. Utilizam um espeto com veneno e também óleo diesel para matar os babaçuais”, alerta Antônio.

Segundo ele, com a destruição e a falta de acesso às Matas de Babaçu, as famílias são obrigadas a migrar para outras atividades e ficam em uma situação de vulnerabilidade. “Agora as famílias estão peregrinando para conseguir manter a renda. Mas se a gente tiver acesso, não falta quebradeira de jeito nenhum. O problema mesmo é que as pessoas estão privadas de acessar o babaçu”, diz.


A quebra do coco babaçu é repassada por gerações e é a principal fonte de renda para as mulheres da Resex da Mata Grande. (Foto: Arquivo Pessoal)


Maria da Conceição Azevedo da Silva, de 66 anos, conta que trabalha como quebradeira desde os sete anos de idade, quando ainda ajudava a sua mãe. Entre as quebradeiras, a palmeira de babaçu é conhecida como a “árvore-mãe”, uma vez que fornece o sustento para as suas famílias.

“Eu quebro o coco, faço carvão, tiro o azeite, vendo todas as partes. Para mim é tudo, criei meus filhos através do coco”, fala Maria.

As quebradeiras da Resex Mata Grande são extrativistas donas de casa, mães, avós, esposas e também trabalhadoras rurais organizadas que acreditam que através desse trabalho podem conquistar melhores condições de vida para suas famílias.

Antonia Lima Silva, de 62 anos, também aprendeu o ofício através de gerações, passou toda a vida quebrando coco. “Para mim é muito importante até hoje. Minhas filhas brigam porque eu não deixo de vir quebrar coco, mas só deixo quando morrer. Eu adoeço quando não venho”, revela.

Raimunda Ferreira Lima, 51, diz que a atividade é fundamental na manutenção da renda da família. “É uma renda boa demais, só não é melhor porque ainda não estamos dentro da reserva para ter melhor acesso aos babaçuais”, afirma.

As mulheres se reúnem toda quinta-feira pela manhã para realizarem a colheita e quebra do coco, acordam cedo, colocam uma calça e camiseta de manga comprida e entram na floresta em pequenos grupos. “A esperança de conseguir a regularização da Resex Mata Grande nunca morre, por isso continuamos aqui”, conta Marilene Jorge dos Santos, 50, também quebradeira de coco babaçu.

Um estudo realizado pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, no ano de 2015, aponta que mais de 300 mil mulheres exerciam a atividade agroextrativista.

“Esta atividade é constantemente ameaçadas, seja pelos fazendeiros que tentam impedir o acesso dessas mulheres aos babaçuais, pela expansão do agronegócio na região de predominância dos babaçuais, pela dificuldade da comercialização dos produtos oriundo do babaçu, ou pela dificuldade de acesso à terra e aos babaçuais, que garantem às quebradeiras a continuidade do seu modo de vida”, trecho do estudo.

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