UMA AMAZÔNIA SEM ÁGUA E SEM COMIDA

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Crise do clima coloca em risco a segurança alimentar e hídrica das comunidades ribeirinhas

As comunidades ribeirinhas do rio Acre, na zona rural de Rio Branco, são as mais impactadas pelos eventos climáticos extremos que atingiram o estado. (Foto: Gleilson Miranda)



Varadouro visitou comunidades às margens do rio Acre impactadas pela grande cheia e a seca extrema de 2023. Após perderem seus roçados para as inundações, elas continuaram no prejuízo com a estiagem prolongada e as altas temperaturas que mataram suas lavouras. Menos de um ano depois, uma nova alagação coloca em risco a sobrevivência das famílias ribeirinhas. 



Fabio Pontes 
dos varadouros de Rio Branco 


O saco carregado de cupuaçu sobre as costas faz o agricultor Alfredo Rodrigues redobrar os cuidados ao descer os barrancos molhados do rio até a canoa atracada na margem. Aos 68 anos, domina como poucos este sobe e desce de barrancos – assim como o movimento das águas. Seu trabalho é ir de casa em casa das famílias ribeirinhas em busca da produção dos roçados para ser vendida no mercado de Rio Branco. Para ele, está cada vez mais difícil encontrar frutas, legumes, verduras e hortaliças em boa quantidade e qualidade. Os eventos climáticos extremos que, ano após ano, afetam a Amazônia têm impactado diretamente a agricultura, e colocado em risco a sobrevivência das comunidades ribeirinhas

O seu Alfredo é um dos moradores visitados por Varadouro nas comunidades ribeirinhas do rio Acre, na zona rural de Rio Branco. Em 2023, esta região foi uma das mais impactadas pelos eventos climáticos extremos que atingiram o estado. No fim de março, a grande cheia do manancial devastou seus roçados e criações. Logo em seguida, a seca severa matou suas plantações de banana, macaxeira, milho e todos os demais cultivos. Em muitas comunidades da zona rural, até as pequenas criações de gado morreram por falta de água. 

Muitas famílias só não passaram sede porque receberam água potável em caminhão-pipa. Um cenário típico do sertão nordestino, mas que acontece na maior floresta tropical do mundo. 

A menos de completar um ano da grande cheia de 2023, os ribeirinhos voltam a conviver com uma nova enchente do rio Acre e seus afluentes. Nem bem se recuperam dos prejuízos (e dos traumas) do ano passado, e voltam a ver a água a invadir seus roçados e casas. Uma triste realidade que vem se tornando rotina para as comunidades. 

Morador do antigo seringal Catuaba, na margem direita do rio Acre, o ex-seringueiro Alfredo Rodrigues é uma das vítimas da crise climática que afeta a Amazônia. Sua colônia ficou submersa pela grande enchente do rio Acre de um ano atrás. Perdeu toda a produção de banana, macaxeira, cupuaçu e outras frutas que cultivava. Não teve como salvar nada. “Tudo o que a gente tinha lá a água levou ou destruiu. Não tem como recuperar nada depois. É começar do zero. Replantar tudo. O problema é que quando a gente tava começando  a se recuperar, veio a seca e as plantas morreram”, desabafa ele. 

A falta de chuva prolongada e as temperaturas altas não permitiram a recuperação dos roçados. Os solos que estavam encharcados, logo ficaram áridos. Os pés de banana não brotaram os cachos com os frutos. O mesmo com as outras espécies. A plantação de milho não cresceu. 

Ao 68 anos, o agricultor Alfredo Rodrigues vai de casa em casa das famílias ribeirinhas em busca da produção dos roçados para vender no mercado de Rio Branco. (Foto: Gleilson Miranda)


A produção de bananas é a principal fonte de renda para estes agricultores ribeirinhos. As dezenas, centenas, de bananeiras ainda mantidas às margens do rio continuam a não produzir. “Aqui a solução é cortar tudo e replantar, e torcer para que não tenha enchente e o verão não seja tão forte como foi ano passado”, diz Terezinha Ferreira de Souza, 61 anos. 

Professora aposentada, ela decidiu comprar uma colônia na comunidade Colibri para viver da agricultura. Uma tarefa cada vez mais desafiadora numa Amazônia tão impactada pelas mudanças climáticas, com um clima mais e mais desequilibrado. E esta é uma atividade que depende, essencialmente, do bom ciclo e equilíbrio entre os dias de chuva e de sol. Para a maioria dos agricultores, a percepção é bem clara: os meses secos (o verão amazônico) estão mais prolongados e quentes, enquanto o período chuvoso (inverno amazônico) ficou reduzido. 

Porém, quando as chuvas caem elas são muito mais severas, provocando o transbordamento de rios e igarapés em questão de horas Foi o caso daquele março de 2023, quando uma chuva superior a 180 mm atingiu a capital do Acre por mais de 12 horas. Ele alcançou o seu terceiro maior volume em cinco décadas de medições: 17,72 m. As duas maiores foram em 2015 (18,40m) e 1997 (17,88m). Semanas após a vazante, o clima já dava os sinais do que seria o verão de 2023. Temperaturas extremas – acima dos 40 graus – e uma estiagem prolongada afetaram o acesso de muitas comunidades à água potável. Água que também ficou escassa para a irrigação e a criação de animais. 

“A gente tinha pé de bananeira aqui pra baixo, muito pé de pimentinha, maracujá, mamão. Tinha bastante. Aí a chuva veio, matou tudo. O restinho que ficou aqui pra trás, o verão veio,  secou também o bananal”, relata Terezinha. Não fosse seu salário de professora aposentada, ela e o marido teriam passado dificuldades caso precisasse ter a agricultura como principal fonte de renda. 

Os dias de calor fizeram os produtores mudar sua rotina de trabalho. Uma adaptação  para mitigar  os efeitos do sol escaldante. “Tem que trabalhar cedo, e chegar em casa cedo, né? Diminuiu a hora de trabalho. Quando a gente trabalhava das sete às onze, agora a gente trabalha das seis às nove. Até aguentar a gente tá lá, né?”,  explica a agricultora.  

Nascido e criado às margens dos antigos seringais do rio Acre, Francisco Benício de Moraes, 62 anos, também sente na pele as consequências de um clima amazônico bastante diferente de décadas atrás, quando ainda cortava seringa com o pai no seringal Recreio. Ele é um dos ribeirinhos que tentam se recuperar dos prejuízos causados pela enchente de 2023 – mas já receoso com a cheia de 2024. A água ficou a poucos centímetros de invadir sua casa, erguida a dois metros de altura do chão. 

Essa é outra forma de adaptação das famílias ribeirinhas: a construção de casas cada vez mais altas. Elas também precisam deixá-las mais longe das margens. O desbarrancamento das margens é ameaça constante para as construções. 

“O pior de tudo é o que a gente perde, né? O prejuízo que a gente tem. Perde a macaxeira, banana. Tudo o que tiver plantado.  Aí quando a água baixa, no lugar de melhorar, mas não tem jeito. Fica sem nada, só mesmo a lama, tudo morto”, diz seu Francisco.  “Depois veio a seca. Deu a alagação e veio aquela seca. Baqueou o bananal também, né? Aí quando foi depois, lá vem o vento, o temporal, quebrou outro bocado.” 

Mesmo com todas as dificuldades, estes ribeirinhos resistem. Muitos já parecem estar acostumados com as intempéries. Possuem seu próprio modo de resiliência. “Nós que somos da mata já estamos acostumados. O rio sempre encheu, sempre secou. A gente se acostuma e gostamos de viver aqui”, comenta ele. 

A aposentadoria de trabalhador rural ameniza os impactos de ficar sem seu roçado, que é a sua maior fonte de renda para manter ele e a família. Para complementar a renda nos dias sem produção, faz o trabalho de barqueiro e outros serviços braçais. 

Nascido e criado às margens dos antigos seringais do rio Acre, Francisco Benício de Moraes, 62 anos, também sente na pele as consequências das mudanças climáticas. (Foto: Gleilson Miranda)



Sem água e sem comida 

As populações ribeirinhas e indígenas do Acre estão entre as mais impactadas pelos eventos climáticos extremos, sejam as enchentes ou as secas. As margens dos rios e as praias são os locais utilizados por elas há décadas para o cultivo de seus roçados. Culturas que vão do feijão à melancia, e da macaxeira à banana. O movimento das águas dos mananciais (o sobe e desce), além do bom equilíbrio entre os ciclos de chuva e estiagem também são essenciais para garantir  a sustentabilidade desta agricultura familiar. Sem acesso a tecnologias ou assistência técnica rural, a grande maioria recorre aos métodos tradicionais de produção – já não adaptados à realidade um novo clima na Amazônia. 

De acordo com relatório produzido pela Secretaria Estadual de Agricultura, mais de 30 mil produtores rurais foram impactados pela grande seca de 2023. Estes impactos se dão perda de roçados e animais, o adiamento do início dos plantios e também seus acessos a comida e à água potável. 

“Cerca de nove mil famílias estão com as necessidades cotidianas comprometidas, incluindo a insegurança alimentar. Regiões isoladas, de difícil trafegabilidade, também sofrem e torna a situação mais difícil”, diz trecho do relatório, publicado no fim de outubro. Em outros tempos normais, as chuvas do inverno amazônico já deveriam ocorrer com intensidade entre outubro e novembro. Mas por conta do El Niño, elas só passaram a cair entre dezembro e janeiro – quando, enfim, os agricultores puderam fazer a semeadura. 

Segundo a Secretaria de Agricultura, cerca de 40% de toda a produção agrícola esteve ou ainda está sob risco por causa da seca severa. O reflexo disso é perceptível nos mercados de Rio Branco, com a escassez de banana, macaxeira, legumes e hortaliças. Os preços dispararam. A banana hoje está a preço de ouro.  

Os técnicos da secretaria apontam no relatório ainda que as condições climáticas adversas coloca em risco a segurança alimentar das famílias da agricultura familiar. Sem acesso a uma água própria para consumo humano, já que seus poços secaram, muitas passam a fazer uso de água insalubre, o que aumento  o caso  de doenças diarréicas. 

Outro efeito causado pela estiagem prolongada foi a falta de mobilidade por estas famílias. O volume crítico de rios e igarapés impede a navegação nestes meses secos. As comunidades sem acesso por ramal ficam completamente isoladas. 

“A seca prolongada representa um desafio que requer ações imediatas e efetivas. Para enfrentar essa situação e assegurar um futuro mais promissor para o estado, é fundamental o engajamento de todos os setores da sociedade”, diz trecho do relatório, que aponta as seguintes soluções possíveis para a crise hídrica nas comunidades rurais: a construção de reservatórios e de sistemas de captação de água da chuva. 

De acordo com dados da Defesa Civil Municipal de Rio Branco, mais de 14 milhões de litros de água potável foram distribuídos pela operação Estiagem  2023. Foram 17 mil pessoas beneficiadas, em 27 comunidades. 

Um pouco mais abaixo do rio, no seringal Bagaço, está José Efigenio Nascimento, de 43 anos. A sua história é semelhante a dos vizinhos ouvidos pela reportagem. A diferença é que ele depende diretamente da agricultura para obter a renda. “Ano passado eu passei uns aperreios grandes depois da alagação. Não fosse o auxílio que a minha esposa recebe não sei como tinha sido”, afirma. 

Tão logo as águas baixaram ele correu para recuperar os roçados. Uma das soluções foram as lavouras cultivadas nas praias do rio que cresceram rápido. Foi a partir de então que ele conseguiu voltar a tirar dinheiro para sustentar a família. 

Parte de seus cultivos ainda sentem os efeitos da cheia e da seca prolongada. As abóboras não se desenvolveram o suficiente e em qualidade para ser levada ao mercado. 

O roçado de macaxeira e o bananal devagar volta ao normal. E assim é quer que permaneça. Mas ele sabe que morar às margens do rio passou a ser uma ameaça constante para a sua sobrevivência apenas da agricultura. 

Em setembro de 2023, o rio Juruá, na cidade de Marechal Thaumaturgo, enfrentou uma seca extrema. O mesmo rio, em fevereiro de 2024, alaga a cidade. (Foto: Alexandre Cruz Noronha)



Resiliências possíveis   

A agricultora Antônia Benedita Menezes é a presidente da Associação de Moradores da Comunidade Colibri. Ela própria é uma das afetadas pelos eventos climáticos cada dia mais imprevisíveis na região amazônica. Na alagação de 2023, dividiu a casa com outras cinco famílias vizinhas. Eles perderam  suas moradias, e foram buscar refúgio na vizinha, cuja casa também estava com água dentro. 

“A gente amarrou as redes e moramos aqui mesmo. Trepamos tudo o que era possível. Os meus vizinhos vieram pra cá porque a casa deles ficaram todas encobertas. Foi bem difícil. Não tinha como dormir. Toda hora vigiando pra ver se não  tinha bicho subindo pelas cordas das redes”, recorda-se ela. Não fosse a distribuição de água mineral e cestas básicas pela Defesa Civil, teriam passado fome e sede. 

Foram mais de 15 dias convivendo com a água dentro de casa. Com o rio de volta ao leito, ficou o rastro da destruição. Todo o roçado foi perdido. Nada foi possível se aproveitar.  “Veio a enchente, a alagação, levou tudo. Aí veio agora a seca. A pessoa planta, Plantamos e não deu nada. Aí todo mundo sem produção. Tanto na margem do rio, ribeirinho, como também central [áreas mais afastadas das margens]”, diz dona Benedita. 

Os pés de cupuaçu que antes chegavam a dar até 10 mil frutos por safra, em 2024 não chegaram a mil. O mesmo aconteceu com o bananal, o milho e a plantação de macaxeira.  “Se a gente não tiver uma rendazinha, um benefício por fora, olha, tem pessoas que tão passando necessidade. Tá passando necessidade porque não tem como tirar o sustento. Se aqui já tá difícil na vida no campo, imagina lá na zona urbana, né?”, comenta ela. 

“Antes a gente já sabia o momento certo de arar a terra, preparar o roçado porque naquele mês ia cair a chuva. Agora não. Atrasou tudo. Estamos plantando mais tarde, colhendo menos e produto com menos tamanho, menos qualidade”, afirma. 

Muitos destes produtores reclamam da falta de uma política de assistência técnica para auxiliá-los neste novo momento de realidade climática por que passam. Outro grave problema a afetar a agricultura familiar é o surgimento de pragas mais resistentes. Foi o que aconteceu com os roçados dde macaxeira no Vale do Juruá,  com a praga do mandarová – lagarto que prejudica o desenvolvimento da planta. A Prefeitura de Cruzeiro do Sul decretou situação de emergência pelo risco de perda total de toda a produção de macaxeira – matéria-prima responsável por movimentar a economia local para a produção de farinha.   

A agricultora Antônia Benedita Menezes, presidente da Associação de Moradores da Comunidade Colibri, perdeu todo o roçado devido a alagação em 2023. (Foto: Gleilson Miranda)



Uma agricultura resiliente

“Cada vez mais a gente vai ter mais secas severas, e a gente vai ter mais eventos extremos como as enchentes. E a grande questão é que não estamos preparados para isso. Nós já estamos vivendo uma nova realidade. Aquele clima  do passado ele, de fato, ficou pra trás.” A afirmação é do agrônomo e pesquisador Eufram Amaral, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Ex-secretário de Meio Ambiente do Acre, ele teve papel  essencial na construção do Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE) do estado durante o governo Binho Marques (2007-2010). 

Para ele, o ZEE precisa estar adaptado à nova realidade ambiental e climática que afeta as comunidades ribeirinhas, indígenas e extrativistas. Além disso, avalia Amaral, o poder público precisa assegurar ações de assistência técnica rural que amenize os danos ocasionados pelos eventos climáticos extremos na agricultura familiar. Este é o segmento mais carente ao não ter acesso a estes auxílios, muito menos ao crédito. 

“Agora é a adaptação. Quem perdeu os plantios nas enchentes, já sabe até onde a água pode chegar. Tem que plantar mais longe [da margem]. Durante a seca, é termos plantios que sejam  mais resistentes ao período seco, sejam mais resilientes”, cometa ele. 

Uma das alternativas é a implementação de sistemas agroflorestais, os SAFs, que conciliam o plantio de árvores nativas da região com os roçados. Este modelo permite a redução dos impactos das altas temperaturas – os raios solares – sobre os cultivos mais sensíveis.  

Segundo Eufram Amaral, o reflorestamento continua sendo a forma mais barata de reduzir os efeitos das mudanças climáticas.  Outra alternativa é desenvolver espécies mais resistentes aos efeitos das estiagens mais secas e prolongadas, além de estudos do volume de solos que se adaptem a um ambiente de maior aridez. 

Outro ponto defendido por ele é a adoção do chamado  zoneamentos pedoclimaticos, que é a análise das condições de solo e de clima que indicam os melhores locais para serem realizados os plantios com maiores chances de sobreviverem a um cenário de estiagem severa. 

Para o especialista, outro dever de casa no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas é bem simples: o combate ao desmatamento.  “Se a gente tiver altas taxas de desmatamento, tiver desmatamento na margem de rio e de igarapé, vai faltar água e vai faltar água na cidade e pra quem está no campo. Todo  mundo perde.” 

“Imagina você ter que economizar água para beber em plena Floresta Amazônica, na maior bacia hidrográfica do mundo, estamos falando de seca, de dificuldade de acesso à água, como foi em muitas comunidades rurais aqui no entorno de Rio Branco”, avalia Eufram Amaral.  

E infelizmente esta passou a ser uma nova realidade numa Amazônia de clima bem diferente de alguns poucos anos atrás. Uma realidade que deixa milhares de pessoas em extrema vulnerabilidade, ao comprometer seus acessos à comida e à água. A perda de roçados e lavouras não põe em risco só uma fonte de renda, mas a própria garantia de ter o que comer para as comunidades mais pobres e isoladas – muitas das vezes invisíveis. Sejam com as cheias ou com as secas mais intensas e frequentes, a crise climática representa uma grave ameaça às populações da floresta. 




Esta reportagem foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center

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