Para MPF, lei aprovada pela Aleac “privatiza” e fomenta invasões a florestas estaduais
Aprovada pela Aleac e sancionada pelo governo, a lei 4.396 permite a concessão de título de posse a pessoas que comprovem a ocupação, de no mínimo 10 anos, em áreas dentro das florestas públicas estaduais. Para procurador, legislação é uma “privatização” de territórios de domínio público, e fomenta a invasão de novas áreas em UCs – hoje já pressionadas pelo avanço do desmatamento na Amazônia.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
A aprovação da lei 4.396, em agosto pela Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), que permite a concessão de título definitivo a pessoas que ocupem áreas nas florestas estaduais é uma forma “privatizar” terras de domínio público, além de fomentar a invasão destes territórios por pessoas sem o perfil de agricultura familiar ou extrativista, como define a nova legislação. Além disso, as normas alteradas fragilizam os mecanismos de proteção ambiental das unidades de conservação estaduais, já bastante pressionadas pelo avanço do desmatamento e da grilagem.
Estas são as conclusões do 6o Ofício da Procuradoria da República no Acre ao enviar representação ao Procurador-Geral da República, Paulo Gustavo Gonet Branco, para que ajuíze uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), contra as leis 4.396 e 4.397. Aprovadas pela Aleac e sancionadas pelo governador Gladson Cameli (PP), elas reformulam antigas legislações estaduais voltadas para o meio ambiente, e passam a valer a partr de dezembro.
Para o procurador Luidgi Merlo Paiva dos Santos, a nova legislação vai de frente ao que determina o sistema federal de proteção ambiental, e por isso precisam ter as suas constitucionalidades analisadas pela Suprema Corte. Com 38 páginas, a representação enviada ao procurador-geral da República expõe de forma detalhada como os novos dispositivos da legislação acreana contrariam o arcabouço nacional de leis para o meio ambiente.
Nesta primeira reportagem, Varadouro tratará especificamente sobre a lei 4.396, que trata da concessão de título de posse definitivo para quem ocupa uma área de terra dentro das florestas públicas estaduais (FES) – ou seja, uma espécie de usucapião promovido pelo próprio Estado em unidades de conservação de uso sustentável.
Pelo texto da nova legislação, que alterou a lei número 1.787, de 2006, o estado poderá, por meio do Instituto de Terras do Acre (Iteracre), “outorgar, sob condição resolutiva, concessão de direito de uso nas áreas das Florestas Públicas Estaduais do Rio Gregório, do Rio Liberdade, do Mogno, do Antimary e do Afluente do Complexo do Seringal Jurupari, para efeito de regularização fundiária”.
Criadas, em sua maioria, durante o governo de Jorge Viana (1999-2006), as florestas públicas funcionam (ou funcionavam) como uma zona de amortecimento ao avanço do desmatamento ao longo da BR-364 entre Sena Madureira e Cruzeiro do Sul. Como é de notório conhecimento, a abertura ou a pavimentação de estradas estão entre os principais vetores de expansão do desmatamento na Amazônia.
E assim tem sido ao longo da última década – e particularmente a partir de 2019, com o desmonte das políticas de proteção ambiental promovido pelo governo bolsonarista de Gladson Cameli (PP). Atualmente, os municípios cortados pela BR-364 – e onde ficam as florestas públicas – estão entre os 10 líderes em taxas de desmatamento na Amazônia Legal. Feijó, Tarauacá e Manoel Urbano são hoje os municípios acreanos mais críticos em devastação do bioma amazônico.
Segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), elaborado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em setembro a Floresta Estadual (FES) do Rio Gregório perdeu um quilômetro quadrado de sua cobertura florestal nativa – ficando entre as 10 UCs mais desmatadas no período. Junto com ela, a FES do Antimary – entre o Bujari e Sena Madureira – também chama a atenção pelo aumento das pressões. A região é uma das mais ricas e diversas na presença de madeiras de alto valor comercial – o que a torna, também, cobiçada pela atividade madeireira.
Quando de suas criações, as florestas públicas já tinham pessoas morando dentro de seus limites. Elas, então, foram incorporadas como moradores tradicionais, precisando seguir as regras de um plano de manejo comunitário. Cada UC tem seu próprio plano, respeitando as características de cada área, além do perfil das comunidades – se atuam mais com a agricultura familiar ou o extrativismo.
Desmatamento legalizado
“Verifica-se, portanto, que, de acordo com o regramento geral estabelecido pela União, o domínio da Floresta Nacional, Estadual ou Municipal deve ser público, desapropriando-se as áreas particulares, mas se admitindo a permanência de populações tradicionais residentes no local quando da criação da unidade”, escreve o procurador Luidgi Merlo.
Ele usa como base principal para apontar a inconstitucionalidade da legislação acreana a lei federal 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Sinuc). Para o procurador da República, a lei aprovada na Aleac “privatiza” áreas dentro das florestas estaduais, que são definidas, por força da lei nacional, como de “posse e domínios públicos”.
“[A lei acreana] vai na contramão do regramento geral federal, que estabelece a “publicização” do domínio das florestas nacionais, estaduais e municipais, mediante a incorporação ao patrimônio público das áreas de domínio privado.”
Além disso, salienta o procurador, a nova norma estadual confronta a federal ao legalizar a permanência e a posse da terra por famílias que não se encaixam no perfil de populações tradicionais do território, e que não as ocupavam quando da data de suas criações.
“Ocorre que, em nenhum momento, a Lei federal nº 11.284/2006 estabeleceu como opção ao Administrador transferir, em caráter definitivo, parcelas das florestas públicas aos residentes. No máximo, a lei em questão permitiu a concessão de uso e a concessão de direito real de uso, justamente como forma de resguardar o uso sustentável desses espaços territoriais”, aponta Luidgi Merlo.
“Assim, ao prever a possibilidade de concessão de título de domínio de áreas de florestas públicas estaduais a particulares, o art. 6º, da Lei Estadual n. 1.787/2006, na forma da alteração promovida pela Lei Estadual n. 4.396/2024, violou o regramento geral federal.”
No entendimento do MPF, tais concessões de título definitivo poderiam ocorrer apenas se estas áreas fossem desafetadas – ou seja, deixassem de ser unidades de conservação. Conforme a lei federal, a desafetação de uma UC só pode acontecer por meio da aprovação de um projeto de lei específico. No caso por ser estadual, pela Assembleia Legislativa.
Ao passar a valer com a atual redação, a lei – avalia o procurador – fragiliza os mecanismos de proteção ambiental das florestas públicas estabelecidos pelo Sinuc. O MPF aponta que “bolsões” (ou “fracionamentos”) serão criados dentro das áreas protegidas. Em resumo, se passará a ter “propriedades privadas” outorgadas pelo estado dentro de terras públicas – o que pode aumentar as pressões sobre a floresta – ou seja, mais desmatamento da Amazônia.
Ao estabelecer um critério de usucapião – concedendo o título definitivo a quem pratica a pequena agricultura ou o extrativismo no período de uma década -, o governo acaba por fomentar a invasão de terras públicas, legitimando a grilagem – isso numa região do Acre já bastante pressionada pelas invasões de terras do Estado.
“Ademais, o dispositivo em comento fragiliza a proteção territorial das Florestas Estaduais, pois incentiva que indivíduos que não possuem nenhuma relação tradicional com esses espaços simplesmente os ocupem, na esperança de adquiri-los após o transcurso de 10 anos”, salienta Luidgi Merlo em suas alegações.
O outro lado
Procurado por Varadouro, o governo do Acre afirmou que não iria se manifestar sobre o caso por não ter sido notificado pelo Ministério Público Federal.