Direitos de povos indígenas são violados para se avançar com projetos de mineração e grandes obras
Fake news, disputa de narrativa, pressão psicológica, ameaças. Na guerra pela exploração mineral na Amazônia vale tudo o que possa dividir – povos indígenas e opinião pública – para conquistar. Vale, inclusive, o apoio do poder público.
Steffanie Schmidt
dos varadouros de Manaus
“Há uma pressão abusiva sobre os territórios, que passa pelos governos, e as empresas são coniventes. Tudo isso é fruto de empreendimentos abusivos na Amazônia que se refletem nessa seca que estamos vivendo.” A denúncia foi feita pela coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), Mariazinha Baré, durante coletiva de imprensa realizada na última terça-feira (10), em Manaus, para esclarecer fatos sobre a exploração de potássio no Amazonas, dentro da Terra Indígena Soares, do povo Mura, no município de Autazes (distante 111 quilômetros de Manaus).
“O governo do Amazonas anunciar o apoio de indígenas Mura ao projeto de potássio é uma ofensa ao protocolo de consulta do povo Mura e aos povos indígenas”, completou. No dia 25 de setembro, o governador Wilson Lima afirmou considerar o possível apoio “o passo mais importante, que é o processo de consulta ao povo Mura sobre essa atividade da exploração do potássio no município de Autazes”.
Willian Mura, um dos representantes da Organização das Lideranças Indígenas do Povo Mura do Careiro da Várzea (Olimcv), esclareceu que o “apoio” divulgado refere-se a 108 pessoas, e não ao povo Mura em si. “Eles não podem tomar decisão por mais de oito mil Mura. Não foi unânime”, afirmou.
“Não tem exemplo em nenhum lugar do mundo que a mineração tenha dado certo. É importante que o governo ouça a fala dos parentes que estão lá. Já pensou você está na sua casa e alguém chega dizendo para você sair? É assim que os parentes da Aldeia Soares estão se sentindo”, afirmou Herton Mura, também representante Olimcv.
O procurador da República no Amazonas Fernando Merloto Soave, representante da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais), esclareceu que não é permitida a exploração mineral dentro de terras indígenas, de acordo com o Artigo 231, da Constituição Federal, salvo em casos de interesse da União. Além disso, lembrou que há uma decisão judicial na esfera federal que suspende qualquer atividade relacionada à exploração.
“Sob que propósito essas notícias falsas estão sendo divulgadas? Afirmar que o povo aprova o projeto, que o projeto está caminhando… isso é mentira. É meu dever, como procurador do MPF, zelar pelo compromisso que o povo Mura fez”, afirmou. “Quando você escolhe que não vai respeitar a Constituição Federal, você está fora do Estado de Direito”, completou o procurador.
Respeitar o protocolo de consulta é um dos critérios previstos dentro do Estado de Direito, inclusive Internacional, estabelecido pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Merloto advertiu que, de acordo com o Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, há uma série de reuniões internas e externas, anteriores a uma Assembleia, para tomada de decisão.
Mineração que afeta os povos do Pará
O mesmo problema se repete no vizinho estado do Pará, com graves denúncias de desrespeito aos direitos dos povos indígenas e comunidades quilombolas sobre seus territórios. No começo de outubro, lideranças dos povos Tembé e Turywara, mais quilombolas e ribeirinhos do Vale do Acará, divulgaram carta denunciando o que classificam como violações praticadas pela mineradora norueguesa Norsk Hydro. (Leia a íntegra da carta abaixo) Não é de hoje que ela é acusada por danos ambientais e sociais na região onde opera, incluindo a contaminação da água consumida pelas comunidades ribeirinhas de Barcarena.
“Há duas décadas fomos obrigados a conviver com a presença intrusiva de um longo mineroduto que rasga o subsolo de nossas terras sagradas, estrutura que afugenta nossas caças, impede nossa livre circulação e estressa nosso cotidiano”, diz a introdução da carta. O drama vivido pelos povos tradicionais do Vale do Acará é um dos inúmeros exemplos das violações às quais os povos tradicionais do Pará sofrem ao longo das últimas décadas – seja pela exploração mineral, a construção de grandes empreendimentos e a expansão da agropecuária.
Um dos exemplos mais claros foi a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu, cujos impactos sociais e ambientais são sentidos até hoje pelas comunidades. Outra ameaça para a região do Xingu são os planos para a atividade minerária por meio do Projeto Volta Grande de mineração, da mineradora canadense Belo Sun Mining. O objetivo é transformar a região na maior mina de exploração de ouro a céu aberto do país. (Leia mais abaixo)
Os efeitos da exploração do subsolo pelo “garimpo legalizado” já são bem sentidos pelos povos do Vale do Acará. “O barulho infernal das toneladas de minérios que são transportados de Paragominas até Barcarena (cerca de 250 km de percurso), amedronta as crianças e viola a sacralidade de nosso solo ancestral. Não bastasse isso, quilômetros de torres e linhas de transmissão acompanham o traçado do mineroduto, limitando ainda mais nossos espaços”, exemplifica trecho da carta publicada pelas lideranças do Acará.
Segundo o documento, para ampliar a sua capacidade de produção, a Hydro “está renovando e ampliando os dutos”. Este processo, afirmam as lideranças, também ocasionam uma série de impactos sobre seus seus territórios. Eles acusam a mineradora norueguesa de não ter feito nenhuma consulta prévia às comunidades, desrespeitando as normas estabelecidas pela legislação brasileira.
Caminhos de violações
Outro exemplo de clara violação ao direito internacional de consulta prévia aos povos afetados por obras de infraestrutura de grandes impactos é o projeto para a abertura de uma estrada entre as cidades de Cruzeiro do Sul, no Acre, e a capital do departamento peruano de Ucayali, Pucallpa. A obra é patrocinada pela classe política bolsonarista do Acre, e ganhou bastante durante os quatro anos de Jair Bolsonaro (PL) na Presidência da República.
Em junho deste ano, atendendo a uma ação civil pública impetrada por várias organizações do movimento indígena e ambiental, a Justiça Federal em Rio Branco anulou edital lançado pelo Dnit cujo objetivo era contratar a empresa que faria o projeto de viabilidade técnica da obra numa das regiões mais intactas da Floresta Amazônica, na fronteira do Brasil com o Peru.
Uma das principais alegação da ação civil era, justamente, a falta de consulta prévia às populações indígenas, ribeirinhas e extrativistas que seriam impactadas pelo empreendimento.
Encontro observatório
O desrespeito aos protocolos de consulta e poder de decisão dos povos indígenas foi motivo de denúncia de diversos grupos indígenas por conta do assédio feito por empresas que representam grandes empreendimentos, principalmente ligadas ao mercado de carbono, durante o II Encontro do Observatório dos Protocolos de Consulta, realizado entre os dias 13 e 16 de setembro, em Brasília, com a participação de 140 pessoas, de 20 estados e 4 países diferentes.
O encontro mobilizou diversas organizações, sendo 31 de povos tradicionais, além de instituições como as 16 universidades participantes, além de 13 organizações, como representações de Defensorias Públicas da União e do MPF.
Embora não seja considerada uma solução definitiva, a regulamentação dos protocolos e consultas se faz necessária para garantir o respeito ao direito dos povos indígenas de serem ouvidos a partir de seus costumes, de forma a apropriar-se do assunto em questão. As discussões iniciaram há dez anos, e todo o avanço e experiência acumulado até aqui é fruto da resistência e organização dos povos tradicionais.
“A experiência de consulta é um caminho sem volta. Não tem como fingir que ele não existe. É um avanço dos últimos anos; uma resposta ao autoritarismo”, afirma Liana Amin Lima da Silva, pós-doutoranda em Direito pela PUC-PR, e uma das coordenadoras gerais do Observatório de Protocolos Comunitários Autônomos.
A resposta à pressão imposta às comunidades, principalmente em relação aos assédios praticados pelas empresas com interesse em explorar o mercado de créditos de carbono, é uma “preocupação no âmbito da COP de 2025”, lembra Liana Amin, o que torna os protocolos algo emergencial.
Atualmente, existem 94 protocolos ativos. A falta desse processo em nível federal abre espaço para uma dinâmica que vem sedimentando o caminho da legislação ambiental no Brasil: a estadualização. No vácuo de ação da União, estados e municípios tomam para si responsabilidade de licenciar, liberar obras e regulamentar processos, onde os critérios acabam sendo relativizados em função da visão política e da falta de fiscalização.
Nos últimos quatro anos, a maior dificuldade esteve baseada na vontade política, no autoritarismo, segundo avalia a coordenadora do Observatório. “Estamos em outro momento político, mas está posta a disputa: dentro dos ministérios há vontade política, nos órgãos em geral, no entanto, estão desestruturados, falta gente e recursos, preparação, capacitação técnica, orçamento, etc”, explica.
‘Estadualização’
Um outro desafio, que favorece esse processo de ‘estadualização’, é que a lógica do capital passa por cima desses procedimentos. O tempo de consulta é feito no tempo em que os povos têm para internalizar o que ameaça seus territórios, direitos, planos de vida, seus interesses para o futuro. “Isso precisa ser trazido para dentro das discussões”.
A tentativa de regulamentação estadual já aconteceu nos estados do Pará, Roraima, Maranhão e, mais recentemente, em Minas Gerais, seguindo a esteira das autorizações para obras de pequenas centrais hidrelétricas, consideradas de menor dano ambiental.
Em junho, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais (Semad) suspendeu a licença da mineradora Tamisa para operar na área da Serra do Curral. A suspensão do licenciamento se deu por violação de direitos de povos tradicionais da região. A Justiça já havia suspendido as licenças da mineradora que pretendia construir o chamado Complexo Minerário Serra do Taquaril.
Não fosse a intervenção do Ministério Público Federal, o procedimento teria ocorrido normalmente no âmbito do Executivo Estadual. A decisão do TRF-6 que suspendeu o licenciamento atende a um pedido do MPF, por meio de ação civil pública que aponta violação aos direitos da comunidade quilombola Mango Nzungo Kaiango.
“Nesse processo em âmbito estadual, muitos instrumentos normativos são revogados, violando o que caracteriza um processo de consulta: acabam restringindo o tempo de escuta para três meses, por exemplo, o que é inviável para as comunidades. Cada processo é único e isso vai variar para cada povo porque depende da escala do empreendimento, da abrangência do território, dos costumes, línguas”, explica Amin.
O caso da mineradora Belo Sun, na região da Volta Grande do Xingu (PA), cujo projeto prevê a construção da maior mina de ouro a céu aberto na Amazônia, é um exemplo desse tipo de dinâmica. Em abril de 2022, a mineradora canadense perdeu, em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1), o pedido de revogação da concessão de licença ambiental expedida pelo governo do Pará. A ação também foi questionada pelo MPF.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou, no relatório intitulado “Mina de Sangue”, divulgado em junho, omissões, ilegalidades e intimidações por parte da mineradora contra os povos originários. Ao menos 800 famílias da região deveriam ser realocadas em Mato Grosso.
“A decisão de competência de licenciamento, por se tratar de Terra Indígena, é da União. Os estados, alguns órgãos como secretarias ou institutos, acabam até reconhecendo os protocolos, mas sempre restringe-os, o que é uma contradição”, afirma Liana Amin.
Ela alerta que a regulamentação dos protocolos de consulta não é a solução, dada a experiência obtida no Peru, onde os povos repudiaram, no próprio processo de regulamentação, o fato de não terem sido ouvidos. Além disso, a regulamentação acabou por restringir prazos.
No Brasil, o grupo interministerial voltado para essa regulamentação, formado em 2012, terminou frustrado, na mesma época em que o Brasil estava sendo denunciado internacionalmente por violações dos direitos indígenas. “Esse período coincide com o início do protocolo Waiãpi e Munduruku, ambos concluídos em 2014, além do protocolo de quilombolas no Pará.
“No contexto latino, não quer dizer que o Brasil esteja avançando; Ele avança no sentido de resistência e resiliência e organização dos povos. Nesse sentido, os protocolos já definidos surgem como uma resposta contra hegemônica ao poder do capital. Estamos em uma encruzilhada histórica, um momento de reconstrução dos direitos das comunidades tradicionais e este é o ponto: como o estado traz isso pra si?”, conclui.
Durante a coletiva de imprensa convocada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Mariazinha Baré lançou um desafio: dialogar com o governo para construir um projeto de desenvolvimento econômico sustentável para o Amazonas, que inclua os povos indígenas. A proposta será apresentada na COP 28 que será realizada em novembro, em Dubai.
“Foi-se o tempo em que entravam em nossas terras e faziam o que queriam. É preciso respeitar a convenção 169, é preciso respeitar os protocolos de consulta. Somos contra esse modelo de grandes empreendimentos que não trazem benefício para os povos indígenas, mas estamos dispostos a construir um modelo sustentável para todos”, afirmou.
A seguir, a carta escrita pelas comunidades do Vale do Acará, no Pará
Carta aberta sobre as violações de direitos humanos da mineradora Norsk Hydro no Vale do Acará, Pará, Amazônia.
Nós, comunidades indígenas Tembé e Turywara, quilombolas e ribeirinhos, vimos à público denunciar as violações de direitos humanos e ancestrais da mineradora norueguesa Norsk Hydro em nossos territórios. Há duas décadas fomos obrigados a conviver com a presença intrusiva de um longo mineroduto que rasga o subsolo de nossas terras sagradas, estrutura que afugenta nossas caças, impede nossa livre circulação e estressa nosso cotidiano.
O barulho infernal das toneladas de minérios que são transportados de Paragominas até Barcarena (cerca de 250km de percurso), amedronta as crianças e viola a sacralidade de nosso solo ancestral. Não bastasse isso, quilômetros de torres e linhas de transmissão acompanham o traçado do mineroduto, limitando ainda mais nossos espaços.
Agora, para que a Hydro se adeque às suas necessidades de produção, está renovando e ampliando os dutos. Com isso, dezenas de funcionários, carros e maquinários pesados passaram a invadir nossos territórios, o que de forma alguma aceitaremos. A Hydro afirma adotar práticas de sustentabilidade e de diálogo pleno com os povos afetados por suas atividades, mas esta é mais uma mentira contada pela mineradora.
Com largo histórico de desastres socioambientais e violações de direitos à comunidades indígenas e quilombolas na Amazônia, como é o caso de Barcarena, a Hydro vem repetindo sua metodologia neocolonial e violadora contra os povos do Vale do Acará. As comunidades não foram consultadas sobre a circulação constante e intrusiva dos funcionários da empresa, que passam em suas picapes em alta velocidade nas estradas de acesso às aldeias e quilombos, colocando em risco nossas famílias.
Nunca fomos consultados sobre se autorizávamos ou não que rasgassem o ventre de nossas terras sagradas; em momento algum autorizamos que usassem nossos aquíferos (de forma gratuita e ao esgotamento) de nossos aquíferos.
Valas enormes estão sendo abertas, representando perigos aos comunitários e aos animais que nelas caem e agonizam até a morte. Estradas foram abertas para a circulação da empresa, facilitando a circulação de pessoas não autorizadas nos territórios e colocando em risco a segurança das comunidades. Além disso, a Hydro, com a apoio da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup), passou a intimidar e achacar as comunidades com policiamento ostensivo da Polícia Militar, prática patrimonialista e completamente questionável, pois somos os alvos, tratados como marginais em nossa própria casa. Vale ressaltar que a intervenção policial tem acontecido sem nenhuma decisão judicial, obedecendo ordens diretas do secretário Ualame Machado, segundo o Comandante da Polícia Militar da região.
Usando de sua influência e estrutura material, a Hydro também tem processado lideranças que questionam suas ações, contrariando a ideia de que existe diálogo pleno e escuta das comunidades. O que há, de fato, é uma disputa desigual de poder entre uma transnacional poderosa da mineração, com mais de 20 sedes no mundo inteiro, e comunidades tradicionais e originárias lutando por direitos.
Esta carta aberta também questiona e pede a suspensão da licença de operação (LO) concedida pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará, em 2022, ao mineroduto da Hydro, uma vez que os estudos de componente quilombola e indígena ainda não haviam sido concluídos naquela data.
Diante deste quadro desolador, as comunidades violadas pela Hydro, reunidas neste documento, informam a quem interessar possa que não aceitarão mais a intrusão e a continuidade das práticas criminosas da empresa, que atentam contra o que preconiza a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada dos povos — o que não houve.
Em tempo, pedimos o acompanhamento e diligência do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Estado do Pará, da Procuradoria Geral do Estado do Pará, da Comissão de Direitos Humanos da OAB, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Da Funai, Ibama, Fundação Cultural Palmares, Coordenação das Comunidades Quilombolas do Pará (Malungu) e demais órgãos ambientais e de fiscalização.
Nenhum direito a menos.
Assinam as associações:
ASSOCIAÇÃO TENETEHAR TEKOHAW PYTAWA
ASSOCIAÇÃO INDÍGENA TEMBÉ DO VALE DO ACARÁ (AITTA)
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E AGRICULTORES REMANESCENTES
QUILOMBOLAS DO ALTO ACARÁ (AMARQUALTA)
ASSOCIAÇÃO INDÍGENA TURIWARA DO BRAÇO GRANDE (AITBG