Dom Moacyr: o bispo que deu vida ao Varadouro
Líder religioso de visão progressista, Dom Moacyr teve papel crucial em um dos momentos mais críticos e sensíveis da história da Amazônia. Ele via no jornal das selvas uma forma de tirar do invisível toda forma de violência sofrida pelos povos da floresta. Da defesa dos mais simples ao fim do esquadrão da morte, o bispo deixou um legado irretocável em suas atividades pastorais no Acre e Rondônia.
Fabio Pontes e Montezuma Cruz
dos varadouros de Rio Branco e Porto Velho
No mês em que Varadouro completa um ano de sua retomada na era digital, quando oficialmente consolidou-se a entrada deste site no ar, em 10 de julho de 2023, lembramos um pouco da história de um homem essencial para o jornal das selvas: Dom Moacyr Grechi. Graças ao bispo da Diocese de Rio Branco foi possível a existência do jornal Varadouro em um dos momentos mais críticos da História do Acre, da Amazônia e do próprio Brasil: a ditadura civil e militar que durou de 1964 a 1985.
No dia 17 de junho deste 2024 a Igreja Católica e a Amazônia lembraram os cincos anos da passagem do líder religioso da floresta, o bispo dos seringueiros. Depois de ser uma das figuras centrais nas páginas impressas do Varadouro, aqui fazemos justa homenagem a ele em nossas novas páginas digitais.
Dom Moacyr teve papel essencial em todo o contexto social e político da Amazônia em seus quase 50 anos de liderança entre as dioceses da capital acreana e de Porto Velho. Desde a antiga Prelazia Acre Purus sua atuação foi marcada pela defesa e acolhida dos milhares de seringueiros expulsos das colocações durante a chamada bovinização da Amazônia. Famílias seringueiras retiradas à força de seringais pelos “paulistas” que aqui chegavam para transformar a floresta em pasto. O termo “paulista” fora dado a todos os que chegavam à região vindos de outros estados dispostos a fazer do Acre um enorme latifúndio.
Em meio a esse momento de graves violências e violações dos direitos humanos, e num contexto de censura à liberdade de expressão, o bispo catarinense transferido para o Acre em 1971 viu a necessidade de retirar do invisível as opressões sofridas por seringueiros e povos indígenas marginalizados nas periferias de Rio Branco. É então onde nasce o jornal das selvas.
Coube aos jornalistas Elson Martins e Silvio Martinello a missão de dar vida ao Varadouro, um veículo que trazia em seu próprio nome a marca da identidade do Acre e sua relação com a floresta. Dom Moacyr retirou dos cofres da Igreja o dinheiro que iria bancar os custos de produção e impressão do jornal. O dinheiro era para ser emprestado. Assim que o jornal conseguisse sua sustentabilidade financeira, voltaria ao tesouro eclesial, o que nunca ocorreu.
Produzir um jornal alternativo em plena ditadura militar e em plena Amazônia não era fácil missão. Foram incontáveis as dificuldades: o primeiro número, em maio de 1977, foi impresso na gráfica da Imprensa Oficial do Estado (Serda). A reportagem de capa denunciava a situação de vida precária de indígenas expulsos de suas terras morando na periferia de Rio Branco. Pelo seu conteúdo “subversivo”, Varadouro foi logo proibido de ser impresso na gráfica estatal.
“O dinheiro [emprestado por Dom Moacyr] foi gasto em vão. Somente serviu para produzir o primeiro número, porque o governador Geraldo Mesquita não deixou tirar o segundo na imprensa oficial já nasceu censurado”, recorda Elson Martins. Hoje aos 85 anos, Elson é o conselheiro editorial do Varadouro da era digital, responsável por guiar a nova geração de jornalistas que conduz o jornal das selvas.
“Dom Moacyr não apenas alimentou a discussão pela criação de um jornal alternativo no Acre dos anos 1970 como liberou uma grana (300 mil cruzeiros de empréstimo) para garantir as primeiras seis edições mensais do jornal. Boa parte desse dinheiro, que virou uma “doação” da Prelazia do Acre Purus, foi gasta na compra de duzentos quilos de chumbo em São Paulo, para fazer funcionar uma velha linotipo encostada na Serda, para composição dos textos”, conta Elson.
Com a ajuda de outro veterano da imprensa acreana, José Chalub Leite, editor de O Rio Branco, foi possível “rodar” o número do Varadouro. “Mas o dono do diário, Luiz Tourinho, fechou a gráfica para o número três.” Luiz Tourinho era de Porto Velho, onde dirigia o Alto Madeira, com o irmão, Euro Tourinho.
“A partir daí Varadouro saiu à procura de gráficas pelo país: várias edições foram impressas em Porto Velho, Manaus, Belém, Brasilia, São Paulo e Rio de Janeiro, até encontrarmos uma gráfica em Rio Branco, a Dois Oceanos, do ex-prefeito Aragão, que mal funcionava produzindo panfletos, mas aceitamos as condições mínimas de produção”, afirma o criador do nanico da Amazônia. “A trabalheira foi infernal, inimaginável nos dias de hoje. Mas valeu a pena, porque a luta não foi pequena”, diz Elson.
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Um bispo pelos varadouros
Dom Moacyr não era o tipo de líder religioso a ficar só na igreja. Gostava de ir a campo, visitar as comunidades, perambulava pelos varadouros para saber o que estava acontecendo com os mais humildes. Ia para linha de frente nas áreas de conflito. Era temido e respeitado pela jagunçada. Ninguém ousava enfrentá-lo. Tinha autoridade não só religiosa, mas política. Não impunha respeito, mas o conquistava.
Sua militância era pela fé, combatia as injustiças. Foi a partir de seu ativismo que surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e se falou em direitos humanos.
“Dom Moacyr é, sem dúvida nenhuma, uma das figuras mais extraordinárias e relevantes da história do Acre. É difícil imaginar o que poderia ter acontecido não fosse a sua presença, a sua atuação firme, o contraponto estabelecido por Dom Moacyr num dos momentos mais difíceis da história do Acre”, define o historiador Marcus Vinícius Neves.
“Quem segurou, em grande medida, boa parte dos problemas gerados por esse processo estabelecido pela ditadura militar foi Dom Moacyr, especialmente através das Comunidades Eclesiais de Base, a formação de lideranças. O boletim Nós, Irmãos foi fundamental nessa articulação com resistência visando à sobrevivência do povo acreano mais humilde”, ele acrescenta.
“Tratava as pessoas como pessoas”
Como lembra Marcus Vinicius, Dom Moacyr abria as portas da Igreja para acolher e dar refúgio às vítimas da ditadura militar. Muitas reuniões políticas clandestinas, proibidas pelo regime, aconteciam no interior dos templos. O estilo progressista do bispo incomodava as elites acreanas entusiasmadas e beneficiadas pelo processo de bovinização do estado.
“No aspecto das articulações, Dom Moacyr sempre conseguia furar as bolhas”, define Darlene Braga, atual coordenadora da CPT Acre. Ela própria conviveu de perto com o bispo. “Falar dele, para mim, é uma mistura de carinho com saudade. Eu nunca conheci ninguém igual a Dom Moacyr. Ele tratava as pessoas como pessoas. Ele sabia o nome de cada agente pastoral, os pais, os avôs. Ele conhecia muito bem o seu rebanho”, afirma Darlene.
“Amazonizou”
“Dom Moacyr conseguia furar as bolhas e articular as ações. Quando havia um conflito, ele articulava as ações de solidariedade, de resistência, política e jurídica. Ele sempre dizia que precisávamos ter políticos, advogados, precisávamos de agentes pastorais. Sempre dizia: não tenham medo de entrar na política”, ela lembra. “Nós falamos que ele foi o pai de tudo. O pai de tudo que tem no estado do Acre. Se era luta por terra, por direitos humanos, Dom Moacyr estava presente. Ele tinha uma voz profética.”
Um catarinense de origem italiana, Dom Moacyr incorporou a alma amazônida, define a coordenadora da CPT. “Logo no início ele se amazonizou. Ele era Amazônia, mesmo não tendo nascido no Acre. Dom Moacyr era a Amazônia e faleceu sendo a Amazônia em Rondônia. Ele sempre esteve ao lado das comunidades”, comenta Darlene Braga.
O fim do esquadrão da morte
Os últimos anos de atuação do líder religioso no Acre foram marcados por sua luta para desarticular a atuação do esquadrão da morte formado por policiais, e chefiado pelo ex-coronel PM Hildebrando Pascoal. Também era na igreja que os familiares das vítimas das execuções cometidas à luz do dia nas ruas da capital recorriam em busca de ajuda. Afinal, todo o sistema oficial do Estado estava corrompido. Não tinha a quem recorrer. O Acre era um verdadeiro faroeste. Um homem definia as regras.
Mesmo com todas as atrocidades e o poder das armas dos policiais-pistoleiros, Dom Moacyr não se acovardou. Atuou politicamente com os membros do Judiciário e do Ministério Público para o fim do esquadrão e a prisão do “homem da motosserra”. Assim Hildebrando ficou conhecido pelo bárbaro assassinato de Agilson Firmino dos Santos o Baiano.
Baiano fora sentenciado pelo tribunal do crime do esquadrão por ser parceiro e ter acobertado José Hugo acusado de ter matado o irmão de Hildebrando, Itamar Pascoal, em 1996. Capturado pelos capangas de Hildebrando, Baiano foi torturado para informar o paradeiro de Hugo. Sem dar respostas, foi executado. Segundo o MP, seu corpo foi esquartejado por uma motosserra.
Em 2009 o ex-coronel voltou ao banco dos réus para ser julgado por mais um dos muitos crimes a que fora denunciado. Desta vez, seria sentenciado pelo “crime da motosserra”. Dom Moacyr saiu de Porto Velho a Rio Branco para ser ouvido como testemunha de acusação.
O “crime da motosserra”, assim considerado o “julgamento do século” à época, ocorreu sob forte esquema de segurança no Tribunal do Júri do Fórum Barão do Rio Branco, centro da Capital.
Um dos momentos mais esperados era o testemunho de Dom Moacyr. Ao fim do depoimento, o líder religioso se levantou e foi cumprimentar Hildebrando no banco dos réus. Os dois apertaram apertaram as mãos, trocaram olhares e palavras.
Dom Moacyr exerceu o bispado de Rio Branco até o fim da década de 1990. Após desarticular o esquadrão da morte, foi transferido para Porto Velho e nomeado arcebispo para assumir a Arquidiocese da capital rondoniense, função que exerceu até o dia de sua passagem, em 17 de junho de 2019.
Pelos varadouros de Rondônia
Dom Moacyr teve uma vilegiatura marcada por lutas e persistência de métodos aos quais os porto-velhenses não estavam tão acostumados. Seu modo de liderar e de entusiasmar as pessoas. Até então, a Arquidiocese conhecera dirigentes mais apegados ao espiritual – para assim dizer. Sua predileção por militantes e políticos do PT assustou a uma Capital até hoje um tanto conservadora e que faz do ato de ir à missa das 18h um caminho para obter vaga no Céu.
A vinda do arcebispo para Porto Velho, transferido pela Santa Sé, representou um grande ganho para a Comunidade Católica em Porto Velho. “Sua atuação em diversas frentes pastorais no Acre influenciou”, analisa um jornalista que prefere o anonimato.
Esse mesmo jornalista opina: “Dom Grechi era venerado por segmentos da Igreja, polêmico e de fortes posições; não negava, nem disfarçava a atuação e opção política.” Privilegiou, entretanto, um administrador da Faculdade Católica, entregando-a ao seu total mando, mesmo ele estabelecendo tratativas diretas com o Vaticano.”
Em outra situação, ele entregava a Rádio Parecis FM a um empresário do ramo que se comprometera a organizar a Rede Vida de TV. Esse mesmo empresário fez funcionar a emissora por um período, com equipamentos obsoletos. Assim, a Arquidiocese não iria obter a devida compensação por ceder-lhe a rádio.
Espiritualmente, a Igreja cresceu em Porto Velho sob o manto do arcebispo. Suas diretrizes resultaram boa organização; de admiradores que já acompanham o trabalho dele desde a antiga Prelazia Acre-Purus, ganhou aplausos. De católicos tradicionais “rifados” no comando de sua rede de comunicação e assessoria, recebeu críticas veladas. Algo que se estende até hoje, em qualquer roda de conversa na qual o assunto volta a ser comentado.
Uma de suas polêmicas intervenções foi intervir com o então ministro da Justiça Tarso Genro e com a presidente Dilma, para que o capitão PM Gracio – que tinha essa patente nos anos 1980 – saísse da prisão. Ele havia comandado policiais envolvidos na chacina do Palmeiral, onde foram mortos oito garimpeiros. O militar ganhou a liberdade no fim daquele ano.
A vida lhe impôs alguns reveses: em 2016 sofreu queda dentro de casa e teve fortes hematomas do lado direito da cabeça. Seu estado de saúde preocupou os fieis e admiradores. Locomovia-se com muito esforço. No mesmo ano, aos 71 de idade, acidentou-se na BR-364 próximo a Porto Velho. Foi parar no Hospital Nove de Julho, com graves ferimentos na coluna cervical e na perna esquerda, mais escoriações pelo corpo. A camionete em que viajava, com o motorista e um seminarista, capotou.
A polícia explicava que esse acidente fora causado pelo excesso de água na pista devido à forte chuva na região. O carro teria aquaplanado, derrapado e saído da rodovia. O motorista teve ferimentos leves e o seminarista não ficou ferido.
Dom Moacyr é daquelas lendas que vieram para Rondônia, viram, fizeram e aconteceram. Deixou marcas e um rico legado religioso e político para a Amazônia Ocidental Brasileira – incluindo, orgulhosamente, este jornal das selvas.
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