Crise climática agrava vulnerabilidade de povos indígenas da Amazônia
Secas e enchentes extremas afetam com mais intensidade e frequência as aldeias da região. Fenômenos comprometem a produção de alimentos e o acesso à água potável. O isolamento ocasionado pela seca dos rios dificulta o envio de ajuda, incluindo assistência médica. Temperaturas extremas colocam em risco modo de vida tradicional das populações da floresta
Steffanie Schmidt
Dos varadouros de Manaus
Fabio Pontes
Dos varadouros de Rio Branco
A intensificação dos efeitos das mudanças climáticas sobre os ciclos de seca e de chuvas na Amazônia deixa as populações indígenas expostas a um cenário de insegurança alimentar e hídrica. Tanto as enchentes quanto as secas extremas afetam a produção de alimentos nos roçados, a sobrevivência das criações de animais, bem como dificulta o acesso à água potável. Ao longo da última década, estes impactos se intensificaram. Em 2023, a situação ficou ainda mais grave por conta do El Niño que potencializa e prolonga o período quente e seco do verão amazônico. Sem chuvas e com temperaturas extremas, muitas aldeias perderam suas plantações. As fontes de água para beber secaram; a encontrada em poços cavados é insalubre, deixando os indígenas expostos a doenças. Os rios secos dificultam a chegada de ajuda.
Este é o cenário vivido por grande parte das populações indígenas da região Norte, das terras indígenas localizada nas cabeceiras dos rios no Acre, até as regiões de mananciais mais caudalosos no Amazonas e no Pará. Do povo Huni Kuĩ do rio Breu no Acre, aos Kokama do rio Negro no Amazonas, aos Arapium do baixo Tapajós, no Pará, os relatos são os mesmos. Roçados comprometidos, falta de água, temperaturas extremas, doenças e, para agravar, uma demora por parte do poder público em levar assistência às comunidades.
“Estamos ouvindo os indígenas e vendo nas terras indígenas que temos viajado, que o aumento do calor está alterando o que ainda existe de equilíbrio natural da temperatura, mas que pode se perder. Nos igarapés, embaixo das árvores, em trilhas, era agradável. Viver em temperatura mais alta não é fácil de resolver na floresta”, analisa Vera Olinda Sena, coordenadora executiva da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre).
“Nos últimos meses ouvimos os mais velhos falando que os animais não sabem como viver com esse calor. Está relacionado, então tudo muda no cotidiano das comunidades, mas também afeta conhecimentos e culturas. E reaprender, adaptar-se, exige tempo. Daí que medidas de adaptação e mitigação não podem mais demorar. O risco e os impactos afetam todo mundo”, alerta Vera.
“A emergência climática não deve ser um toma lá dá cá. É a decisão de salvar a humanidade. A avaliação é de pouco avanço nessa COP-28. As negociações entre os países estão lentas e perversas, enquanto isso todas as populações mais vulneráveis ficam à própria sorte”, completa a diretora da CPI-Acre.
Na Terra Indígena Kaxinawa/Ashaninka do Rio Breu, no município de Marechal Thaumaturgo, na região do Alto Rio Juruá, as comunidades vem sendo bastante impactadas pelo prolongamento da estiagem – além das altas temperaturas. Um dos principais efeitos estão sobre os roçados. As plantações estão morrendo e as sementes já não nascem como antes, sinalizando que o problema deve perdurar.
“Esse ano a mudança climática pegou muito forte a nossa plantação, tanto do roçado da praia quanto da terra firme. Na praia, a gente está acostumado a plantar nosso amendoim e nossos legumes. Plantamos no mês de maio e morreram quase todas. não nasceram por motivo de que a praia estava quente. Com a melancia foi a mesma coisa: morreram e só alguns nasceram”, diz o relato de uma liderança do povo Huni Kuĩ da TI do rio Breu. Em maio, na teoria, as temperaturas não deveriam ser extremas, pois é o mês de transição do inverno para o verão amazônico nesta porção mais sul da Amazônia.
“E o milho, que somos acostumados a plantar na praia, aconteceu a mesma coisa. Morreram quase tudo e só nasceu alguns pés. Nos roçados estão morrendo banana, mamão. Quando começa a carregar, já começa a morrer. Então é uma diferença muito forte nesse ano de 2023. Os parentes falam que colocaram veneno no rio, por isso que está morrendo tudo, mas não é nada disso não”, completa.
O agravamento dos efeitos das mudanças climáticas para as populações indígenas se dá pela falta de acesso à saúde, água encanada e saneamento. Sem abastecimento adequado, a captação é feita em áreas enlameadas e insalubres, por meio de cacimbas, aumentando a proliferação de doenças.
No Acre, na região do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Rio Juruá, duas crianças morreram por consequências de diarreia aguda. Para os médicos, o consumo de água insalubre pode ter sido a principal causa para as mortes. Outras cinco crianças precisaram ser internadas no Hospital do Juruá, em Cruzeiro do Sul, por conta da Síndrome Diarréica.
Nas terras indígenas do Acre, quando não são afetados pela seca, os povos indígenas veem suas aldeias serem inundadas pelas grandes enchentes, que passaram a ser recorrentes no estado desde 2020. As comunidades dos municípios de Jordão, Feijó e Tarauacá estão entre as mais impactadas. As cheias também destroem os roçados e as criações de animais, além de comprometer o acesso à água potável.
Um presente e um futuro vulneráveis
A terceira filha de Abilio Lopes Rodrigues, 56, indígena do povo Kokama, deve chegar no ‘abismo de um rio seco’. “É a primeira menina. Temo perder minha esposa e meu bebê”, desabafa. A crise climática que assola a Amazônia já ameaça a vida daqueles que ainda nem nasceram.
“A maior preocupação é que a minha esposa já se encontra com nove meses e não tem como remover ela daqui no momento de dar à luz. É uma gravidez delicada. Já foi até recomendada uma cesariana e não temos bote e nem um motor de popa para ir até Manaus. Antes, a qualquer momento, a ambulância vinha buscar nas comunidades, mesmo que tivéssemos que aguardar a chegada. Agora não tem nem como chegar”, afirma Abílio Rodrigues, em entrevista ao Varadouro, no final do mês de outubro.
Morador da comunidade São Tomé, localizada à margem esquerda do rio Negro, distante 180 quilômetros de Manaus, na região do arquipélago de Anavilhanas, ele conta que as 37 famílias, que somam cerca de 70 pessoas, chegaram a receber ajuda com ‘rancho’ (mantimentos) para 30 dias e 50 litros de água potável, da Prefeitura de Manaus. A maioria dos indígenas pertence aos povos Baré e Kokama.
No entanto, o isolamento se mostra assustador. “Com a seca não tem como entrar ou chegar aqui qualquer embarcação. Tivemos que andar cerca de 10 quilômetros para chegar aonde estava a balsa de alimentos, no rio Cuieras, onde ainda dá pra chegar o barco. Andamos por cima de lama e enfrentando um sol escaldante. Estamos presos pela grande estiagem”, afirma.
De acordo com Rodrigues, outras três comunidades próximas estão na mesma situação, incluindo idosos, crianças especiais e pessoas hipertensas e diabéticas. “Nosso único poço artesiano de 35 metros secou. Estamos sem água potável para usar nas necessidades diárias. Tivemos que voltar aos costumes antigos de cavar cacimba para poder lavar roupas, para tomar banho e etc”, completa.
Como agricultor, ele não consegue mais cultivar nada. Não chove há cerca de dois meses. “O temporal vem com rajadas de vento, trovões, mas não chega a chover uma chuva que molhe e regue o chão. Só chuvisco e temporal de vento”, afirma.
Essa realidade já atinge pelo menos 100 mil indígenas na Amazônia, segundo estimativa da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). Em toda a região, são 867,9 mil, 51,25% da população indígena do Brasil, segundo dados do último Censo Indígena do IBGE.
“Pedimos aos governos da Amazônia, do Brasil e do mundo que declarem emergência climática e façam algo urgentemente para enfrentar a enorme vulnerabilidade climática e social a que estão expondo os povos indígenas e populações tradicionais”, afirmou a Apiam em um comunicado divulgado em entrevista coletiva.
Rios em níveis críticos
No dia 26 de outubro, o rio Negro atingiu 12,70m, o nível mais baixo desde o início da medição no Porto de Manaus em 1902., Em 2023, a vazante surpreendeu pela velocidade com que chegou: já no dia 13 de outubro, havia batido a marca de 13,91 metros. Em 2010, essa marca foi atingida no dia 21 de outubro. Quando está cheio o rio chega a atingir uma cota que varia entre 27 metros e 3029 metros.
Os rios Solimões, Madeira, Juruá e Purus também secaram em ritmo recorde. Em Rio Branco, o nível atual do rio Acre, em 20 de novembro, é de 1,56 metro. Um volume crítico para um mês de inverno amazônico, quando o manancial tem uma média histórica entre três e quatro metros. Em Porto Velho, a cota atual do rio Madeira é de 2,52 metros, de acordo com último dado do Boletim de Alerta Hidrológico da Bacia do Amazonas (SAH AMAZONAS), do Serviço Geológico do Brasil (SGB, antiga CPRM).
A região está sob pressão do fenômeno climático El Niño, que aquece as águas do oceano Pacífico, que, devido à intensidade com que ocorre este ano, dificulta a formação de chuvas na Amazônia. Aliado a esse cenário, está o aquecimento das águas do Atlântico, que, por sua vez, também reduz a quantidade de chuva na região, sobretudo mais ao sul da Amazônia ocidental.
Segundo análises científicas, a situação tende a se manter crítica e, em dezembro, mês chuvoso da região amazônica, o El Niño alcançará sua “potência máxima”, com os efeitos para o clima da Amazônia se estendendo para o primeiro trimestre de 2024.
Geração de energia afetada no Alto Rio Negro
Em São Gabriel da Cachoeira (a 850 quilômetros de Manaus), município com a maior população indígena do país, passa por racionamento de energia. De acordo com a concessionária Amazonas Energia, o abastecimento da usina local é feito por meio de óleo diesel, porém, o navio com o combustível encalhou no rio Negro, o que compromete a geração de energia para a cidade.
Nas redes sociais, o desespero vem em forma de pedido de socorro. Em sua conta do Instagram, Auricelia Arapiaum, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiaun (CITA), que representa 13 povos do baixo Tapajós (Santarém, Belterra e Aveiro), fez um apelo por sobrevivência.
“Estamos sofrendo impactos muito grande (sic) das mudanças climáticas em nossa região. Queremos ações urgentes e emergenciais dos governos. Nossos alimentos estão sendo devastados pelo fogo, nossos peixes estão sendo mortos pela seca. Não somos os responsáveis por isso, por que temos que sofrer as consequências? Por que a mãe terra, a nossa floresta, tem que sofrer as consequências do que os não indígenas têm feito dentro e fora do nosso território?”, questiona.
Ela pede pela urgência no envio de alimentos, combustível e água potável. “Este é um pedido de socorro pelas nossas vidas, para que parem de nos matar e de desmatar.”
Em vídeo obtido por Varadouro, o cacique Levi Munduruku, da aldeia Jacaré, da TI Coatá-Laranjal, no município de Borba (já na divisa com o Pará), também relata graves problemas vividos pela comunidade por conta da seca. Entre eles estão a dificuldade de acesso à água potável, acessibilidade comprometida por causa do volume baixo do rio Mari-Mari, dificultando tanto a saída das pessoas para atendimento de saúde quanto o transporte escolar das crianças. Como a escola da aldeia está sem funcionar, elas precisam estudar na aldeia vizinha. Com o rio seco, o transporte fluvial fica inviável.
Tragédia anunciada
Ainda em 2008, o estudo “Impactos da Mudança Climática em Manaus e na Bacia do Rio Negro”, com textos-resumo das apresentações feitas durante o seminário e oficina realizado em Manaus pelo Instituto Socioambiental (ISA) com populações indígenas sobre as percpeções destas em relação ao clima, apontava que a região do alto rio Negro possui um grande contingente populacional indígena que, praticando agricultura de baixa tecnologia, são extremamente vulneráveis quanto à oferta de chuvas na região.
“Mudanças climáticas vão certamente colocar pressão sobre os ecossistemas naturais e por consequência sobre as populações nativas que vivem e exploram estes recursos, inclusive por razões econômicas. As consequências desta pressão na oferta destes recursos é ainda incerta mas já exige medidas do poder público no sentido de oferecer novas alternativas econômicas e, com isto, diminuir a vulnerabilidade destas populações que teriam novas alternativas de uso econômico de recursos naturais”, diz trecho do documento.
O pesquisador indígena Dzoodzo Baniwa (também é conhecido como Juvêncio Cardoso), que participou do estudo e vem, desde 2005, monitorando o resultado de eventos extremos (como cheia e seca) na comunidade Canadá, no rio Ayari, afluente do rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira. Ele ajudou a criar a Escola Baniwa Eeno Hiepole, que pretende transformar em um Centro Integrado de Pesquisa e Formação Indígena, onde já adotam métodos científicos aliados ao conhecimento tradicional.
“Construímos uma ciência indígena resgatando algumas memórias dos mais antigos e organizando conhecimento que é milenar. Eles relatam já terem visto secas extremas, há pelo menos 30 anos, segundo conseguimos estimar, é que temos buscando identificar como reagir a essa realidade. O calor está sendo muito intenso e a saúde das mulheres, que são as responsáveis pela roça, está se acabando”, afirma. Atualmente, eles trabalham em parceria com a Fiocruz para identificar esses impactos na saúde da mulher indígena.
Mestre em Ciências Ambientais e professor licenciado em física intercultural, ele coordena a rede de Rede de Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), com 60 jovens que monitoram, a partir de observações e registros de ciclos ambientais locais, a situação do clima no território. Além do ciclo das águas, são observados os ciclos migratório de peixes, aves e fauna terrestre, além de dados socioeconômicos indígenas.
“As plantas já não crescem como antes com a alteração da temperatura e da umidade. O solo começa a ficar seco e isso preocupa o nosso futuro”, afirma. A seca chega em uma realidade não totalmente recuperada, de extrema cheia, registrada em 2021, quando um total de 50 roças da comunidade foi comprometido, afetando, principalmente, a plantação de mandioca, base alimentar das populações indígenas. “Se continuar assim, corremos o risco de perder de vez a espécie da mandioca”, completou.
O sistema agrícola tradicional do rio Negro é registrado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2010 como patrimônio cultural brasileiro, um saber que trabalha o plantio de mandioca, batata, abacaxi, banana, pimenta de forma consorciada.
Ações Funai
No último dia 11 de novembro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) apresentou um balanço das ações desenvolvidas para mitigar os efeitos da seca extrema entre as aldeias da Amazônia.
“A Funai tem promovido a interlocução com outros órgãos governamentais e instituições da sociedade civil organizadas para identificar as principais necessidades dessas comunidades, que incluem água potável, cestas básicas, medicamentos, kits de higiene e hipoclorito. O objetivo é assegurar que as necessidades sejam prontamente atendidas.”
No dia 21 de outubro, o governo do Amazonas anunciou medidas específicas para os povos indígenas, com o envio de cestas básicas para comunidades indígenas das regiões do Alto Solimões e Alto Rio Negro. A decisão de enviar os mantimentos foi tomada durante uma reunião do Comitê Intersetorial de Enfrentamento à Estiagem. Anteriormente, as comunidades estavam sendo atendidas no âmbito emergencial das mais de 630 mil pessoas afetadas no estado.