Marco temporal: Após decisão do STF, lideranças alertam para próximos desafios em meio a impasses jurídicos e ofensivas do Congresso
Movimento indígena aponta brechas deixadas pelo julgamento da Suprema Corte, além da tramitação de projetos apresentados pela bancada do agronegócio que quer colocar, a qualquer custo, tese do marco temporal na legislação brasileira. “São lutas que ainda permanecem, principalmente porque temos um Congresso que está em defesa dos interesses do agro”, diz liderança Munduruku.
Steffanie Schmidt
dos varadouros de Manaus
Apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de soterrar, de uma vez por todas, a tese do marco temporal nos processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, por 9 votos a 2, na última quinta-feira, 21, tramita no Congresso Nacional proposta legislativa apoiada pela bancada do agronegócio, que tenta estabelecer na norma jurídica do país o entendimento de que só podem ser reconhecidos como territórios indígenas as áreas que estavam por eles ocupadas até a data de promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.
O Projeto de Lei 490/07, aprovado na Câmara e em discussão no Senado (PL 2903/23), vai em sentido contrário à decisão do STF, o que a torna uma proposta já morta, ante o entendimento de sua inconstitucionalidade decidida pela ampla maioria dos ministros da Suprema Corte. No Amazonas, estado que detém a maior população indígena do país, com um total de 490 mil pessoas, lideranças que viram a Constituição Federal de 1988 reconhecer os direitos dos povos originários e jovens que ainda brigam pela manutenção desses direitos, comentam a situação.
“Todo esse processo de luta e resistência pelo movimento dos povos indígenas no Brasil, essa trajetória, vem desde o princípio, quando os europeus chegaram ao Brasil. Desde lá a gente sempre se defendeu e até aqui resistimos e seguimos. Esse marco temporal é um pouco dessa agressividade dessas pessoas que ocupam hoje o Congresso Nacional, e que não respeitam, muitas vezes, a interpretação constitucional. Eles vão muitas vezes pelo interesse de grupos, interesse do capitalismo, seguindo e avançando, desde que chegaram aqui nesse continente e continuam avançando através desses instrumentos”, afirma, ao Varadouro, Nildo José Miguel Fontes, do povo Tukano, da Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira
Vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Nildo Fontes alega, ainda, que a interpretação da Constituição sempre esteve clara, mas foi posta em xeque por aqueles que têm interesse na exploração de recursos minerais presentes nas terras indígenas.
O tema ficou ‘em aberto’ e deverá voltar à pauta do STF esta semana, por conta do voto do ministro Dias Toffoli, que, embora tenha consolidado a maioria de 5 votos contrários à tese do marco temporal, contra dois favoráveis – proferidos pelos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça – incluiu a possibilidade de aproveitamento de recursos hídricos, orgânicos e minerais de terras indígenas, sob o argumento de que o tema sofre com uma suposta omissão legal e prejudica o desenvolvimento econômico do país.
“Agora o STF está dando respostas para essas pessoas, como guardião da Constituição. É um marco histórico, mas agora vem outro desafio: essa questão presente na Constituição que diz que, para explorar terra indígena, tem que regulamentar na forma da lei. Esse é o próximo desafio a ser mobilizado para a gente estar acompanhado o trabalho do Congresso”, analisa a liderança Tukano.
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“Como vão fazer as leis para regulamentar a exploração dentro das terras indígenas? Uma coisa é o que pede a Constituição, agora, o conteúdo da legislação, a gente não sabe. Eles vão aproveitar essa abertura para avançar e ‘invadir ‘legalmente nossos territórios, a serviço de interesses de grupos empresariais? Temos que estar atentos para começar as mobilizações para que essa regulamentação seja a partir da perspectiva indígena, uma vez que esses territórios já vinham se estruturando com seus próprios protocolos de consulta, estabelecidos para se proteger. Isso tem que ser inserido nessas leis”, argumenta.
Em carta assinada pelo Corpo Jurídico de advogados indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), manifestou profunda preocupação com a proposta, considerando a possibilidade de que o STF “determine ao atual Congresso Nacional, amplamente ruralista e contra os direitos indígenas, a edição de lei ordinária sobre este tema, sem que tenha havido a devida participação dos Povos Indígenas neste processo”
“Dessa forma, tal ‘outorga’ ao Poder Legislativo, no que se refere à definição jurídico-normativa sobre a mineração em terras indígenas, além de se tratar de tema alheio ao discutido no julgamento do STF, representa, na prática, a alta possibilidade de instituição de diploma contrário aos interesses indígenas no país, em vista à atual configuração do Congresso Nacional brasileiro”, se manifesta a Apib, em nota.
Para além de todas essas contradições, estão em disputa ainda duas visões sobre a possibilidade de indenização de não-indígenas que ocupam terras indígenas a serem demarcadas: uma trazida pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, que defende que seja estabelecida uma compensação como condição prévia para as demarcações; e outra presente no voto do ministro Cristiano Zanin, que afirma que a oficialização das terras indígenas não pode depender de indenização prévia de posseiros.
Neste caso, ‘posseiros de boa-fé’ que tenham ocupado terras da União sem saber tratar-se de terras indígenas teriam que entrar com um processo judicial à parte para serem compensados, sendo que a demarcação não dependeria da existência nem do resultado desse processo.
Em nota, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) alerta que a indenização nesses moldes tornaria inviáveis as demarcações, já que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não teria orçamento para fazer as compensações em todos os casos de disputa.
Dimensão histórica
A disposição para dialogar com a sociedade, formada por não-indígenas, em sua maioria, e pautar o debate sobre o marco temporal em qualquer oportunidade vislumbrada explica o sentimento de conquista de uma etapa da batalha que eles conhecem desde o nascimento. Universitários que integram o Movimento de Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam) estiveram mobilizados o ano todo levando esclarecimentos, distribuindo folders, participando de debates junto com as demais lideranças do movimento indígena em nível estadual e nacional.
No estado, a luta se deu em conjunto com Fórum de Educação Escolar Indígena do Amazonas (Foreeia), Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas – Makira E’ta e Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM).
“O estudante indígena dentro da universidade é uma extensão do território dele, então, construir esse diálogo, em todas as oportunidades, é demonstrar que, se os territórios não são assegurados, é impossível ter políticas acadêmicas asseguradas para o estudante indígena”, afirma Izabel Cristine, do povo Munduruku, membro do Meiam.
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A responsabilidade de mobilizar o debate e a luta ganharam mais peso diante do reconhecimento de que a capital mais populosa da região Norte é, também, a capital mais indígena do país, conforme dados do Censo 2022, divulgados em agosto. Manaus tem 71.713 indígenas, 0,3% dos habitantes. Em 2010, eram apenas 3.837 pessoas. O Amazonas concentra a maioria dos indígenas do país, com 28,98% da população, numa diversidade que abrange 66 povos diferentes.
“É uma grande responsabilidade com relação às lutas em defesa dos territórios”, afirma a jovem liderança que é historiadora, com mestrado na mesma área. Ao olharmos a partir dessa dimensão, vemos que o colonialismo permanece, se reconfigura e perpetua com o passar dos tempos, explicitando formas de violência que vêm desde as formas de contato, passando pelo momento crucial para a história do povos indígenas, que foi o período ditatorial cívico-militar e, agora, com o Marco Temporal”, explica Izabel Cristine.
De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, finalizado em 2014, apenas na investigação de dez povos, foram estimadas mais de oito mil mortes de indígenas decorrentes da ditadura militar. Treze recomendações foram apresentadas, entre elas, um pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos indígenas pela tomada de suas terras e demais violações de direitos humanos, além da instalação de uma Comissão Indígena da Verdade.
“Além de ser um período muito truculento, com práticas genocidas, expulsão e invasão de terra, o direito à vida nos foi negado. Antes da promulgação da Constituição Federal, os indígenas não eram reconhecidos nem como brasileiros, não tinham direitos nenhum”, explica.
“O marco temporal é essa expressão que se configura de maneira como uma resposta da bancada ruralista aos direitos dos povos indígenas. Expressa a negação desses povos; expressa a legitimação da violência que sofremos antes de 1988. É muito significativo que, dentro desse aspecto, nesse âmbito do legislativo, que é colonizador, branco e onde indígenas tiveram dificuldades de acesso, hoje tem leis pensadas e discutidas pelo não-indígena, decidindo o futuro dos indígenas. Nosso futuro ficou na mão dessas pessoas, da negação da história e da violência sofridas”, completa.
Izabel Cristine lembra ainda que a decisão do STF contra o marco temporal representa “o Brasil dos papéis, o Brasil oficial que exigiria dos povos indígenas que tivessem um papel comprobatório da presença em suas terras antes de 1988” revendo a própria história, construindo um novo discurso que passa a ouvir “a história não oficial, de povos historicamente explorados, subalternizados e violentados pelo estado brasileiro”.
“É muito forte quando pensamos sobre isso; ter essa visão de que não éramos considerados nem brasileiros. Isso nos dá a dimensão da maneira como foram tratados nossos ancestrais. [A decisão do STF sobre] O marco temporal vem na condução da vitória, mas também não nos deixa desmobilizados: temos outras lutas e outras demandas, no Senado, por exemplo”, ressalta ela.
Completa a jovem liderança: “São lutas que ainda permanecem, principalmente porque temos um Congresso que está em defesa dos interesses do agro, Temos que lidar com a exploração indevida da Amazônia, com essa cultura que reduz a nossa floresta, a nossa mãe minimamente a recursos naturais. Esse estado precisa passar a entender a terra a partir da perspectiva dos povos indígenas e não só pelo que ela tem a nos oferecer, mas das relações recíprocas homem e terra. Nós somos ela e ela somos nós”.