Avanço da soja na Amazônia ameaça sítio arqueológico milenar
De acordo com paleontólogo que iniciou estudos sobre geoglifos, pesquisadores encontram dificuldades para entrar nas fazendas para fazer pesquisas. Ao exigir grandes áreas de terras planas, a monocultura pode aterrar as valas que formam os desenhos geométricos localizados dentro das propriedades rurais do Acre, do Amazonas e de Rondônia. Estudos e pesquisas podem ficar comprometidos, deixando sem respostas perguntas sobre uma das civilizações mais misteriosas da Humanidade; a Aquiry.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
A expansão das áreas de monocultura da soja na Amazônia coloca em risco a preservação de sítios arqueológicos da floresta, cujas datações remontam há mais de dois mil anos. Descobertos no Acre e estudados pelos cientistas do estado desde o início dos anos 2000, os geoglifos ocupam as terras mais desejadas pelo agronegócio para o cultivo de grãos. Grande parte destes geoglifos – desenhos geométricos construídos por o que passou a ser definido como a Civilização Aquiry – está dentro de propriedades rurais localizadas às margens das BR-364 e BR-317 – muitos deles, inclusive, foram cortados pelos traçados das rodovias e ramais.
Até bem pouco, a única atividade desenvolvida nestas fazendas era a pecuária. Com o advento da monocultura da soja, ainda no governo Tião Viana (PT), os proprietários das terras passaram a investir na agricultura mecanizada de grande escala. O problema é que o cultivo da soja exige terrenos planos, o que pode provocar o aterramento das valas dos geoglifos. Muitos dos desenhos ainda não foram estudados por completo pelos cientistas, daí a importância de protegê-los para entender melhor toda a complexidade histórica, arqueológica e antropológica que os envolve.
“Enquanto estávamos só na pecuária, o gado pastava, o cavalo andava, a gente entrava pelo campo e estava tudo bem. Agora, com o monocultivo, tudo mudou. Anos atrás eu alertei sobre o perigo dos maquinários, dos tratores. O monocultivo exige que a terra seja plana, e os geoglifos são valas”, alerta o paleontólogo Alceu Ranzi, em entrevista ao Varadouro. Professor aposentado da Universidade Federal do Acre (Ufac), ele foi um dos primeiros pesquisadores a liderar os estudos sobre os geoglifos, sendo reconhecido internacionalmente pelo trabalho.
Segundo Ranzi, desde o início da monocultura da soja, os pesquisadores passaram a encontrar dificuldades de acesso ao interior das fazendas. “A pessoa pode ser proprietária da terra, mas ela não é proprietária do bem patrimonial do país. Não se pode permitir que não se tenha acesso [aos geoglifos], fazer pesquisas.”, diz. Ranzi continua: “Não queremos entrar em choque entre nós, pesquisadores, com os fazendeiros. Precisamos chegar a um termo comum.”
O primeiro caso de aterramento de geoglifos no Acre foi denunciado em agosto de 2020. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pediu ao Ministério Público Federal a abertura de inquérito para apurar o caso de um desenho geométrico afetado por um trabalho de terra planagem dentro da Fazenda Crixa II, em Capixaba. Ela é de propriedade do então presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Acre, Assuero Veronez.
O pesquisador diz não saber se há novos casos de geoglifos que tenham sido aterrados nas agora fazendas da soja do Acre. O monitoramento deste sítio arqueológico, completa ele, é feito em tempo real a partir de imagens de satélites disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Qualquer alteração nas superfícies dos desenhos geométricos é detectada pelos satélites, e o alerta emitido.
Veronez é um dos principais interlocutores do agronegócio com o governo bolsonarista de Gladson Cameli (PP), cuja primeira eleição, em 2018, se deu com base na promessa de flexibilizar as regras ambientais do Acre para impulsionar a economia rural. Desde então, o Acre registrou níveis recordes de desmatamento da Amazônia e queimadas. Com o agronegócio ocupando a sala principal do Palácio Rio Branco, muitos produtores se sentiram à vontade para fazer o que quisessem – até aterrar um dos mais importantes sítios arqueológicos do país.
Em 2023, segundo dados do governo, a soja foi o principal item exportado pelo Acre, alcançando a cifra de US$ 18,8 milhões. A venda de grãos para o exterior superou itens tradicionais, como a madeira e a carne. Os números revelam a consolidação e a expansão das áreas de soja no Acre – com destaque para os municípios do Baixo e Alto Acre.
E é justamente esta a região a concentrar a maior quantidade de geoglifos. O nome Civilização Aquiry é uma referência ao antigo nome do rio Acre. Aquiry era a forma como os Apurinã se referiam ao manancial, e significa o rio dos jacarés. Além do Acre, os geoglifos se espalham pelo Sul do Amazonas, noroeste de Rondônia e pela Amazônia boliviana.
Recentemente novos estudos detectaram a presença de geoglifos também no Mato Grosso e no Pará. No Brasil, a região da tríplice divisa Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro) tem uma das maiores concentrações de geoglifos. A zona Amacro, desde 2019, passou a ser a nova frente do desmatamento e de crimes ambientais na Amazônia.
A “civilização da soja” x a Civilização Aquiry
“Se pensa em desenvolvimento apenas na quantidade, na produção de sacos, de quantos milhões de dólares vai ser exportado, enquanto que o verdadeiro desenvolvimento inclui, inclusive, o patrimônio do país. Preservar as terras indígenas, os parques nacionais, o patrimônio, as comunidades, seus valores culturais. Não pode vir uma nova leva de mercado e ignorar toda a História do Acre”, da Amazônia, deixando uma terra arrasada”, comenta o paleontólogo.
Para o especialista, é necessário que o governo faça um trabalho de educação com os proprietários das fazendas para garantir a proteção dos desenhos. “Os geoglifos são um patrimônio do Acre. O Acre está no centro de uma grande civilização. Todo este trabalho de pesquisas científicas sobre os geoglifos nasceu em Rio Branco, com o nosso trabalho.”
Nas escavações feitas até aqui, arqueólogos encontram peças de cerâmica, que seriam os vestígios da presença das populações que habitavam essa porção do continente americano. Entre outros itens descobertos estão restos orgânicos de cozinha, como ossos de animais, grãos de milho, semente de abóboras, cascas de castanhas, pupunha e frutos de outras palmeiras.
“Este patrimônio nos ensina que há um novo jeito de viver na Amazônia. Não precisa derrubar tudo e queimar. Fazer uma nova ‘civilização da soja’. Nós temos espaço para todos no Acre. Temos espaço para a agricultura, para a pecuária, mas isso não necessita destruir o que temos de patrimônio de milhares de anos”, ressalta Alceu Ranzi.
Ele completa: “A Amazônia não pode ser destruída para plantar soja. Temos que ter uma nova civilização na Amazônia, não a civilização do ferro e fogo. Precisamos de um modelo econômico que preserve o patrimônio, os geoglifos. Não há necessidade de destruir, aterrar tudo.”