Uma carta a Lula

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República Teocrática Neopentecostal do Acre


Ao excelentíssimo senhor presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva


Caríssimo presidente Lula, eu me chamo Fabio Pontes, sou acreano, nascido e criado pelas curvas do rio Aquiry – como, assim, me autodetermino. Na verdade, cresci mais às margens do igarapé São Francisco, que este ano transbordou tanto que suas águas invadiram a minha casa. Por aqui exerço a função de jornalista. Aliás, enquanto jornalista fui bastante crítico aos seus dois primeiros governos, bem como aos governos petistas no Acre. Não me arrependo disso. Mantive e mantenho a minha ética e coerência jornalísticas. As críticas que fiz às gestões de seu partido, as mantenho agora no Acre atual.

Mas não escrevo esta epístola para falar do passado. Quero falar do Acre de 2023. Soube pelo noticiário local que vossa excelência pretende fazer uma visita ao Acre em breve, talvez em outubro. Sinceramente não sei o que o senhor vem fazer aqui. Nestas bandas da Amazônia Ocidental brasileira o senhor recebe do povo acreano o pior tipo de tratamento possível (nem queira saber). O Acre tornou-se uma terra extremamente hostil, perigosa – e não falo apenas no sentido clássico da violência policial, do crime organizado, das facções criminosas. Com esse tipo de violência já estamos acostumados. Nossa história foi escrita na base da violência. Veja os casos de Chico Mendes e Wilson Pinheiro, executados lá na década de 1980. O senhor conheceu os dois muito bem.

Eu falo da violência política representada pela consolidação de uma extrema-direita reacionária, bolsonarista, fundametalista, cuja principal base de sustentação são as igrejas evangélicas neopentecostais. Lógico que não são todas. Ainda sobram algumas poucas igrejas que ainda mantêm os valores básicos do cristianismo, como a tolerância, a aceitação do outro, a construção e não a desconstrução do próximo. Mas, infelizmente, é a minoria.

A coisa é tão séria que passei a chamar nosso querido estado de República Teocrática Neopentecostal do Acre. Nós, que já fomos a República Independente do Acre nos tempos do Imperador Galvez, chegamos a este triste episódio de nossa História. Sim, já somos quase uma república teocrática, aos moldes de um Irã, ou qualquer outro país do Oriente Médio. Lá, a religião oficial é o islamismo. Aqui, dizem ser o cristianismo – um cristianismo que desconheço ter lido nos Evangelhos ou nas cartas de Paulo.

O Acre passou a ser uma das principais bases do que há de mais repugnante do bolsonarismo – acho a afirmação até redundância, pois o bolsonarismo em si é repugnante. Dizem que Santa Catarina é o berço da extrema-direita golpista. Estando aqui no Acre, tenho lá minhas dúvidas. Tanto que, em 2018, no segundo turno, aquele ser repugnante eleito presidente obteve, proporcionalmente, mais votos dos acreanos do que dos catarinenses.

Veja isso: em 2022, mesmo tendo um governador atolado em denúncias gravíssimas de corrupção apontadas pela Polícia Federal e a Controladoria Geral da União, os nossos cidadãos de bem, patriotas, conservadores, defensores da moral e dos bons costumes, preferiram reeleger este cidadão, a votar em seu principal adversário. O motivo? Ele é do PT, o Jorge Viana, que o senhor bem o conhece.

Agora em março último, estes mesmos cidadãos de bem ficaram furiosos com uma nova operação da PF que confiscou os bens e o passaporte do patriota bolsonarista reeleito governador. Diziam, pelas praças e bares, ser uma tramoia arquitetada por Jorge Viana e Flávio Dino. Os malvados comunas querem apenas manchar a imagem deste patriota. Afinal de contas, por qual motivo um homem tão rico iria roubar o erário? Este é o discurso dos tolos aqui, presidente.

O caso mais recente que mostra nosso extremismo à direita reacionária e intolerante foi a decisão do ex-prefeito de Rio Branco Marcus Alexandre de se desfiliar do PT, para poder ter chances de ganhar as eleições em 2024. Não sei se o senhor sabe, mas a capital de nossa república gospel está num buraco azul. O atual prefeito – um bolsonarista ferrenho, pra variar – é um desastre na gestão pública.

A cidade está um caos. A única coisa que sabe fazer é pintar as obras dos prefeitos passados de azul. Agora até as bases dos postes de iluminação e ciclovias são azuladas. Assim que assumiu o cargo, mandou a tropa de choque descer a porrada em trabalhadores da limpeza urbana. Eles faziam protesto contra os salários atrasados. Nos últimos dias, não teve a coragem de dialogar com trabalhadores da educação, e fugiu da prefeitura pelas portas do fundo. Sim, o destino do nosso povo está com esse tipo de gente.

Mesmo o Marcus Alexandre tendo sido um excelente prefeito (e olha que eu fui uma das vozes críticas à sua gestão) e liderando as pesquisas para 2024, ele precisou sair do PT. Se continuasse no partido dos comunistas malvados, teria muitas chances de sair derrotado nas urnas. Certamente os nossos cidadãos cristões de bem preferem manter Rio Branco mais quatro neste buraco azul, a votar num candidato do PT. Imagina uma coisa dessa. Mas este é o fundo do poço no qual nos metemos.

É por isso que afirmo: passamos a ser um estado de ambiente político perigoso, controlado por gente reacionária, fundamentalistas religiosos. Gente que não pensa política com a razão, mas, sim, coloca seus valores e princípios religiosos acima de qualquer racionalidade. E, cá entre nós, sabemos que tudo isso não passa de hipocrisia. Um tremendo oportunismo político-eleitoral-religioso. A fé das pessoas virou moeada de troca política, negociada na cara dura. Não sei se o senhor viu o caso de um missionário eleito senador falando palavras proféticas aí no aeroporto de Brasília. De vez em quando eles são desmascarados.

Recentemente, o senhor enviou quase um bilhão de reais para recuperar a BR-364 que, em quatro anos, foi destruída pelo bolsonarismo. Por muito pouco o nosso Vale do Juruá não ficou isolado. O senhor acha que o governador bolsonarista ao menos fez um gesto de agradecimento público ao seu governo? Colocou o seu nome ali num cantinho bem discreto, pra não dizer que não o citou. Caso ele ousasse fazer um grande agradecimento ao petista Lula em público, corria o risco de ser apedrejado em praça pública pelos nossos aiatolás de Jeová.

Essa é a nossa triste realidade, presidente, E é este ambiente que o senhor vai encontrar aqui ao desembarcar. Ah, e se vier mesmo entre agosto, setembro ou mesmo outubro, traga uma máscara para não respirar a fumaça da floresta pegando fogo. Os irmão aqui adoram derrubar uma árvore e botar fogo no mato. Dizem que é oferta aos céus. Desde 2019, nesta época do ano, só inalamos PM 2.5. Não sei se vossa excelência sabe o que é PM 2.5, mas depois visita a página do Varadouro e leia o jornal das selvas.

Outra coisa: o senhor não vai mais encontrar aquela multidão de vermelho em suas agendas no Acre. Isso só acontecia quando o PT estava no poder aqui. Aqueles comunistas de cargos comissionados agora são todos conservadores, neoliberais, patriotas e pessoas de bem com a Bíblia debaixo do sovaco. Portanto, se contente só com a presença do Cezário Braga e uns gatos pingados que sobraram no PT do Acre. Aqueles milhares de filiados petistas era tudo oportunismo – só para ter uma boquinha na máquina do estado. Teve até comunista do PCdoB que nem esperou a falecida Frente Popular sair do poder, e já se debandou para o lado de lá.

Mas, mesmo com todo este cenário deplorável em que nos encontramos, seja bem-vindo ao Acre. Vamos torcer e rezar muito para que isso acabe, e, um dia, voltemos a ser um estado normal. O Acre é hoje um lugar triste, presidente. Tomado pela violência. Não há mais como a gente colocar a cadeira de balanço na frente das casas para bater um bom papo. Nem nas cidades do interior. As facções do Sudeste controlam tudo. Vivemos um desgoverno. O governador está com mandato sub judice – é processado no Superior Tribunal de Justiça.

O prefeito entregou a chave da cidade para Jesus, mas tenho certeza que o mensageiro do amor jamais desejaria habitar numa Rio Branco controlada por fundamentalistas religiosos, gente intolerante, perigosa – aqueles mesmos fariseus que ele combatia quando estava aqui pela Terra. Se Jesus viesse até a Rio Branco de hoje com a mesma pregação de dois mil anos atrás, seria chamado de comunista, defensor de bandido.

Mas não vamos perder a esperança de o Acre voltar a ser aquele lugar alegre, cheio de histórias e de inspirações, de pessoas guerreiras. Quem sabe a sua vinda seja o primeiro passo para sairmos deste buraco azul. Continuaremos aqui na resistência.

Sem recuar, sem cair e sem temer – como reza a letra de nosso Hino Acreano.



Fabio Pontes – jornalista acreano, nascido e criado pelas curvas do Aquiry
Editor-executivo do Varadouro
fabiopontes@ovaradouro.com.br




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