UMA SELVA MISTERIOSA

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Pilões-bacias em Alta Floresta d’Oeste indicam civilização milenar; avanço do agronegócio ameaça relíquias históricas

Medição contribui com o reconhecimento do patrimônio histórico (Foto Júnior Stocker)


Grupo de amigos apaixonados pelas histórias místicas que envolvem a Amazônia tenta entender função de peças e de todo o sítio arqueológico presente na região central de Rondônia; para eles, local pode ter relações com civilizações milenares que habitaram o que hoje é o território peruano. Toda essa riqueza milenar (como os geoglifos) encontra-se em risco pelo avanço desenfreado do agronegócio; desmatamento e queimadas deixam pesquisadores em alerta.

Montezuma Cruz
Dos varadouros de Alta Floresta d’Oeste

Um cenário de pesquisa e descobertas de pilões-bacias de pedra na densa área florestal nativa na Zona da Mata em Rondônia volta a ser visitado por pesquisadores autônomos. O sítio fica próximo à Terra Indígena Massaco e à Reserva Biológica do Guaporé (a 528 quilômetros de Porto Velho). Alta Floresta d’Oeste exibe evidências de ocupação secular. “Sabemos que a Terra é habitada há milhões de anos, e na região Amazônica não é diferente”, diz o juiz da Comarca de Ji-Paraná, Maximiliano Deitos, um dos pesquisadores. “Não especialista”, porém atuante nas causas ambientais, ele vem se dedicando há anos às causas arqueológicas e indígenas. Deitos acredita que a concentração de sítios-ruínas nos municípios de Alta Floresta D’Oeste, Alto Alegre dos Parecis e Rolim de Moura teria mesmo que despertar a ciência.

A derradeira excursão do grupo às pedras aconteceu no último dia 13 de outubro. Quatro amigos de Alta Floresta e Ji-Paraná saíram numa expedição para revisitar o lugar anteriormente descoberto pelo biólogo, farmacêutico e pesquisador autônomo Joaquim Cunha (in memoriam), e pelo indigenista Evandro Santiago.  

Essa área do interior de Alta Floresta d’Oeste, estrategicamente na ponta final da Serra dos Parecis, possui rica biodiversidade. Fica exatamente na fronteira entre biomas: o Cerrado a leste e norte; a Floresta Amazônica a oeste; e Pantanal ao sul, conhecido como Pântanos do Guaporé, propício para variação de plantas e animais.

Joaquim Cunha acreditava que objetos de pedra, cobre e ferro encontrados na região ao redor do grande morro que veio a receber o nome de Pirâmide do Condor – dado por ele – seriam evidências do Paititi, a lendária cidade perdida no leste dos Andes, escondida em algum lugar das florestas tropicais do sudeste do Peru, norte da Bolívia e noroeste do Brasil.

Durante a pesquisa de artefatos relacionados à Pirâmide do Condor, Joaquim Cunha coletou informações de produtores rurais em Alto Alegre dos Parecis. Um deles havia localizado peças e adornos produzidos a partir de uma rocha e semelhantes a esmeraldas.

O grande achado arqueológico rondoniense situa-se no interior do município de Alta Floresta d’Oeste, na Zona da Mata de Rondônia (Foto Júnior Stoker)

Ele as fotografou, e pelos estudos que fez entendeu que elas poderiam ter sido usadas como moeda de troca entre povos que habitavam a região. “Esse município está localizado em um sítio arqueológico, até mina de cobre abandonada possui”, dizia Joaquim.

Na mais recente visita, os pesquisadores observaram outras pedras características da região, porém, esculpidas na forma de pilões com circunferências médias de 32,6 cm e profundidade média de 16 cm. Os principais deles medem 2,60 de largura por 4,70 x 5,30 x 3,10, alturas de 1,20 x 1,60 x 1,80 e 0,55, respectivamente, contendo em sua superfície 27 “pilões-bacias.”

Quando observou os primeiros, em 2009, o pesquisador Joaquim Cunha os denominou “Altar inca”, considerando a possibilidade de ser um local sagrado. Esse altar é semelhante a outros altares encontrados em Machu-Picchu e em Poro Poro, Cajamarca – ambos no Peru – e algumas localidades da Colômbia.

Saiba mais: Localizado em Rondônia (Brasil) o Alter Cerimonial Sagrado do Paititi

“Nesta mesma região também foram descobertos: um terraço voltado a agricultura (andene), restos de caminhos de pedra (“Caminho de Peabiru”) e diversos geoglifos ao redor. Andenes são escadas ou terraços ao redor das montanhas usadas para o plantio, especialmente, de milho e feijão. Peabiru foi um caminho formado por trilhas que ligavam o Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico, muito usado pelos incas.

Mata fechada e difícil acesso

A excursão de outubro começou por volta de oito horas da manhã: os pesquisadores Maximiliano Deitos, José Vicente e Marcos “Galego” saíram de Ji-Paraná com destino a Alta Floresta D’Oeste, ali chegando por volta de 10h40, juntando-se ao quarto integrante da equipe, Júnior Stoker, para compras de suprimentos.

Saíram às 11h15, chegando às 13h40 à fazenda distante 80 quilômetros da cidade. “Chovia torrencialmente por quase uma hora, e a nossa ida até o “Altar Inca” foi por volta de 15h10”, conta Maximiliano. “A partir dali, numa caminhada por 2,3 km, enfrentamos mata fechada e de difícil acesso; chegamos finalmente aos primeiros vestígios do sítio arqueológico às 16h22”, relata.

Primeiros estudos de rochas por pesquisadores autônomos ocorreram quase duas décadas atrás, no Distrito de Izidrolândia (Foto Júnior Stocker)

Cortes perfeitos

Logo na entrada, o grupo notou um misterioso bloco de pedra gigante com cortes perfeitos, lembrando as construções de pedras em Cuzco, no Peru. Uma cachoeira de aproximadamente 75 metros de altura é o pano de fundo do altar, local sagrado para todos os visitantes. Até alcançar o principal monumento arqueológico do local, o grupo teve que enfrentar diversos blocos de pedras escorregadios. A chegada ao local emocionou a todos. “É a quarta vez que visito esse local desde 2010, e nele pernoitei pela segunda vez”, conta Maximiliano.

Segundo ele, é muito boa a experiência de reviver “o sonho do Eldorado Paititi” no qual acreditava Joaquim Cunha. “Quase inenarrável, a considerar os geoglifos com diversas figuras da cosmologia inca (pastor, lhama, planeta vênus, o Deus Viracocha, o crânio, serpente, sapo, condor, puma, beija-flor), os andenes, e um pequeno trecho de caminho de pedra semelhante ao Caminho de Peabiru.

“Imaginamos que algum povo pré-colombiano ou inca esteve aqui em Rondônia.  A cada visita descobrimos algo novo e celebramos a memória de Joaquim”, destacou Maximiliano. O empresário José Vicente, em sua primeira expedição, comenta: “Esse lugar é majestoso, algo que precisa ser estudado e preservado, apesar da dificuldade de acesso”.

Em sua terceira visita à área, o fotógrafo e acadêmico de geografia Júnior Stoker não tem mais dúvidas: “É mesmo uma formação natural que certamente foi habitado por nômades há milhares de anos, dentro do longo período pré-colombiano. Segundo o que apurou, esses povos utilizavam os recursos naturais abundantes durante um determinado período, depois migravam para outra localidade.

“Na medida em que os estudos avançam, outras teorias vão surgindo: esse local pode ter sido utilizado para outras funções, quem sabe, a extração de minérios por antigos nômades”, ele sugere. Faz sentido, pois, em 2010, foi denunciado ao pesquisador do Centro Nacional de Arqueologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Francisco Pugliese, o desaparecimento de pedras, objetos de cobre e ferro, e urnas funerárias inteiras encontradas na região de Alto Alegre dos Parecis.

Ainda há notícias de que pesquisadores ligados à UNIR estão iniciando estudos na região de Costa Marques, distante 240 quilômetros do local, a respeito da “cidade de pedra” conhecida como Labirinto, com possíveis vestígios incas.

Saiba mais:  Em Rondônia, ocultas pela mata, duas cidadelas perdidas de 700 anos são a mais forte evidência da presença dos incas no Brasil

“É possível que esse grupo nômade tenha utilizado deste local para extração de minérios”, diz Júnior Stoker. “A construção desses “pilões-bacias” talvez tenha sido feita para armazenar uma mistura de água com moídos de pedras para extração de ouro em pó, levando em consideração que o metal se concentraria no fundo do pilão após o descanso de um a dois dias, e após esse processo o material que ficaria na superfície seria retirado para descarte, possibilitando, assim, o acesso ao material nobre, no fundo”, acredita.

Outro fator que influenciou a teoria do pesquisador é fato de, no encontro entre a cachoeira e a pedra principal contendo 27 pilões, existir uma pedra com a superfície modificada com ranhuras, podendo ser comparadas a uma planta de lavagem. Numa segunda hipótese poderiam ainda ter sido usadas para afiar/apontar estacas que seriam utilizadas para contribuir com pequenas escavações. “A escassez do minério teria contribuído para a evasão desse grupo desta região”, acrescenta.

Temor de invasões

Joaquim Cunha anotava em suas descobertas que a pedra principal denominada “Altar inca” seria um observatório astronômico ou religioso. O grupo pernoitou no local para apreciar o reflexo da lua e das estrelas nos 27 pilões-bacias, todos medidos e fotografados para estudos. No dia 14 de outubro, Maximiliano e equipe pernoitaram, acordando por volta das cinco e meia para novas observações de pedras, pilões e feições. Foi quando encontraram outras cinco pedras contendo quatro a oito pilões ao longo do riacho, com distância média entre elas de 50 metros.

“Temos uma grande preocupação: o Iphan foi comunicado sobre a descoberta há 14 anos, enviou dois profissionais à região, mas os estudos não evoluíram”, queixa-se o juiz. Segundo Maximiliano, este ano foram vistos invasores próximos ao sítio arqueológico, que fica nas imediações da Terra Indígena Massaco e da Reserva Biológica do Guaporé. Eles foram retirados após decisão judicial. No entanto, o avanço da pecuária na região já destruiu alguns geoglifos.

Obviamente, se não prosperarem os estudos do Iphan, a atividade pecuária pode ser fator de destruição dos geoglifos e de tudo mais que ali for encontrado por pesquisadores autônomos.

No final de 2020 e início de 2021 foram realizadas três expedições na região dos geoglifos após o trabalho inicial de Joaquim Cunha. Maximiliano, familiares e simpatizantes buscavam novas evidências arqueológicas, ao mesmo tempo em que revisitavam locais que contribuíram para a formação da tese do Eldorado-Paititi. Um dos participantes das expedições, o ambientalista, fotógrafo e pesquisador Carlos Tuyama, se sente feliz em participar dessas buscas. “São espaços na floresta ainda preservados e cercados por uma aura de mistério.

Mesmo se declarando “não especialista” no tema, Tuyama vê a necessidade de o grupo avançar nos estudos, paralelamente ao que o Iphan puder fazer por essa riqueza arqueológica rondoniense. “Temos uma grande a oportunidade de andar por esses caminhos abertos pelo saudoso amigo Joaquim, e a experiência de presenciar vestígios que realmente fazem crer na presença de outras civilizações distantes.”

Tuyama diz que em diversos momentos sentiu a sensação de que a montagem desse quebra-cabeça ainda esteja distante. “Mas nós estamos no caminho certo, provavelmente”, ele garante. A localização dos pilões e a quantidade deles podem ter sido usadas para a observação de estrelas e astros durante o período noturno, em relação a essa teoria numa das expedições ao altar o grupo os encheu com água da cachoeira.

Relembrando aquele momento, o professor de ciências sociais, biologia e história em Rolim de Moura, José Adilson Garcia Andrade, relata: “Dentro dos pilões observamos nitidamente a imagem do Planeta Vênus e o movimento de rotação da lua.” “Durante a história da ocupação, povos originários conheciam as fases da lua para melhor escolher os períodos da pesca, caça e plantio”, acrescenta.

Farmacêutico e bioquímico, o falecido Joaquim Cunha deu início às pesquisas (Foto Álbum Familiar)

Entusiasmo

Em setembro de 2016, o falecimento do pesquisador Joaquim Cunha representou uma enorme perda para os estudos que ele dirigia na região central de Rondônia. A busca incessante do Paititi, o Reino Gran Moxo, resultou com ele em alegres excursões com banhos de rio e comida feita em fogão improvisado no chão. Joaquim e a equipe se aproximaram de sitiantes e fazendeiros em cujas propriedades estão os pedaços do rico sítio arqueológico registrado no Cartório de Rolim de Moura.

Apaixonado pelo tema, Joaquim colecionava importantes evidências que o faziam crer na existência do lendário reino Eldorado-Paititi. Durante as expedições, ele e os amigos voluntários paravam horas apenas para contemplar paisagens, ou para comer e beber água. Andavam a pé durante o dia em busca de raízes longínquas.

“Infelizmente, ele se foi, após cumprir tão relevante missão. Aí ocorreu uma brusca interrupção nessas explorações que até recentemente estiveram paralisadas, mas o entusiasmo dele sempre agregou amigos voluntários que agora vêm retomando a suas explorações através do estudo daquilo que já foi catalogado e em expedições com rigoroso cuidado ambiental”, assinala Tuyama.

“Uma série de evidências aqui encontradas induzem a novos estudos e expedições; elas podem fazer parte de um mosaico que possivelmente irá revelar importantes fatos da presença de civilizações de origem andina em nossa região”, ele analisa.

Tuyama alerta as autoridades para possíveis alterações provocadas por ação antrópica. Isso acontece cada vez mais por causa das ameaças do desmatamento e do fogo: ambos desafiam os voluntários de uma causa cujos mecenas são eles próprios.

O engenheiro civil e técnico em transações imobiliárias Joaquim Antonio Barbosa Cunha da Silva, filho de Joaquim, emociona-se: “A região do Altar Cerimonial de Paititi, como era chamada por meu pai, emana uma aura incrível: o lugar gera uma conexão com a natureza que eu nunca senti em outro lugar, seja pela vegetação, córrego, formações rochosas e rochas esculpidas que parecem ter sido claramente moldadas pela mão humana, pois algumas aparentam ter cortes perfeitos.”

E acrescenta: “As cachoeiras fecham com chave essa aura de purificação e conexão. Eu não sou um estudioso da área, mas percebo que o altar se assemelha muito aos altares encontrados no Peru, onde presenciei alguns deles quando criança. Eu tinha dez anos quando fui a Machu Picchu, e realmente há algo ali que me faz lembrar dos incas.”

Pilão reflete dia e noite imagens maravilhosos, entre as quais, a da Lua e a do Planeta Vênus (Foto Júnior Stoker)








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