Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
O ano foi 1981. No período agonizante da ditadura instaurada em 1964, a organização da justiça em Rondônia envolveu de corpo e alma a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, que esperou dez anos para indicar um desembargador ao Tribunal de Justiça, conforme manda a Lei. A caneta do governador Jorge Teixeira de Oliveira, Teixeirão, prevaleceu e ele “fez o Tribunal” a seu modo. Para obter a vaga da advocacia no recém-criado Tribunal de Justiça do Estado, o Conselho Seccional da OAB invocava o art. 100 da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional).
Ele diz: “Na composição de qualquer Tribunal, um quinto dos lugares será preenchido por advogados em efetivo exercício da profissão, e membros do Ministério Público, todos de notório merecimento e idoneidade moral, com dez anos, pelo menos, de prática forense.”
A OABRO entendia que deveriam ser escolhidos desembargadores ou juízes do Distrito Federal e Territórios e um membro do Ministério Público ou advogado. “E nada mais, independentemente de lista tríplice, além desse quórum mínimo.”
No entanto, o governador Jorge Teixeira nomeava: um advogado, um juiz aposentado e dois juízes – praticamente dois advogados e dois juízes: Aldo Castanheira, Dimas Ribeiro da Fonseca, Hélio Fonseca, e Francisco César Soares Montenegro.
Para a OABRO, isso feria o art. 11 em seus incisos I a IV, da Lei Complementar nº 41, de 22 de dezembro de 1981, que criou o estado.
“Em seguida, em total inadvertência ao § 1 do mesmo artigo que impunha o preenchimento das outras três vagas de acordo com a Constituição Federal art. 144, inc. III, o Senhor Governador não somente atropelou o Tribunal de Justiça ao qual competia a indicação dos nomes através de listas tríplices, como ainda violou os requisitos para a composição do quadro desembargadores, nomeando três representantes do Ministério Público, estourando o quinto constitucional imposto pela CF.”
Assinando o relatório elaborado pelo Conselho Seccional da OABRO, o advogado Tadeu Fernandes frisava em 29 de setembro de 1983: “Lamentavelmente, foi por demais flagrante o total desrespeito a todas as normas legais regentes da espécie, para que este Conselho possa aprovar, nem sequer silenciar, sob pena de infringir, por omissão condenável, a sua função precípua que é defender a ordem jurídica e a Constituição da República.”
Tadeu encerrava o relatório com a frase em latim: Legibus soluti sumus, attamen legibus vivimus (Somos libertos pelas leis, mas vivemos pelas leis).
O apelo de Morimoto
A título de “pôr fim à anormalidade do Tribunal de Justiça” na questão do quinto constitucional, o advogado e ex-deputado federal Antônio Morimoto, relator da Lei que criou o estado, pediu ao Conselho Federal, em 3 de outubro de 1983 que intercedesse à Procuradoria-Geral da República para arguir “inconstitucionalidade e ilegalidade na composição da Corte, de acordo com o art. 113 da Constituição Estadual.”
Ao Supremo Tribunal Federal Morimoto citava o art. 11 do Decreto-Lei estadual nº 056, de 21 de junho de 1983, com fundamento no art. 144, § 6º da Lei Maior.
Já o conselheiro seccional Antônio Alberto Pacca, ex-juiz federal no extinto território federal, considerava a situação “irregular e ilegítima”, pedindo que fosse saneada.
Princípio matemático
“Senhor Presidente, Senhores Conselheiros, data vênia, a composição do Tribunal de Justiça de Rondônia, por imperativo dos artigos 144, IV da Constituição Federal, 100 e § 1º da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, e 7º e 11 da Lei Complementar nº 41/81, e ainda em decorrência de princípio matemático, não pode ser outra senão seis desembargadores, oriundos da Magistratura, representando 4/5 de seus membros e um desembargador, advogado ou membro do Ministério Público, representando o quinto constitucional” – dizia Morimoto na representação.
O advogado Juscelino Amaral frisa: “A Ordem sempre contestava não o desembargador, mas a composição inconstitucional.”
Morimoto considerava que “todos os nomeados por Teixeira ocupavam indevida e ilegitimamente lugares reservados por Lei aos Magistrados.” E até pedia a nulidade dos atos do governador, “eivados de flagrante inconstitucionalidade.”
A investidura do desembargador César Montenegro acendia o pavio da polêmica: na ocasião da nomeação ele era juiz de direito do DF e Territórios. Logo, “não poderia ser nomeado, por não ter mais essa condição, e tão somente, como advogado, para cuja situação, salvo melhor juízo, se aplicaria mutatis mutandis a sábia lição do emérito jurista Pontes de Miranda.”
Fouad Zacharias já ocupava o lugar
Morimoto citava Miranda: “(…) por outro lado, quem não exerce o cargo de Ministério Público, ou já não o exerce (exoneração ou aposentadoria) não oferece pressuposto suficiente.
“O membro do Ministério Público que não pode ser incluído, por estar aposentado, não está privado, se é advogado, de figurar na lista tríplice de advogados (Comentários à Constituição de 1967).
“Acontece que, no caso em tela, o lugar de advogado já estava ocupado – por Fouad Darwich Zacharias, do que resulta nula a nomeação de Francisco César Soares Montenegro, advogado inscrito na OABRJ sob nº 5138.”
Água fria do Procurador
Em 19 de outubro de 1983, o Procurador-Geral da República Inocêncio Mártires Coelho jogava um balde água fria nos pleitos da OABRO, considerando “incabível a representação interventiva.” Seu despacho: “As nomeações de desembargadores dos Tribunais de Justiça constituem prerrogativa constitucional do chefe do Executivo, e no caso, os atos não recaíram em servidores que conservassem vínculo com outros Poderes do Estado-membro.”
“Assim, ainda que se considerasse a hipótese de inobservância do quinto constitucional, não se poderia julgar caracterizada a ofensa ao art. 10, VII, alínea C, da Lei Maior, que contempla o princípio da independência e harmonia entre os Poderes. Quanto ao inciso IV do art. 10, não pode ser considerado para fins da representação de que trata o art. 11, § 2º, da Lei Fundamental.
Morimoto entrava em desalento em relação ao pedido de Antônio Pacca, atribuindo-lhe descrença de qualquer solução para sua representação, depois da “desistência e arquivamento puro e simples” do pedido daquele conselheiro, em 4 de outubro de 1982.
O telex nº 184-OAB-CF, de 1984, assinado pelo secretário-geral Francisco Costa Netto chegava às mãos do então presidente Nelson Santos de Oliveira relatando que, em sessão plenária, vencido o voto do relator, o Conselho Federal confirmava a decisão da Seccional no sentido da existência de anormalidades nas nomeações de desembargadores.
“Atos tipicamente administrativos”
“Decretos de nomeação são atos tipicamente administrativos, específicos e individuais, que não estabelecem normas gerais” – ponderava ainda o Procurador Mártires Coelho citando Heitor Lopes Meirelles em Direito Administrativo Brasileiro.
“Portanto, não podem ser objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese” – afirmava.
Coelho sugeria que os eventuais interessados se valessem das vias judiciais comuns, “em caso de lesão a direito individual.”
Quanto ao art. 11 do Decreto-Lei estadual 56, de 1983, o procurador considerava: “O vício de inconstitucionalidade dependeria do exame de uma questão fática, ou seja, da existência de nulidade das nomeações efetivadas pelos decretos sobre os quais incide o pedido de arguição. Inexiste, dessa forma, uma questão de inconstitucionalidade em tese, mas inteiramente de atos administrativos, sendo certo que o preceito, pelo seu teor, não deixa transparecê-la.”
Eliseu Fernandes, o desembargador do Interior
Depois do mandado de segurança impetrado pela Seccional – que antes recorrera ao Conselho Federal – o assento e a posse do advogado Eliseu Fernandes de Souza no cargo de desembargador pelo quinto constitucional estavam garantidos. Isso pôs fim às críticas.
Baiano de Brumado e criado em Araçatuba (SP), Eliseu graduou-se em Direito e chegou a trabalhar como narrador esportivo. Mudou-se para Rondônia em maio de 1980.
Em Ji-Paraná ele foi fundador e presidente da Subseção da OAB e pioneiro na criação e no funcionamento da Comarca. Atuou no primeiro júri.
Indicado em primeiro lugar da lista sêxtupla do quinto constitucional e primeiro lugar, à unanimidade, na lista tríplice do TJ, foi empossado no cargo em 9 de agosto de 1991.
“A ilegalidade da composição do TJ” fora uma situação reconhecida pela própria Corte com a vaga deixada pelo desembargador Aldo Castanheira” – lembrava o presidente do Conselho Seccional, advogado Pedro Origa Neto, no discurso de saudação a Fernandes.
“Permitimo-nos registrar nos anais desta Casa de Justiça o entendimento do eminente presidente da OAB, Dr. Marcelo Lavenere Machado, por ocasião de sua posse: Nós temos a convicção de que o Poder Judiciário e os advogados estamos no mesmo barco, comprometidos com o mesmo objetivo que é o de levar a Justiça ao Povo.”
“(…) No elenco das medidas propostas para a melhoria da atividade judiciária, a OAB tem defendido a criação de um órgão de controle externo, não para afetar-lhe a autonomia, essencial ao Estado Democrático de Direito, mas para protegê-lo, eficientemente dos excessos de alguns de seus membros e órgãos, para preservá-lo de qualquer nuvem de suspeição, por tênue que seja.”
“Isso equivale dizer que a OABRO, em momento algum pretende substituir o Sr. Corregedor no exercício de suas funções e nem o Senhor Presidente no exercício de suas funções de Corregedor das atividades dos eminentes Desembargadores” – prosseguia Origa.
Qual Justiça quer o povo de Rondônia?
Elogiava e lamentava: “A OAB perde, hoje, um de seus valorosos e antigos colaboradores, ex-Presidente da Seccional e ex-Conselheiro da OAB Federal e que, ainda neste ano, percorreu, juntamente com este Presidente, quase todas as Comarcas do Interior, participando das posses dos Presidentes de Subseções e constatando o denodo, dedicação dos guerreiros Magistrados do Interior, que vem distribuindo Justiça neste Estado.”
E conclamava: “Orgulhe-se de ser magistrado. Não se esqueça que foi advogado. Lembre-se, sempre, de que um dia também recebeu os primeiros impactos decorrentes das insatisfações pessoais e dos grupos sociais, gerados por trapalhadas jurídicas daqueles que insistem em viver no arbítrio, mas que, tão brilhantemente vem sendo rechaçado pelo Poder Judiciário, que deve lutar para manter sua independência e autonomia, que não somente sua, mas da sociedade brasileira.”
Origa encerrava o discurso com um desafio: “Em momento tão difícil para o Estado de Rondônia, colocamos à reflexão de todos as seguintes indagações acerca de nosso ideal de justiça:
● Qual a justiça que o povo de Rondônia quer: a que se limita interpretar o texto legal?
● A Justiça que fecha o processo e foge da decisão de mérito, mesmo constatando o desrespeito à Constituição?
● A Justiça que entende o processo como fim em si mesmo, ou como instrumento de pacificação de litígios?
● A Justiça como serviço público de interesse da comunidade?
● A Justiça compromissada com um trabalho didático de reconstrução do direito?
“Dr. Eliseu, pode-se viver sem talento, mas não se advoga sem honra. Assim foi sua trajetória até a presente data. E temos certeza de que nunca será dito que V. Exa. ‘está Magistrado’, pois, sua presença virá retratada constantemente pelo ato solene da decisão.”
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Nota: esta reportagem faz parte da série OABRO, 50 anos, que o autor vem publicando no Estado de Rondônia.