UM GUARDIÃO DA FLORESTA E DE MEMÓRIAS

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Seringueiro, professor, poeta: seu Albecir escreveu a história da Amazônia nas matas do Liberdade

Além de riscar seringueiras às margens do Liberdade, Albecir escreveu a vida e a angústia da alma seringueira (Foto: Tatiane Sousa)




Nascido e criado no rio Liberdade, Francisco Albecir teve que cortar seringa aos oito anos de idade; aprendeu a lidar com os números (e as letras) para se ver livre do julgo dos patrões. Formou-se em matemática. Porém, é mais conhecido como o poeta da floresta. Deixa inúmeros legados para a preservação da floresta, entre eles a criação da Resex Riozinho da Liberdade, no Vale do Juruá.





Val Martins e Tatiane Sousa
dos varadouros de Cruzeiro do Sul



Francisco Albecir Brito da Silva cumpriu sua missão na Terra e partiu para a vida eterna aos 61 anos, no dia 12 de fevereiro de 2024 na cidade de Cruzeiro do Sul. Seu Albecir, assim como era conhecido, deixa um grande legado na história dos seringais da Reserva Extrativista (Resex) Riozinho da Liberdade Albecir sempre foi muito curioso. Contava que desde pequeno teve vontade de aprender sobre as coisas e sobre o mundo. Sua curiosidade o fez alçar grandes voos. Apesar de todas as dificuldades que enfrentou, de seringueiro tornou-se educador, liderança, poeta, escritor e até autor de livro. E tudo isso o fez com muita excelência e compromisso.

Teve uma vida inteira dedicada ao rio Liberdade, onde nasceu, se criou e construiu família. Foi um bom pai, esposo, conselheiro e amigo. Dono de uma oratória impecável, era um sábio, sempre pronto e disposto tanto para ensinar quanto para aprender.

Albecir foi um grande líder comunitário. Foi o primeiro presidente da Associação Agroextrativista da Reserva Extrativista Rio da Liberdade (ASAREAL), pioneiro na área da educação e no movimento social local. Ainda que desconhecido dos grandes holofotes da mídia, foi um guardião da Floresta Amazônica e deu importantes contribuições para a gestão e preservação da Amazônia.

Como educador e político por vocação, Albecir foi uma das pessoas que defenderam a criação da Reserva Extrativista. Acreditava no poder da democracia e em um mundo mais justo e próspero. Pensava o nome “Liberdade” com um ato revolucionário. Talvez sem saber, tornou-se um ambientalista com muito mais propriedade do que aqueles com teses de doutorado sobre o tema.

Por ser filho do seringal, era conhecedor das necessidades do rio Liberdade e por isso, quando se tratava de políticas públicas para a região, principalmente para a educação, foi uma das vozes que mais representaram o rio Liberdade. Um dos seus maiores sonhos era ser eleito vereador para levar melhorias e qualidade de vida para as famílias que residem neste rio. Infelizmente, nunca foi eleito.

Deixou um importante legado para a área da educação no campo, tendo sido um dos primeiros professores do rio Liberdade, no tempo em que ministrava suas aulas na “escola da dona aranha”, como costumava chamar aquele simples tapiri coberto de palha de jaci onde alfabetizou inúmeras crianças, jovens e adultos.

Albecir no minucioso trabalho de tecer sua tarrafa (Foto: Tatiane Sousa)

Como professor, e posteriormente diretor e coordenador de ensino da Escola Estatual Rural Joaquim Nogueira, na comunidade Periquito, trabalhou em diversas atividades voltadas ao resgate histórico local e das memórias do tempo da seringa para que os jovens tivessem conhecimento de suas origens e posicionamento político para com o seu futuro. Era formado em matemática pela Universidade Federal do Acre, a Ufac/Floresta.

Lidar com os números era uma tarefa essencial para os seringueiros alcançarem suas alforrias nos seringais. Estavam sempre devendo aos patrões, os donos dos seringais. Era uma relação de trabalho escrava. Sem nunca terem pisado numa escola, os seringueiros não conheciam seus direitos – e eram sempre ludibriados pelos seringalistas. Viviam apenas para trabalhar e quitar dívidas impagáveis.

Albecir passou a cortar seringa ainda com oito de idade. Exerceu o ofício até os 17. A relação servil entre seringueiro-patrão era um dos temas mais recorrentes em seus poemas e escritos. Enquanto os filhos dos patrões iam estudar nas melhores escolas de Cruzeiro do Sul, Manaus ou Fortaleza, os filhos dos seringueiros já estavam com as facas, as tigelas e as porongas a iluminar a escuridão das estradas de seringa aos seis, oito anos de vida – vidas que estavam apenas no começo. Mas Albecir deu a volta por cima.

Era um poeta da floresta. Retratou como poucos as angústias da alma seringueira. O poema “O Seringueiro” (leia abaixo), presente no livro “A Voz do Liberdade”, organizado e produzido pelo Instituto Fronteiras, organização sediada em Cruzeiro do Sul, é um destes exemplos. Porém, todos os créditos para a produção do livro são dados a ele. A Voz do Liberdade era um de seus sonhos; tirar da invisibilidade as populações da floresta.

“Essa obra explicita a heterogeneidade de pensamento de um povo que por décadas foi protagonista na cultura da produção da borracha, sem temer os obstáculos advindos da floresta; ao invés de temê-los, encarou-os com coragem, determinação e eloquência”, escreveu ele na dedicatória da obra.

“O seu Albecir representa, para nós do Fronteiras, um exemplo de intelectual orgânico da floresta, comprometido com a preservação da memória do território vivo da Resex Riozinho da Liberdade. Seu testemunho de vida tem raízes em décadas de dedicação como professor e líder político da comunidade do Piriquito, onde sempre viveu. Temos orgulho de ter contribuído para a perpetuação do seu legado por meio da concretização do maior sonho que ele tinha: um livro com a história oral de diferentes gerações de moradores da Resex”, escreveu a entidade.

Por conta de todo o seu legado, iniciou-se um movimento da comunidade escolar no rio Liberdade para que a escola passa a se chamar Escola Estatual Rural Francisco Albecir.

Com certeza, é uma inspiração para muitas lideranças comunitárias e educadores da região do Vale do Juruá. Por onde passou, plantou uma semente no coração de todos aqueles que, por algum motivo, estiveram no seu caminho.

Flamenguista fanático, não perdia um jogo do time do coração. As ripas da cerca de sua casa eram pintadas com o rubro-nego do clube carioca. Apaixonado por futebol, todos os dias, ao final da tarde, e após encerrar seus trabalhos na escola, juntava-se com os amigos e ia para o campinho bater uma pelada. Sua posição no time era a de ponta esquerda. Conforme seu desejo, o cortejo fúnebre foi embalado ao som do hino do Flamengo, e foi sepultado com a camisa do time.

Albecir pode ter nos deixado aqui, mas o seu legado está escrito não apenas em folhas de papel – mas sobretudo nos troncos das seringueiras que ele riscava pelos seringais do Liberdade – em busca de sua própria liberdade. Francisco Albecir já é um imortal da floresta.

Trechos do poema “O Seringueiro”, escrito pelo poeta Francisco Albecir







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