AS CENAS de viaturas da Polícia Federal ocupando as rampas de acesso ao Palácio Rio Branco, na manhã de 16 de dezembro de 2021, deflagrando a maior operação de combate à corrupção da história do Acre, poderia ser motivo de revolta e indignação para qualquer cidadão de bem, patriota, conservador, defensor da moral e dos bons costumes. Poderia, mas não o foi. Tanto assim, que o principal investigado, o governador Gladson Cameli (PP), foi eleito para mais quatro anos de mandato – em primeiro turno e numa votação folgada. A reeleição aconteceu menos de um ano após a operação Ptolomeu ganhar o mundo. Poderíamos recorrer à velha máxima de que o eleitor tem memória fraca, mas este não é o melhor dos argumentos. Mesmo se a Ptolomeu tivesse ocorrido um mês antes das eleições, Cameli seria reeleito.
E isso não é resultado da atual gestão ser um exemplo de eficácia. Talvez até se justificaria o êxito eleitoral de Cameli, em meio a incontáveis denúncias de desmandos com a coisa pública, se o seu governo fosse sinônimo de muitíssima competência, com um Acre pujante, economia a mil, qualidade de vida para o povo, serviços públicos de fazer inveja a qualquer estado, obras por todos os cantos (SQN) – o famoso e repugnante “rouba, mas faz”. Porém, esta não é, nem de longe, a nossa realidade.
Muito pelo contrário. Como costumo falar, desde 2019 o Acre vive um estado de desgoverno. Não temos projetos de políticas públicas, o governo não tem um norte, metas, objetivos. Não há grandes obras em execução. Quando há, precisam ser interrompidas por suspeitas de corrupção. Em quatro anos, o desgoverno Cameli deixou a única ligação rodoviária entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul (sua terra natal) ficar destruída. Isso, mesmo com todo o apoio político que lhe era assegurado pelo também desgoverno de Jair Bolsonaro (PL) em Brasília. Todos os ventos lhe eram favoráveis naquele momento, mas a incompetência saltou mais alto.
A situação ficou ainda pior a partir daquele dezembro de 2021, quando mais de 300 agentes da PF cumprindo mandados judiciais expedidos pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), desarticularam a organização criminosa, instalada na alta cúpula do governo do Acre, acusada de desviar quase R$ 1 bilhão dos cofres públicos. Nas quase mil páginas do inquérito, a Polícia Federal define o governador Gladson Cameli como o chefe desta organização criminosa. As investigações ficaram não apenas na figura de Cameli, como também em parentes (pai e irmãos), além das empresas da família, servidores públicos por ele nomeados e empresários.
De lá para cá, a única obsessão do governador é se ver livre da Justiça. O que ele já não fazia com muito afinco – a administração de um Estado -, ficou ainda pior. Num certo momento, achávamos que a operação Ptolomeu tivesse virado pizza. Afinal, foram quase 15 meses sem “nada acontecer” entre a primeira e a terceira fase da operação. Neste ínterim, o político bolsonarista foi reeleito. A sensação era de total impunidade diante de denúncias tão graves. Até que, em 9 de março passado, mais uma penca de agentes federais voltaram às ruas de Rio Branco para a terceira fase da operação Ptolomeu.
A proposta aqui não é fazer uma cronologia para refrescar a memória do acreano. Como falei acima, este não é o problema. A questão é que, mesmo com o atual governo e o próprio governador mergulhados em suspeitas de corrupção, este mesmo eleitor acreano que adora chamar em praça pública o PT e o presidente Lula de “ladrões”, é o mesmo que finge não enxergar a corrupção, e nem sentir o odor de podridão em volta do Palácio Rio Branco, garantindo mais quatro anos a uma gestão desastrosa e incomptente.
Não há a menor dúvida de que o Acre vive hoje uma grave crise política, social e econômica por conta do desgoverno Cameli. Um desgoverno que está sub judice, na berlinda. Gladson Cameli pode acordar, a qualquer momento, afastado das funções de governador, e até mesmo preso. Lógico que a prisão é uma medida extrema, mas ela já foi pedida pela Polícia Federal, e negada pela ministra do STJ. A situação é tão grave, que Nancy Andrighi acatou os pedidos da PF e do MPF de prorrogação, por mais 180 dias, das medidas cautelares contra o governador acreano e os demais investigados. Entre elas, a retenção do passaporte de Cameli. A medida foi adotada para evitar uma possível fuga.
Gladson Cameli até pode fazer viagens ao exterior em agendas oficiais, mas também deve ter o salvo-conduto de Nancy Andrighi. Ele não está autorizado a dar um passo em falso, sem consultar a ministra. Assim, foi quando em maio viajou aos Estados Unidos para agendas na área ambiental – logo Cameli, responsável por uma política de desmonte ambiental que levou o Acre a taxas recordes de desmatamento da Amazônia nos últimos quatro anos. (Leia Passaporte Verde)
A decisão da ministra de acatar os pedidos feitos pela Procuradoria da República e Polícia Federal mostra que as provas obtidas no inquérito da operação Ptolomeu são robustas. Se houvesse falhas ou ilegalidades no decorrer das apurações, a magistrada já tinha anulado o processo. Aliás, este foi um dos argumentos dos advogados ao tentar anular processo, alegando que a PF teria investigado o filho (uma criança) do governador.
Todos os recursos impetrados pela milionária defesa do governador acreano foram rejeitados, não só em decisão monocrática de Nancy Andrighi, como das turmas do STJ. A única exceção é para que Gladson possa novamente conversar com o pai, o senhor Eládio Cameli – desde que seja comprovado o estado de saúde grave dele. Pai e filho estão impedidos de ter contato como uma das medidas cautelares pedidas pela polícia. Nunca antes na história do Acre nós vivemos situações deste tipo. O Palácio Rio Branco ocupado pela PF e a primeira-família do Estado num quadro tão vexatório.
Mesmo com todo o estado de inércia em que nos encontramos, o bolsonarismo e o antipetismo reinante no Acre garantem sobrevida a tudo isso. É aquela velha coisa: não sendo do PT, está tudo certo. A elevada rejeição ao que se pode definir como “pensamentos da esquerda” é consequência do domínio religioso das igrejas evangélicas, que, como bem sabemos, é uma das principais bases do bolsonarismo reacionário – tudo em nome de seus valores e crenças religiosas.
Valores estes que têm dois pesos e duas medidas. Ao mesmo tempo em que crucifica qualquer suspeita de corrupção ou deslizes do endemonizado PT, afaga-se as claras evidências de malversação praticadas por políticos inescrupulosos identificados com tais princípios conservaidor-religioso. Isso vale tanto para o próprio Bolsonaro, quanto para Gladson Cameli.
A democracia corrompida
Junto a isso, pesa o fato de um dos principais mecanismos de vigilância e defesa da democracia, uma espécie de fiscal dos governos, que é a imprensa, no Acre estar lambuzada com tantos recursos públicos da verba de mídia. O grupo político (também conhecido como balaio de gatos) que hoje ocupa o poder, passou 20 anos na oposição acusando os governos petistas de usar o dinheiro da propaganda oficial para “comprar” a linha editorial dos veículos de comunicação. Agora no poder, fazem-o pior. O governo Gladson Cameli usa dinheiro do contribuinte para calar a imprensa, impedindo-a de trazer à luz – ou não se aprofundar mais – os incontáveis casos de corrupção de seu governo. Em outras palavras, o governo Gladson Cameli corrompe a democracia ao impedir o exercício de uma imprensa livre.
Ainda bem que hoje as redes sociais furam essa censura estatal. É graças ao trabalho alternativo feito por este jornalista, em parceria com o Portal do Rosas, do colega Leonildo Rosas, que destrinchamos o robusto inquérito da operação Ptolomeu. Foi por conta deste trabalho que pautamos a imprensa nacional, mostrando os desmandos que acontecem no Acre. Aquilo que tentavam ocultar aqui, era exposto para todo o país. (Leia o Especial Esquemão Azul)
Vivemos uma crise sem precedentes na nossa história. Temos um desgoverno paralisado. Uma gestão desastrosa. Um governo suspeito e sub judice. Abarrotada de propaganda governamental (o que às vezes torna a visita a alguns sites até desconfortável), nossa imprensa vive num universo paralelo.
E, assim, infelizmente, o Acre caminha a passos largos rumo ao retrocesso. E o pior: sem perspectiva de encontrar uma luz no fim do túnel. Enquanto este bolsonarismo extremista vigorar como principal força política da região (sem data para expirar), o Acre continuará a eleger políticos do quilate do que temos hoje. Pessoas que, além de representarem o que há de mais arcaico e reacionário no pensamento político, mostram-se verdadeiros incompetentes no trato da gestão administrativa – como bem define o cientista político Israel Souza em seu artigo no Varadouro.
O Acre já teve dias bem melhores.
Que possamos, o mais rápido possível, voltar aos bons tempos.
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Fabio Pontes – editor-executivo do Varadouro
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