Um artista acreano frente a toda sedução colonial

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Comecemos pelo meio. O Varadouro e suas pautas-resistência

A geopolítica que se nos apresenta é constituída de intensos macros conflitos sociais, econômicos, políticos e culturais que nos chegam pelas bem selecionadas pautas de noticiários e outras produções discursivas. É por ela que o mundo tem sido assim quase que invariavelmente construído/mantido na nossa mentalidade.

São recortes da realidade como produção de toda a realidade – sua suposta totalidade – com vistas a nos integrar – nós que estamos aqui deste lado dito periférico – no campo dos interesses ditos centrais, os relacionados aos projetos e ações de poder estrutural que tem nos colonizado desde sempre e para os quais temos exercido historicamente a função de seu fiel reprodutor na divisão social do domínio colonial.

Esse desenho de intenção universalizante do que parece ser só o que acontece se faz com vista a mover a todos a ter a sensação/crença de que todo lugar dito periférico para ser digno é senão um lugar condenado a almejar, alcançar, em sua dimensão micro, a categoria de Centro. Para tanto, se deve seguir as condicionalidades constantes das importadas receitas estruturais de modos de poder, de saber e de ser civilizado, moderno, desenvolvido…

E assim vamos vivendo aqui internamente embalados nesse sistema de reprodução de semelhantes conflitos, não sem um embate no sentido de duas resistências, nossas formas de reexistir: a contracolonial clássica (que é a de não ser colonizado, o que vale dizer, explorado, dominado e racializado) e a de não nos autocolonizar.

A autocolonização, ou colonização interna, é um fenômeno que acontece graças especialmente às ações dos criolos nacionais/locais que se prestam a servir – o que as mantém – às mentalidades coloniais exógenas e suas instituições.

O Jornal Varadouro nesse ambiente tem sido historicamente uma trincheira importante, e talvez o único posto de combate discursivo disponível agora nessa luta das duas resistências dos condenados daqui. Suas pautas não só visibilizam como fazem com que as falas, corpos e vidas silenciadas/violentadas pela estrutura local de poder – que é a mesmo do Centro – se imponham para dizer que o mundo não é tal qual como o colonizador a enquadra. Que a Amazônia acreana não é esse constructo que se apresenta em todo lugar de poder intra-institucional, por exemplo.

Por isso estou aqui novamente trazendo uma pauta e uma forma de tratá-la contra esse lado Acre “terrivelmente” colonial e autocolonial. É para continuar sustentando as pautas desse Varadouro que insiste em reafirmar que esse mesmo Acre é também feito de contracolonialidades profundas.



A consciência da condição a que se é posto é necessária

Só com consciência própria frente ao que nos tem modelado culturalmente e, com isso, tentado nos impossibilitar de ser agente de nossa própria existência – o que acontece pela força colonizadora das indústrias e mercados dos meios de produção e difusão da cultura, educação e comunicação, estou me referindo a isso que nos chega não substanciado pelo o que daqui criamos, pensamos e vivemos – é que é possível constatar o fato óbvio em mundo colonial, o de que existimos senão para consumir e reproduzir tudo que for apreendido por esse constructo mental que se impõe como a única matriz de modo de vida, forma de pensar e de criar como se fosse governo de todos, isso que nos chega e se autoproclama o padrão universal sem ser.

O que segue é um pequeno registro de um exemplo vívido da exceção diante dessa regra colonial, um pingo d’água atrás do outro como um flagrante de quando nem sempre funciona como se projeta. Eu estou aqui me apresentando como uma testemunha para falar de um caso distinto com vistas a demonstrar que é possível sermos próprios diante do alheio.



O sujeito do lugar em suas especificidades próprias

Clenilson Batista: um artista acreano anticolonial (Foto: João Veras)

O lugar de que falo tem várias camadas geoculturais. O estado do Acre, a sua capital, Rio Branco, e um dos seus bairros, o da Capoeira. São ficções que se concretizam quando tornadas territórios de viver, de se relacionar e de fazer arte.

Conheci Clenilson Batista quando conheci o bairro da Capoeira, o fabuloso pluriverso da minha infância, da nossa infância. Nasci no bairro da Cadeia Velha, onde o rio Acre passava na baixada do meu quintal. Aos oito anos, em plena Copa de 1970, fui morar ali, agora próximo ao Igarapé da Maternidade que atravessa boa parte da cidade, em que, como no rio, se tomava banho e pescava. Hoje, não mais assim, foi reduzido a canal de esgoto a céu aberto construído em moderna alvenaria justo pelo governo da sustentabilidade ambiental.

A Capoeira fica no Centro da cidade, ao lado do Estádio José de Melo, espaço em que acontecia de tudo, inclusive o Campeonato Acreano de Futebol que só tinha time de Rio Branco. A Capoeira sempre esteve perto de qualquer coisa: dos circos que circulavam pela região, dos cines Rio Branco e Acre, dos poucos hotéis e clubes de bailes e shows, do Mercado Municipal, das pontes que ligam o primeiro distrito ao segundo, dos prédios de poder denominados palácios de governo e das secretarias, das escolas, da praça central, da catedral, do primeiro supermercado, das bancas de revistas, do rio Acre…

A Capoeira tinha pelos fundos uma extensa área verde fechada que chamávamos de Mata da Guidinha, a nossa floresta encantada. Eu morava na travessa Maria Amélia, uma rua sem saída para seguir caminho (quem entrava tinha que voltar por onde entrou), ambientes de muitos duelos, depois das matinês, entre zorros, dolars furados, sansões e dalilas. Templo do convívio de crianças amigas só para as funções comunitárias como jogar futebol, inventar brincadeiras, tomar banho no igarapé, ir assistir cinema onde se trocava gibis, para os circos, para as primeiras comunhões, pular muro do estádio, ir para escola e para o mundo juntos.

Também para brigar, para ficar de bem, para brigar de novo, para ficar de bem de novo, sonhar e realizar todo o tempo. O que faltava na Capoeira? Ninguém de lá jamais soube.

Quando cheguei, Clenilson já estava lá. Ele, o irmão Clevisson, as quatro irmãs, seu pai e sua mãe. Também uma reca de meninos e meninas espalhados pelo bairro, seus parentes, seus cachorros… Mas foi junto com os dois irmãos que a música ficou em nós três dali em adiante. Com as mesmas referências musicais nacionais, internacionais e locais, chegadas principalmente pelo cinema, circo e rádio, fomos construindo o nosso jeito de reproduzir e, principalmente, de criar. Fomos nos fazendo inventores de si e do mundo pelo caminho da música.

Disso resultou, entre outras coisas, o Grupo Capu, hoje reconhecido como uma banda de rock acreana de músicas autorais. Nascemos pela primeira vez na versão de 1980 do Festival Acreano de Música Popular, o FAMP. Quando nem sabíamos tocar instrumento, mas tocávamos. Os dois, violão, e eu flauta doce, acompanhados pela banda-base do festival. Pitico (o Toin, também da Capoeira) era o nosso quarto elemento que tocava percussão. Eram batidas e baladas de rock. Do tipo nosso de rock com flauta e percussão. Pode-se dizer acreanizado. Depois xote, baião, forró, lambada, balanço, balada e não sei mais nada, inclusive o que possa ser estilisticamente incomparável, coisa de invenção.

Com a morte de Pitico, chegou a bateria autoral, potente e criativa de Hermógenes. Clevisson se tornou baixista e a minha flauta doce virou transversal. Vieram mais composições que, no conjunto, foram imprimindo uma musicalidade, formas de cantar e de falar com textos, nossas falas inerentes ao momento e ao lugar em que vivíamos.



Venho pensando a nossa produção artística a partir de um registro crítico, de modo a buscar revelar algum movimento de resistência diante do projeto de colonização cultural de que se é alvo em um lugar considerado periférico como o Acre.




O momento político era da ditadura militar. Letras e atitudes, enfim, de maneira nenhuma indiferentes e bem fincadas na vida cotidiana de uma Rio Branco e uma Capoeira viva política e culturalmente. Nada igual. Conseguimos não ser a pretensão da cópia. Éramos nós próprios, o que quer dizer do nosso jeito, cantando e tocando o bairro, a cidade, o estado.

Depois, todos nós fomos nos espalhando, cada um acomodado/incomodado esteticamente no que individual e coletivamente foi se achando. Criamos um lugar de encontro chamado Os Alquimistas – tendo como elo o músico mineiro Heloy de Castro – a tocar de bar em bar pela cidade – lugares possíveis para comunicar as alquimias da música que fazíamos.

Também nos associamos a uma ideia/luta em defesa da cultura artística local e contra o poder estatal forjado de tanto engano social, coisa dessa política da manutenção do status quo. Por isso, fomos juntos censurados justamente pelo governo que dizia ter chegado para acabar com a censura. Encontramos uma maneira de não largar o nosso canto, uma forma de continuar juntos, quando a individualidade foi dando a forma para cada um de nós. E cada um virou um de si próprio integrado ao outro. Cada um no seu sistema de viver, de se situar no mundo. Uma forma de ser – que num ambiente cultural como o nosso daqui – que se faz sempre juntos. É quando o singular é plural e vice-versa.



O sujeito decolonial instaurado

Essa contextualização memorialista de minha parte foi necessária para situar um pouco o ambiente de onde surge um dos personagens mais importantes da história contemporânea da cultura urbana acreana, que é Clenilson Batista. Clenilson, sempre desassossegado, não ficou só na música, forma estética pela qual mais criou/cria. Escreveu Seringal Astral e A Lenda do Reino dos Beija-flores, obras que refletem o modo só seu de perceber o mundo que se vive na Amazônia lançando-se na aventura/ventura de querer e, por querer tanto, viver/imaginar outros.

A produção de Clenilson tanto musical quanto literária se funda na vontade de alterar o que está posto, não com as armas da violência, nem com outro tipo dela, como a política institucional, mas com a potência do sonho, da imaginação, da criação, da arte. No campo das ideias contidas em suas obras, Clenilson desenvolveu uma teoria livre para possibilitar que os outros consigam compreender esse modo (que parece se revelar como uma cosmologia própria), que ele vai classificar como Lendologia/lendologismo.

Pela sua complexidade, não é possível abreviar aqui o tanto de significado produzido por esse seu sistema, cuja base se sustenta nos elementos da natureza, da magia e na ideia (utópica?) de uma outra humanidade que tenha o amor como fundamento. Estou correndo o risco aqui de simplificar (senão já praticando a redução), o que só pode acontecer como justo reflexo de meus limites diante da obra de Clenilson. Seria preciso de muito mais fôlego.

Confesso que é na música onde mais toca em mim Clenilson. Por isso quero chamar atenção para duas obras suas mais recentes: Cidadão de Bem, (ouça aqui) balada cuja letra vale por um tratado de política, do ponto de vista de quem questiona o poder institucional, um libelo anarquista (diriam cientistas políticos eurocêntricos do tipo que só aceita ideia se for nascida de seu lugar de conhecimento), cujo efeito de duplo sentido revela a posição crítica de quem tem sido desde sempre vítima do poder dos estados-nações e suas estruturas históricas de governos centralizados/mantenedores da condição moderno-colonial.

Por razões de espaço, não há como me dispor a fazer aqui uma análise da letra de Cidadão de Bem, como eu gostaria. Porém, valem algumas observações inadiáveis para o contexto deste breve escrito.


Por isso estou aqui novamente trazendo uma pauta e uma forma de tratá-la contra esse lado Acre “terrivelmente” colonial e autocolonial. É para continuar sustentando as pautas desse Varadouro que insiste em reafirmar que esse mesmo Acre é também feito de contracolonialidades profundas.




A música começa afirmando: “Você é livre, está na Constituição, você é livre se for da Nação”. É possível observar que neste trecho é constatada e questionada a ideia de liberdade reduzida ao espaço do estado e sua normatividade (você só é livre se integrar e for da vontade da nação), isto é, aduzindo que fora de tal espaço político não há liberdade senão interna corporis a ele (a do seu tipo). No mesmo passo, a letra afirma a liberdade do “cidadão”, apesar do estado-lei – como se dissesse, e diz, “você é livre” e pronto, que “se foda a nação” que não te quer livre desde que pela sua ideia de liberdade normativa. O segundo sentido se revela mais que uma negação do primeiro, o seu questionamento, a sua problematização.

No estribilho, que segue o mesmo efeito de duplo sentido, a oração “se for da lei” quando lida expressa de forma literal a ideia de condição, mas, quando ouvida, muda de sentido tornando-se um grito-desejo-manifesto de sua negação: “se foda a lei”, o que se repete em relação a categorias que corporificam/sustentam a ideia de estado como sociedade, nação, juiz, justiça, policia… e ainda batendo na tecla da liberdade como uma condição da lei que na voz de seu alvo (“o cidadão”) soa como menosprezo, rejeição, negação, portanto, de resistência a ela: “Você pode fazer o que bem entender, se for da lei”, um grito de liberdade em face da liberdade da lei. Uma vida normativa versus uma vida “anormativa”, nesse sentido, livre das amarras do poder estatal.

Vale ainda atentar-se para o fato de que os sentidos duplos da oração “se for da lei” se opõem também pelas suas formas de emissão, isto é, estão vazados, de um lado, pelo registro da escrita (que é o registro da norma, da condição normativa “se for da lei”), e, de outro, pelo registro da oralidade, captada pela audição (“se foda a lei”), quando aponta a sua negação, resistência, insurgência (eu acrescentaria) que esgarça uma vontade popular, vinda das ruas, contra o estado… Não uma vontade universal, mas advinda daqueles e daquelas a quem o estado elege como impossibilitados de sua proteção.

Em Cidadão de Bem, Clenilson parece ter realizado um movimento diferente do que realizaram Raul Seixas e Paulo Coelho com a Sociedade Alternativa deles. Enquanto estes saíram do estado para criar uma sociedade alternativa também normativa dizendo que toda liberdade é que era da lei: “faça o que tu queres, pois é tudo da lei” (baseado na Lei de Thelema e seus postulados dogmáticos a fugir da lei se refugiando na lei), Clenilson tem um intento diferente. Ele quer destruir por dentro o maior fundamento do estado colocando que “se [tudo] for da lei” então que se foda a lei.

A segunda obra é o seu último CD solo, A Arte é um Veículo, que ele produziu em 2019. Para mim um feito artístico admirável, porquanto culturalmente significativo, mesmo sendo ignorada por todos, como a rigor são tratadas as obras artísticas locais. O disco, com as suas treze faixas, não representa a diversidade de sua produção musical, na medida em que ele se dedica mais a um dos lados de suas composições, aquele desenvolvido nas épocas Alquimistas, que podemos chamar de balanço, exemplo clássico das faixas Bole, bole, composta com Alexandre Nunes (“Segura sanfoneiro esse bole, bole…”), Balanço da Aldeia (“Vem mostrar esse balanço como é, que balança toda mata e igarapé…”), Daquiry (“Dança ashasninka, Huni kui, kaxinauá…”) e as duas das quais somos parceiros, fizemos na década de 90 para também tocar nas noites acreanas: Mela coxa (“Universo sou toda a terra”) e O povo quer dançar (era meia noite, madrugada, a festa tava animada, o sanfoneiro sem para…”).

Nesse sentido, parece ser uma obra que busca disseminar sonoramente a alegria. Não se pode duvidar ser a alegria uma forma de manifestação do amor. A dança é um ótimo meio. O corpo uma expressão vigorosa para o sentimento. Mas, como tudo em Clenilson, a coisa não se restringe a um ritmo só. Tem as letras em suas contundentes narrativas tão política e culturalmente próprias, das quais destaco, além das já citadas, as faixas Tribal (“um canto inteiro, não é um canto de partido, não é um canto dividido”), A arte é um veículo (“O sonho é uma nação… A arte é um veículo que sai da multidão…”), Bem vindos ao leito do rio (“…É um banzeiro de paz e amor…”) e Você reclama da Terra (“Você reclama da terra mas quem é que produz a poluição?”), esta última um potente manifesto ecológico composto com Geovania Barros.

Considero Clenilson como tipo exemplar de artista cujas ontologias política e estética são fundamental e radicalmente decoloniais, o que afirmo no contexto em que venho pensando a nossa produção artística a partir de um registro crítico, de modo a buscar revelar algum movimento de resistência diante do projeto de colonização cultural de que se é alvo em um lugar considerado periférico como o Acre.

Em sua obra nada está conformado à condição moderna-colonial que se tem nos imposto historicamente como deveria “naturalmente” estar moldado para estar – nos conforme da pedagogia colonial pela qual temos sido educados.

Nesse sentido, Clenilson põe abaixo qualquer movimento que queira lhe colonizar. Não porque ele deseja assim (como um condutor daquele desejo do tipo frágil, provisório, precário, inconstante do “quero agora, mas amanhã não, ou não sei mais” – a depender de quem dá mais), mas porque ele se fez assim orgânico no percurso de vida/criação, pelos desassossegos reflexivos e críticos próprios de quem – muito mais que viver em um território geocultural – se coloca social e culturalmente como um visceral organismo constituinte dele.

Sendo assim, nada do que faça no campo da arte tem como fugir, senão reafirmar a atitude combatente/insurgente de se afirmar como um sujeito cultural orgânico – não monolítico, não sem contradições – que aqui nomeio de decolonial, resultando na configuração de um sujeito artisticamente incomparável e culturalmente consciente de sua localidade e de seu papel político-cultural.

Para encontrar este tipo nem adianta procurar nas prateleiras de verbetes da dita cultura nacional brasileira. É que é justamente por lá que nós aqui não existimos.

Quis aqui começar este texto relatando o meu encontro e convívio afetivo, político e artístico com Clenilson Batista – num contexto de um lugar geocultural próprio – para dizer que sou testemunha do processo de formação de um sujeito decolonial posto à prova de todo tipo de ataque magneticamente sedutor, como só é aquele que investe em nos fazer desejar ser o que não somos para relegarmos a si intentando ser cópia de algum padrão industrial exógeno, com a promessa – que só se faz a um condenado a ser o eterno coadjuvante (se muito) – de personificação do gênio, do super astro, da celebridade, do ídolo dos consumos autocolonizantes. “Pode crer”!!

Cacimbão da Capoeira e seus muitos símbolos de uma Rio Branco colonizada (Foto: Diego Gurgel)



João Veras é poeta, músico e escritor acreano. Publicou, entre outras obras, Seringalidade, o estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta, pela editora Valer, 2017.


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