UM ABRIGO AOS DESABRIGADOS PELO ESTADO

Compartilhe

Após remoção forçada, moradores da Terra Prometida acampam na Aleac em busca de justiça social

Tão perto e tão longe do Poder: desamparados pelo Estado, sem-tetos da Terra Prometida acampam na entrada da Assembleia Legislativa; do outro lado da rua, avistam o Palácio Rio Branco com sua inércia em lidar com as graves questões sociais do Acre (Foto: Juan Diaz/cedida)



Tratados como bandidos pela PM do governo Gladson Cameli durante reintegração de posse, moradores fazem da sede do Parlamento suas habitações provisórias, enquanto o poder Executivo muito promete, e nada cumpre. Em barracas e colchões, as famílias sem-teto continuam em extrema vulnerabilidade. Varadouro conversou com alguns destes acreanos na fila de espera pela casa própria



Hellen Lirtêz
Dos Varadouros de Rio Branco


Num ato de unidade, na manhã da última segunda-feira, 28, os moradores da ocupação Terra Prometida, localizada no bairro Irineu Serra, ergueram as suas vozes em protesto contra o despreparo do governo Gladson Cameli (PP) em executar políticas que assegurem moradias dignas à população mais carente. Expulsos à porrada do local onde moravam há pelo menos três anos, passaram a fazer do hall de entrada da Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) o seu novo lugar de habitação. Por ali pretendem ficar até o momento em que uma solução definitiva seja colocada em prática. A ação foi organizada pelos moradores com o intuito de serem ouvidos pelo poder público, reivindicando o reconhecimento de suas ocupações como legítimas.

No último dia 15 de agosto, mais de cem casas foram demolidas na Terra Prometida. Tudo começou por meio da abordagem de oficiais de Justiça e da Polícia Militar, que cumpria um mandado de reintegração de posse da área, que é de propriedade do Estado. No processo de retirada dos moradores, foram usados spray de pimenta, gás lacrimogêneo e balas de borracha contra mulheres, crianças e idosos.

Grávidas perderam bebês, crianças foram feridas e a situação chamou a atenção para o conflito, expondo a completa omissão do governo nas políticas de assistência social. Durante seu primeiro mandato, nem uma única casa foi construída para resolver o grave problema do déficit habitacional.

De acordo com os moradores ouvidos por Varadouro, o então governador candidato à reeleição em 2022, esteve na ocupação para fazer falsas promessas eleitoreiras, como a legalização da posse da terra. Mesmo sabendo que a área é uma propriedade do Estado, Cameli parece ter ludibriado a comunidade. Cameli não só deixou de cumprir a promessa, como autorizou sua polícia a fazer uso da força para expulsar as famílias.

Essa semana, a reportagem esteve no acampamento na Aleac para ouvir os relatos destes acreanos e acreanas invísiveis, desamparados pelo Estado e classificados, por parte da sociedade, como invasores.

Não somos marginais

Após expulsão, famílias continuam em situação de vulnerabilidade na região central da cidade (Foto: Juan Diaz)


Além de lutarem por uma moradia digna, os moradores tentam combater o rótulo de “invasores” que receberam devido à abordagem que sofreram em 15 de agosto. O pastor Edson, é liderança da comunidade e acompanhou tudo o que aconteceu no local. Ele afirma que os moradores não mereciam o tratamento dispensado pelas forças policiais durante a reintegração de posse.

“Nós não somos marginais. Somos trabalhadores, pais e mães de família e só queremos um lar para as nossas famílias viverem dignamente”, desabafa ele. Sobre o fato de os moradores da Terra Prometida serem taxados de “invasores” a liderança responde: “A Invasão pressupõe tomar algo que está em uso, enquanto nós transformamos um espaço esquecido em um lar acolhedor”, afirma ele ao Varadouro. De acordo com o pastor, a área estava abandonada há cerca de 15 anos, e que passaram a fazer dela um ambiente comunitário para viver.

José Santos, que também era morador da ocupação e residia no local há três anos com a esposa e três filhos, explica que o governo não entrou em contato com a comunidade, e que os tirou à força do local. Agora, comenta ele, estão em busca de uma casa para viver. Santos relatou as dificuldades que ele e outros moradores têm enfrentado, como não ter gás, água e nem comida há muitos dias, sobrevivendo apenas de doações.

Além disso, os poucos móveis que a família possuía foram perdidos ou danificados durante a ação policial de reintegração de posse, José Santos diz que não há nenhum auxílio governamental sendo recebido. Ele descreve a situação como uma grande sensação de abandono. “Derrubaram nossas casas e agora tá lá o terreno vazio, e nós estamos em situação de calamidade, sem alimentação, fora o prejuízo material.”

Alessandro de Souza morava na Terra Prometida desde 2021 com a esposa e as duas filhas, uma delas tem apenas um ano e quatro meses. A mais velha tem três anos. Ele afirma que há cerca de um ano e oito meses antes das eleições, a comunidade se reuniu com o governador Gladson Cameli (PP) – reeleito para o cargo no primeiro turno – que prometeu segurança e moradia. No período desta conversa com o chefe do Executivo, o morador conta que já existiam cerca 380 famílias dentro da ocupação Terra Prometida. Depois o número cresceu, chegando ao total de 450.

“Ele pediu o nosso apoio e no final da palavra do acerto que nós tinha acertado e apoiar ele a eleição, ele disse para nós que aquela Terra Prometida seria uma terra nossa, que ninguém iria mexer com nós se ele ganhasse”, revela Alessandro. Ainda segundo ele, todas as famílias votaram pela reeleição de Gladson Cameli.

Sobre o dia 15, quando ocorreu a expulsão dos moradores, Alessandro conta que não houve um diálogo prévio com as famílias por parte da polícia nem representantes do governo, e que elas estavam se articulando de forma autônoma para trazer melhorias para a ocupação.

“Estava todo mundo unido, nós pegamos e fizemos uma cota para poder fazer as ruas. E ver uma cota com toda a comunidade em torno de R$14 mil por aí. E fizemos as ruas, compramos canos. Compramos mangueira, colocamos energia e com menos de 20 dias que as ruas estavam feitas fomos pegos de surpresa, sem nenhuma comunicação sobre essa reintegração de posse”, relata Alessandro. “Ficamos sabendo pela boca dos outros, pelos advogados. Eles pegaram e falaram que não iria mexer. Nós voltamos com dois dias e chegou um batalhão de policiais.” Conta.

As Marias em busca de suas Liberdades

Às vésperas das eleições, Gladson Cameli prometeu que faria regularização fundiária da Terra Promessa; ludibriou comunidade, que agora ocupa entrada da Aleac em protesto (Foto: Juan Diaz)


Na terça, 29, alguns moradores foram recebidos por uma comissão de deputados para que suas demandas pudessem ser ouvidas. Entre eles estava Maria Liberdade, que fez um desabafo emocionante, expondo o abandono a que foram relegados. Por meio de vídeo transmitido pelo Ac24horas, ela explicou que o governador garantiu às famílias que seriam construídas casas para eles no mesmo local. Devido a essa promessa, eles começaram a cuidar ainda mais do local, fazer empréstimos e abrir ruas.

“Todo mundo caiu, foi lá e fez empréstimo, fez e comprou a madeira, fez uma casa melhorzinha para os filhos. E agora, aonde a gente vai ficar com essa madeira? Todo dia eu martelo na minha cama, e eu falo: será que não tem um que possa fazer nada por nós? Se não querem dar uma terra, tudo bem, mas olha para esse povo que vive do Bolsa Família”, disse. “Qual foi a oportunidade que o estado deu para os nossos filhos?”

No vídeo, ela chama a atenção para a situação que as crianças estão passando por não terem onde ficar. Alguns dos problemas principais são o calor e insegurança enfrentada pelos pais, pois a situação impacta diretamente no processo de formação. “Estão matando um único sonho daquelas crianças.”

Além disso, Maria Liberdade pondera que a falta de oportunidades para a inclusão social e econômica deixam seus filhos expostos ao mundo do crime, sendo presas fáceis para as facções criminosas – uma trágica realidade já bastante vivida e conhecida pelas famílias das periferias de Rio Branco.

Mais de nove milhões de crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em extrema pobreza no Brasil, de acordo com dados de 2023, divulgados pela Fundação Abrinq. O Acre ocupa o terceiro lugar, com aproximadamente 100 mil crianças em situação de pobreza e vulnerabilidade social – número que representa 43,8% do total de pessoas nesta faixa etária.

A comunidade vai permanecer acampada em frente à Aleac até que possa ser ouvida sobre a necessidade que possuem: a obtenção de uma moradia própria, que proporcione estabilidade a eles, uma vida digna. Eles querem apenas a verdadeira cidadania de cidadãos brasileiros que lhes é assegurada pela Constituição Federal – e, sim, moradia digna é um direito constitucional. E, dessa forma, muitas Marias, como a Maria Liberdade, continuarão resistindo por elas e seus filhos, buscando dignidade e respeito.

Pão e moradia

Com uso desproporcional da força, PM retira famílias da ocupação Terra Prometida em 15 de agosto. Pedido de reintegração foi movido pelo governo, e aceito pela Justiça (Foto: Juan Diaz)


Para o professor de Direito da Universidade Federal do Acre (Ufac) Leonardo Lani, o governo poderia ter gerido a situação de outra forma, a fim de preservar o bem-estar social das famílias que ficaram desabrigadas. Em sua fala, ele pontuou que o direito à moradia é assegurado constitucionalmente, e que situações como essa acontecem com populações em alta vulnerabilidade social.

“Se a intenção era essa, por que não deixar as famílias ali mesmo, enquanto essas casas não ficam prontas? Essa saída seria muito mais sensata do que retirar as famílias à força, como foi feito, recorrendo a balas de borracha, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e até um helicóptero”, comenta Lani.

Completa o especialista: “A função social da propriedade também é aplicável aos imóveis do poder público, e os imóveis sem uso deveriam ser destinados à moradia de interesse social, para redução do déficit habitacional. A falha do Estado em dar função social aos imóveis do patrimônio público leva ao descaso, ao abandono e vulnerabiliza a população mais carente.”

O que diz o governo

Em nota, por meio da Agência de Notícias do Acre, o governo se pronunciou e disse que a reintegração de posse no bairro teve o objetivo de desocupar a área pertencente ao Estado, que será utilizada, posteriormente, para construção de moradias populares. Ainda, segundo o governo, os terrenos são destinados ao programa Minha casa minha vida do governo federal que visa entregar 224 apartamentos, previstos para serem entregues em 2024.

Em nota, o Governo ainda destaca que nos últimos meses buscou trazer assistência aos moradores tentando inseri-los em aluguéis sociais junto ao cadastro habitacional, porém houve recusa por parte dos moradores. No momento, alguns moradores estão abrigados na casa de parentes, em lugares cedidos pela própria população e em quadra de escolas.



Logomarca

Deixe seu comentário

VEJA MAIS

banner-728x90-anuncie