O barco navega pelas águas barrentas do rio São Jorge, município de Chalán, em Sucre, Colômbia. Atraca em um barranco na aldeia Vereda los Comuneros. Lá, os moradores desembarcam a preciosa carga. Eram livros. São empilhados dentro de um andor no lugar do santo. Isso mesmo, um andor ornamentado com arranjos de flores, carregado por homens enfatiotados, que marcham silenciosos e reverentes como na procissão da semana santa, em direção ao templo: uma modesta casinha de madeira, sede da Biblioteca La Esperanza.
Toda comunidade segue a procissão de livros sacralizados pelo andor. Essas imagens exibidas em Bogotá, em junho de 2010, na abertura do II Congresso Nacional de Bibliotecas Públicas, permanecem na minha lembrança e rabiscadas no meu caderno. Não anotei o título do documentário, mas acho que era um caserío dos Zenú, um povo indígena “recuperador de sueños”, que muito lutou para reconquistar suas terras usurpadas.
Mas devagar com o andor que o santo é de papel: não se trata de nenhuma biblioteca imaginada por José Roberto Torero em “As Bibliotecas Fantásticas” (BFs). La Esperanza, a biblioteca carregada no andor, existe mesmo em carne e osso e não como criação literária. Faz parte do Programa Nacional de Bibliotecas Itinerantes da Colômbia, que criou diversas bibliotecas fantásticas semelhantes às imaginadas ficcionalmente por Torero.
Biblioteca que anda
Com sua extraordinária imaginação, Torero inventou 99 bibliotecas fabulosas, localizadas em vários continentes, para discutir em forma lúdica e poética o que pensa sobre livros, leitura e leitores, com o estilo dele: elegante, refinado, irônico e bem humorado, repleto de metáforas.
Se ele apresentasse essas ideias em forma de ensaio não seriam tão cristalinas e agradáveis de ler. Ao terminar a leitura, fiquei matutando se esse seu livro fantástico caberia nessas bibliotecas fantásticas. Percorri algumas delas para verificar.
A primeira foi a Biblioteca de Bandahar, no rio Tigre, na qual os livros são escritos também pelos usuários, que rabiscam suas observações, tornando-se uma obra aberta, coletiva, escrita por todos os que o leem. O meu exemplar das BFs, por exemplo, já está repleto de anotações, portanto, tem lugar na estante de Bandahar. Mas caberia também na Biblioteca de Komok, que em vez de jogar fora os livros mais gastos pelo uso, corta algumas páginas selecionadas e as coloca dentro de outros livros.
A Padaria de Textos, que editou o livro de Torero, em 2003, poderia doar exemplares para a Biblioteca de Afsin, na província de Kahramanmara, que possui as estantes mais belas do mundo, feitas com as madeiras mais nobres de todas as cores, caríssimas, mas não possui nenhum livro porque não sobrou dinheiro para comprá-los.
A Biblioteca de Sinar, na Suméria, provocaria delírios no imortal Ailton Krenak, porque “não tinha livros, mas contadores de histórias, cada um com sua especialidade, permanentemente à disposição dos leitores ou melhor escutadores”. Lá nasceu o alfabeto. Foi assim: “Um dia a esposa do bibliotecário, que era surda, estava muito triste por não ouvir o que os contadores contavam. Foi quando ele teve a ideia de transformar os sons em símbolos. E assim, num gesto de amor do bibliotecário, inventou-se a escrita”.
Com objetivo similar ao da Suméria, encontramos a biblioteca Ilabhulali Yokuhamba que na língua zulu – na fantasia de Torero – quer dizer “biblioteca que anda”. São duas bibliotecas em uma só: a primeira é um pilha de livros carregada pelo bibliotecário em sua cabeça pelas estradas de Lesoto para vendê-los, emprestá-los ou dá-los. A segunda está dentro da cabeça dele, que conta as histórias do livro para quem não sabe ler.
Lendo na privada
Ah, o livro do amigo Torero não pode fazer parte do acervo da Biblioteca de Mérida, cujas salas de leitura, para atender o gosto dos seus frequentadores, são salas privadas com sanitários, “de modo que o leitor não perde tempo em ir ao banheiro, pois já está nele”. O bibliotecário espanhol Calderón de Mejía reflete sobre “o ato de ler durante o despejamento fecal” e nota que “sempre faltavam algumas folhas em seus livros”. O destino das bibliotecas depende, pois, de abastecê-las com papel higiênico.
Faz sentido. Lévi-Strauss, que passou pela Bolívia, em 1938, quando pesquisava no Arquivo Nacional em La Paz, observou um funcionário que corria disparado em direção ao sanitário, mas antes parou numa estante e arrancou várias páginas de um livro, apesar do ato administrativo do diretor transcrito do quadro de avisos pelo autor de Tristes Trópicos: “É rigorosamente proibido arrancar páginas dos arquivos para uso sanitário e higiene pessoal. Os infratores serão severamente punidos”.
A função da leitura é abordada na Biblioteca de Rapunzel, na torre onde estava ela presa por uma bruxa. Lá, havia uma biblioteca abarrotada de livros. Quando a menina fez quinze anos, esperou a bruxa sair e começou a jogar livros pela janela, um volume sobre o outro e assim, com excelente pontaria, construiu uma escada. Foi por ela que Rapunzel conseguiu fugir. “Moral da história: os livros trazem a liberdade, mesmo se for preciso jogá-los pela janela”.
Folheando livros
A leitura pode fazer com que um casal viva junto para sempre, se os dois frequentarem a Biblioteca da Ilha de Akaito, no Mar do Japão, porque lá “tem sempre dois exemplares de cada título em estantes diferentes. Quando duas pessoas que se amam leem o mesmo livro ao mesmo tempo acabam se casando. Surpreendentemente, há poucos divórcios em Akaito”. A cumplicidade da leitura gruda um no outro.
Existem muitas outras, entre elas a Biblioteca Monstruosa, que é “especializada em História da Civilização”, seus usuários são monstros horrendos com garras gigantescas, que arranham as capas dos livros. O autor não diz, mas o leitor conclui que hoje ela é frequentada por Netanyahu, Putin et caterva.
Já a Biblioteca de Khubeis é formada apenas por livros em branco, pois o povo da cidade não sabe ler, mas como as pessoas ouviram dizer que “folhear livros é algo que traz respeito e nobreza, a cidade construiu uma imensa biblioteca que está sempre lotada por seus vaidosos analfabetos”. Parece que foi lá – concluo eu – que o ex-juiz Sérgio Moro leu as biografias não lembradas por ele no programa Conversa com o Bial.
O livro de Torero ilustrado pelo artista plástico Eloar Guazzelli, começou a aparecer em postagens no Face, de quando em quando, com uma biblioteca fantástica aqui, outra mais fantástica ali, até que, em 2023, a Padaria de Livros editou uma seleção contendo 99 delas, que nos surpreendem, com muitas referências geográficas, históricas, literárias. Uma delícia de leitura, que nos dá uma ideia de como foi se construindo a noção de leitor, de leitura e de biblioteca.
Meninas escritoras
Conheci José Roberto Torero, com quem convivi durante o mês de novembro de 2018 na expedição literária Amazônia das Palavras, que navegou pelo rio Madeira, compartilhamos a mesma cabine do barco, que parava em cada cidade, onde realizávamos oficinas com alunos do ensino fundamental. Ele, na Produção de Contos, com as crianças recriando histórias infantis. Eu, contando histórias indígenas.
Em uma delas recolhida por Couto de Magalhães, em 1865, em língua Nheengatu, o Jabuti, ameaçado de ser devorado pelo Jacaré e pela Onça, usa a inteligência para atiçar uma briga entre as duas feras e se escafeder. Moral da história: se teus inimigos são mais fortes que tu, não bate de frente com eles, joga um contra o outro”.
Minha neta Maia, de sete anos, recém alfabetizada, ouviu essa história e também meus comentários sobre As Bibliotecas Fantásticas em conversa com a avó. Maia reescreveu e ilustrou a história a seu modo, por iniciativa própria. Com um grampeador, “encadernou” e “plastificou” seu livro. Juro que nada sugeri, quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que Santa Luzia me cegue se eu estiver mentindo. Ela já vendeu um exemplar por R$ 2,00 para sua colega na escola. É mais esperta que o avô.
Ah, Maia me pediu para convencer Torero de que deve criar, entre as suas Fantásticas, a Biblioteca das Crianças Escritoras da Aldeia Curumim, para lá colocar a produção literária dela. Mas para essa questão não vou jurar que ela esteve livre de minha influência, porque quero preservar minha mãe das garras do Capiroto. De qualquer forma, este livro do Torero merece ser conduzido em um andor para ser distribuído em cada biblioteca real ou imaginária desse país, incluindo a da Aldeia Curumim e de todas as escolas do Brasil.
O “fantástico” é que no nosso país apenas 52% das escolas têm biblioteca ou sala de leitura e, quando se trata de área rural, a porcentagem cai para 26%. Lula acaba de assinar a lei que cria o Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (09/04), argumentando que “o Brasil não quer e não precisa de armas na mão do povo, mas de segurança, de livro, de educação e de cultura para que a gente possa ser um país mais justo”. Vamos ver qual será o resultado disso para os povos originários.
No Ciclo de Debates Educação e Povos Indígenas, realizado em 3 e 4 de abril no SESC Bom Retiro, em São Paulo, relacionei as “Fantásticas” do Torero com as bibliotecas classificadas polemicamente como indígenas. Lá, discorri sobre “Bibliotecas Indígenas: oralidade e escrita” numa mesa com Cristine Takuá, Sandra Benites e Tatiana Amaral. Na ocasião, fiz uma síntese das palestras em eventos que participei desde 1997 no México, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Argentina.
José Ribamar Bessa Freire, amazonense, professor aposentado da UERJ e da UNIRIO e jornalista, ex-correspondente do semanário Opinião em Paris e fundador do jornal Porantim.