GRILEIROS E PISTOLEIROS

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Camponeses denunciam ameaças em ocupação no interior de RO; entidades expõem graves violações de direitos

Rancho no acampamento apoiado pela Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia; além da ameaça de pistoleiros com CACs, famílias convivem com insegurança alimentar (Foto cedida)



O acampamento Gideon José Duque, em Machadinho d’Oeste é formado 120 famílias em situação de miserabilidade. Elas reivindicam serem assentadas em meio à expansão das fazendas de soja na divisa entre Rondônia e Mato Grosso. Muitas das armas apreendidas com jagunços estão registradas como CACs, uma das maiores heranças malditas do governo Bolsonaro. Além do risco de vida pela pistolagem, camponeses vivem em situação de insegurança alimentar e condições precárias de saúde. Situação será exposta a organismos internacionais.




Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho

Entidades nacionais e internacionais de direitos humanos receberão cópias do relatório que a Associação Brasileira de Advogados do Povo e Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo) elaboram, após visitarem no final da semana passada o acampamento Gideon José Duque, na zona rural de Machadinho d’Oeste, a 300 quilômetros de Porto Velho. Nessa área vivem aproximadamente 120 famílias camponesas em situação de miserabilidade.

Contendo fotografias de ranchos queimados, cartuchos esparramados pelo chão, entre outras situações, o documento inclui depoimentos de vítimas ameaçadas por jagunços de fazendeiros no entorno da área ocupada. Por segurança, em clima tenso, as pessoas pediram para não serem identificadas em fotos feitas pelos visitantes. Eles próprios representantes dessas entidades e estudantes da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) preferiram agir mais e posar menos para fotos.

O risco é grande, eles avaliam. Há remanescentes de empoderados caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) fazendo e acontecendo na floresta da região. Esta é a pior entre as muitas heranças malditas do governo Bolsonaro a tirar toda chance de paz no Vale do Jamari e adjacências, onde existem áreas conflagradas de disputa agrária em Rondônia.

Machadinho d’Oeste situa-se na divisa de Rondônia com Mato Grosso. Estudantes, professores e advogados integrantes da missão humanitária se surpreenderam com o que viram: barracos e roças queimadas, animais feridos perambulando pelas cinzas da área atacada, e diversos danos nos parcos bens que possuem. “Tudo destruído”, lamentaram. Os camponeses gritaram palavras de ordem: “Conquistar a terra! Morte ao latifúndio!”.

O professor pesquisador de geografia agrária, Ricardo Gilson da Costa e Silva, e uma equipe de saúde, também participaram do atendimento clínico para crianças, homens e mulheres. Algumas pessoas mostraram ferimentos nas pernas e nos braços.


Monocultura, boi, atiradores e porteira aberta

Os intensos e violentos conflitos agrários na região leste de Rondônia é consequência direta da expansão desenfreada da monocultura da soja e da formação de pastagem, e ao mesmo tempo, da “farra dos CACs” ocorrida durante a gerência de Jair Bolsonaro, especialmente, entre 2019 e 2022. Até o final daquele período, 5,2 mil condenados pela Justiça conseguiram obter, renovar ou manter o registro de CAC no Exército Brasileiro, obtendo armas de grosso calibre.

Cartuchos de armas de alto calibre pelo chão; PM fez apreensão gigantesca com dois CACs, duas semanas atrás (Foto cedida)

Se antes havia zelo e cuidados com a liberação de armas pesadas, Bolsonaro concedeu licenciamento total, verdadeiro escancaramento que muito auxiliou na chamada “porteira aberta” na Amazônia Brasileira – alusão jornalística à política favorável à derrubada de florestas e total favorecimento a clientes morosos no pagamento de dívidas de financiamentos obtidos em bancos oficiais.

A farra resultou em consequências terríveis até agora sentidas, e o acampamento Gedeon é vítima desses seres, possivelmente ainda acobertados por forças policiais que apoiam latifundiários, a título de “policiamento e segurança rural.” Não é novidade nenhuma a denúncia de que policiais militares fazem o papel de seguranças privados de grandes fazendeiros pelos interiores da Amazônia.

Na semana passada, a Polícia Militar de Rondônia informou ter apreendido com duas pessoas – identificação não fornecida – um grande carregamento de munições, espingardas, pistolas, fuzis, lunetas e aparelhos de radiocomunicação. Uma delas confessou-se integrante do CAC e “justificava” sua presença no entorno do acampamento: “ia caçar porcos do mato.”

A comida é preparada em fogão improvisado; o índice de pobreza na região é alto, conforme estatísticas do IBGE (Foco cedida)


Pobreza

Machadinho d’Oeste possui 2.674 famílias em condição de extrema pobreza, enquanto Ariquemes tem 2.250, Candeias do Jamari 3.081, e Buritis, 1.346. O município de Porto Velho, forte braço do agronegócio concentrado no interior de Rondônia, possui 21.332. Os números são do Programa Bolsa Família.

O relatório sobre acampamentos camponeses ameaçados sairá, mas, em termos práticos, o Cebraspo pouco ou nada espera do governo estadual, nem do Incra. Deste, em 2023, a superintendência estadual apenas admitia um total de 105 demandas de acampamentos (da Liga dos Camponeses Pobres, do MST e de outros movimentos) no estado.

Roça que escapou à destruição durante o mais recente ataque de jagunços às famílias do acampamento Gedeon José Duque (Foco cedida)

Para o Instituto, a existência de famílias amargando o abandono em saúde e educação não reflete a realidade, uma vez que estariam “fora da gestão”. O Incra, que distribui fartamente uma linha de recursos federais para famílias em projetos de assentamento, ignora totalmente os camponeses. O que equivale dizer: pobres movimentos sociais, pobres associações, sempre jogadas para as traças. Não houve exceções, até agora.

Para um professor universitário conhecedor da realidade fundiária em Rondônia, a entrega de alguns títulos de terra atualmente pelo Incra, via programa Georondonia, “encobre a legalização de áreas griladas.” “Os camponeses nos relatam, por exemplo, que outro dia aconteceu uma entrega mínima de três títulos em ato que reuniu uma imensidão de camponeses em Machadinho, mas isso só serviu de palanque político”, ele diz.

E o cúmulo do preconceito e da ignorância das leis educacionais do país ocorreu pouco mais de uma década atrás na região: um juiz da Comarca de Ariquemes suspendeu o transporte escolar de crianças num ônibus escolar, sob alegação de que “estudavam numa escola camponesa.”

Na região de Corumbiara e Chupinguaia, a dita reforma agrária só subiu alguns degraus, graças à pressão do Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina e pela LCP – ambos atuantes naquela região desde o Massacre de Corumbiara.

Cansados de esperar o cumprimento de promessas furadas da Ouvidoria Agrária do Incra e das próprias autoridades federais que fugiram da raia, por conta própria, famílias camponesas cortaram a terra em 2010, possibilitando-lhes a destinação de 3.164 alqueires correspondente à área denominada Água Viva, que deixou de pertencer ao antigo latifúndio.

Horta camponesa no acampamento Gedeon José Duque (Foco cedida)


No município de Ariquemes, a 200 quilômetros de Porto Velho, tudo está empacado: a Fazenda Rio Branco II, do falecido empresário Ugo Frey, por exemplo, fora desapropriada ainda na presidência de Dilma Rousseff (PT), e segue “objeto de procedimento administrativo” [nº 54300.000116/2013-16].

O Incra, ao que consta, não concluiu o procedimento “devido a problemas orçamentários.” O presidente da autarquia, César Fernando Schiavon Aldrighi, expediu o Despacho Decisório 7285, mas a inércia persiste.

Terras inutilizadas

Relatório do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) em 2021 apontou a existência de aproximadamente 27% das terras de Rondônia sem destinação fundiária, o equivalente a mais de 6 milhões de hectares. Ou seja, essas terras não têm utilidade definida pelo poder público e nem integram o patrimônio privado.

Quatro anos atrás, a Secretaria Estadual de Agricultura revelava um aumento superior a 45% nas exportações de carne e soja, ou seja, mais de 900 milhões de dólares. E há oito anos, conforme números computados pela própria secretaria, Rondônia possuía 270 mil propriedades rurais que adotaram a soja como principal commoditie.

Sem alternativa, a monocultura tende a invadir áreas florestais, a (mau) exemplo do que aconteceu no interior do município de Candeias do Jamari (cidade dormitório de Porto Velho), a um quilômetro da estrada que liga a BR-364 ao Distrito de Triunfo. Verde há quatro anos, hoje está “pelada”.

Pressão de guaxebas e da polícia

A missão de solidariedade aconteceu nos dias 12 e 13 de abril. Professores, estudantes e advogados constataram as condições físicas e emocionais das famílias das áreas camponesas Valdiro Chagas, Gonzalo e adjacências.

Com base nos dados coletados, eles identificam ações de pistoleiros (guaxebas), latifundiários, agentes das forças de Segurança Pública e de outros órgãos estatais. Da mesma forma, levantam possíveis omissões do Poder Público.

“Preocupante o que está claro em boletins de ocorrência da Polícia Militar de Rondônia – a presença dos CACs no entorno dos acampamentos”, dizem. Da realidade dessas áreas de acampados, até hoje a maior parte do noticiário na mídia rondoniense expõe situações que criminalizam camponeses, porém, oculta a existência de ações conjuntas de policiais e jagunços, conforme já constatou o Tribunal de Justiça do Estado em Vilhena e região sul. No sul do estado, o TJ condenou policiais militares que trabalharam para o latifúndio”, diz trecho de um relatório prévio. Eles eram pagos por latifundiários da região.

Professores, estudantes e advogados acompanharam uma assembleia camponesa na área Valdiro Chagas, notando a mobilização, coragem e boa vontade de todos na realização de novos atos públicos, para os quais são necessárias: a produção de alimentos; a confecção de bandeiras, faixas etc.

Tomaram parte na leitura de um manifesto e entoaram canções de luta e palavras de ordem de resistência. A coleta de entrevistas individuais possibilitou a organização do relatório. Nas conversas, todos relataram os ataques a tiros e a ação de policiais no entorno da área de conflito.

Eles também enfatizaram casos de agressões, espancamentos e xingamentos praticados até contra camponeses vizinhos ao acampamento. “O objetivo deles é criar um clima de terror na região e, mesmo assim, seguir criminalizando os camponeses”, sintetizam os depoentes.

Estudo mostra avanço da monocultura

A considerar o avanço das lavouras de soja em áreas até mesmo situada às margens de rios, nos municípios de Candeias do Jamari e Porto Velho, especialmente, a área plantada com grãos ultrapassou 350 mil hectares, de pastos degradados. Em resumo: a área plantada visando unicamente à exportação, já ultrapassou 700 mil hectares, o que resulta em colheita mecanizada de aproximadamente três milhões de toneladas.

No livro Amacro – a reorganização do capital no campo na Amazônia (Dialética Editora, 2024), o pesquisador e doutor em Direito Agrário Afonso Chagas, lembra que municípios da Amacro (acrônimo de: Acre, Amazonas e Rondônia) tiveram um crescimento bem acima da média.

Nesse mesmo livro, o administrador de empresas pela FGV-SP, João Carlos de Souza Meireles Filho, morador em Belém, observa “O caso específico do boi é compreendido como principal “ator” da frente de expansão pioneira e agropecuária, mas também sob forma e uma “caderneta de poupança.”

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse boi “ator” vai longe. Basta olhar e verificar os números do valor adequado bruto da agropecuária a preços correntes PIB-2021 em seis municípios:

Porto Velho, em 1º lugar, com R$ 1 bilhão 41,28 milhões; Ariquemes, R$ 293 milhões; Buritis, R$ 336,95 milhões: Machadinho d’Oeste, R$ 352,19 milhões; Nova Mamoré, R$ 344,26 milhões; Candeias do Jamari, R$ 141,45 milhões.

Afonso Chagas: “Uma breve sistematização dos dados, primeiramente do IBGE, no Censo Agropecuário de 2017, e publicados em 2022, aponta o uso do solo nos municípios da Amacro: 54,4% eram utilizados para a pecuária. Esse índice se destaca principalmente nos municípios de Rondônia, onde as áreas de pastagem nos 32 municípios passaram de 80%. A proporcionalidade de uso do solo (RO e AC) correspondeu a 40,5% da área desses municípios, e a utilização de agrotóxicos na produção agropecuária alcançou uma média de 33,4% no levantamento do Censo.”

Pepino colhido na roça camponesa (Foco cedida)

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