Falas de senador bolsonarista aumentam ambiente de ameaças aos indígenas de Rondônia
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
O uso de escola pública municipal para sediar reunião com mais de duzentas pessoas e sucessivos ataques por parlamentares federais de Rondônia provocou reação de indígenas no município de Seringueiras, a 566 quilômetros de Porto Velho. Puruborá, Kujubim e Miqueleno são três povos que aguardam a demarcação de suas terras no Vale do Guaporé, em meio a um ambiente hostil e de muitas ameaças contra as populações tradicionais.
Mapas falsos circulam diariamente nos grupos de WhatsApp dos moradores da região, enquanto as conversas denotam perseguições que podem resultar em violência. As vítimas não são apenas os indígenas: angustiados com a possibilidade de perder lotes de terras, até mesmo pequenos produtores se unem ao coro asqueroso dos que semeiam o terror.
Lideranças indígenas denunciaram o senador Marcos Rogério (PL-RO) no Ministério Público Federal (MPF) por racismo e incitamento ao ódio. Estão convictas do total desconhecimento da população migrante no que diz respeito à história secular da região bem antes de pertencer ao velho Território Federal do Guaporé.
Rogério, o bolsonarista que enfrentou e perdeu para outro bolsonarista – o governador Marcos Rocha – a disputa pelo Palácio Rio Madeira nas eleições de 2022, é o relator do marco temporal no Senado Federal.
Após tramitar rapidamente pela bancada ruralista do Congresso Nacional, o Projeto de Lei 2903/2023 teve parte de seus artigos vetados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Agora, o senador é um dos líderes da “bancada da motosserra” que se mobiliza para derrubar os vetos do marco temporal.
No final da semana passada, em pronunciamento na Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Pereira e Cáceres, ouvido por moradores de São Francisco do Guaporé, Seringueiras e São Miguel do Guaporé ele gritou: “(…) Nós temos hoje 118 milhões de hectares só de áreas demarcadas, e índio passando necessidade em algum lugar, porque não pode produzir; aqueles que se dizem seus defensores não querem a dignidade do índio, querem explorar e usar o índio para defender interesse internacional.”
Segundo ele, duas mil propriedades rurais no estado “serão prejudicadas.”
“Associações de Produtores Rurais” e o Sindicato dos Produtores Rurais de São Francisco do Guaporé convidaram publicamente as pessoas para a reunião do dia 18 no Setor Porto Murtinho. “Para ganhar espaço e conquistar eleitores, Rogério se aproveita dessa fúria numa região já dominada por outros parlamentares”, comenta uma liderança dos Puruborá ao Varadouro. Por questão de segurança, o seu nome não será identificado.
A disseminação de fake news pelos próprios parlamentares federais e estaduais põe a população rural contra os indígenas, deixando-os em situação de vulnerabilidade e insegurança.
“Vai ter banho de sangue”, diz um dos mensageiros no WathsApp. A região criou recentemente a União dos Produtores Rurais Contra a Demarcação. A simples existência do movimento fez surgir um clima tenso. Em consequência disso, lideranças indígenas batem à porta do Ministério Público Federal, sem êxito até o momento.
O Incra também não se pronunciou a respeito dos limites de terras, nem sobre os mapas fakes. Anteriormente à abertura da BR-429, não havia tanta mobilização contra os direitos indígenas. “Sofremos uma pressão muito grande desde o período eleitoral do ano passado”, diz a liderança. “Pessoas que nem conhecem os povos indígenas, só por ouvir falar já têm raiva da gente”, lamenta a líder Puruborá.
No final do mês passado, o Incra regularizou antigos lotes de terras em São Miguel do Guaporé, dando margem a boatos nos grupos de WathsApp. Um deles convocava pessoas interessadas a comparecer à reunião “para saber se a terra estava dentro do mapa.”
“O discurso contra as comunidades indígenas da BR-429 é de ódio, eu não sei de onde eles imaginam uma delimitação de terra, porque todo dia aparece um mapa nas redes sociais; são diversos até agora”, lamenta. No mês passado, um dos prints mostrava o vice-prefeito de Seringueiras postando em um grupo de WathsApp um mapa “com a delimitação dos territórios da BR-429.”
“Já sabíamos que a partir dali os fazendeiros iriam se articular e entender esse marco, porque eles batem, rebatem, pressionam, sem entender realmente o que tramita no âmbito da lei”, diz a liderança Puruborá.
O senador Rogério fez o possível para agradar – e inflamar o ambiente de ameaças contra os indígenas. Chegou ao ponto em que acendeu o estopim de um clima tenso que hoje envolve produtores e indígenas.
“(…) Não dá pra concordar com quem vê o agricultor e o pecuarista como bandido. Aí eu pergunto para as senhoras e senhores que estão aqui: quem é que faz bem para o Brasil? É o Congresso Nacional, é a Câmara e o Senado, a Constituição foi modificada para afastar o marco temporal? Lula ouve o apelo de ONGs internacionais e simplesmente veta totalmente o marco temporal.”
Zombaria pública
Ainda em São Francisco do Guaporé, o senador criticou o aumento da população indígena. A escola lotada favoreceu o incontido rompante do senador radialista de Ji-Paraná e risos debochados da plateia convidada.
“Vocês sabem qual é a população indígena do Brasil? No Censo de 2010 nós tínhamos no Brasil 896 mil índios. O último [quis dizer: mais recente, porque outros censos virão] de 2022 apontou uma população indígena de 1,7 milhão de índios. Em 12 anos, quase 100%; eu nunca vi procriar tanto.”
Para a ambientalista e indigenista Ivaneide Bandeira, a Neidinha, da Associação Kanindé Etnoambiental, o senador “tem posição racista e fala mentirosa.” “Suponho que por trás desse discurso está a especulação imobiliária, pois com fake news ele promove pressão no campo, e os pequenos proprietários de terras, com medo de perdê-las, passam a vendê-las por um preço muito baixo”, afirma Neidinha.
“Cuidado com mentiras”
Segundo Neidinha, os mapas falsos já demonstram as áreas em que o senador e quem ele representa têm interesse. “Isto exige investigação. A população precisa ficar atenta para não cair nessas mentiras. Os ataques aos indígenas devem ser investigados pelo MPF, afinal ser senador não dá direito a ele de atacar os indígenas, nem a jogar a população contra os indígenas.”
Lamentando o papel de alguns políticos de Rondônia, a indigenista vê a aproximação das eleições municipais de 2024 como fator dessa pressão: “Eles querem eleger o maior número de seus representantes, e usam os ataques aos indígenas para se promoverem. Cabe ao eleitor ficar atento, o que está por trás desse tipo de discurso.”
Neidinha lembra a necessidade de se questionar logo “o que esse senador [Rogério] faz no Senado, qual os projetos que ele vota e qual projeto de lei ele propôs, até para saber se está usando o cargo apenas para enriquecer.”
Áudios da discórdia
Desconhecimento legal, histórico e a má interpretação dos fatos caminham juntas nos municípios onde a presença indígena, entre os anos 1970 e 1980, era normal e o próprio Banco Mundial teve como uma das cláusulas do Polonoroeste a demarcação dos territórios indígenas, a partir de 1981.
Polonoroeste é a sigla do Programa de Desenvolvimento Integrado para o Noroeste do Brasil Não havia tanta ganância pela expansão de lavouras de soja, nem pelo aumento das pastagens para a criação de gado bovino.
“Você não tem mais documento da sua terra”
Eles conseguiram prints de alguns áudios que revelam um enorme desencontro de informações. O conteúdo é preconceituoso e ameaçador. Na íntegra:
∎ Esse Renato aí, ou ele é um retardado mental que tem problema, ou é sem-vergonha mesmo, porque ele fica defendendo o lado dos vagabundos, e ele não está nem aí com as pessoas. Essa foto aí, pra quem não sabe, é o que vai acontecer com o nosso Estado de Rondônia se a lei do marco temporal não for aprovada pelos senadores. Todas essas mancha preta (sic) aí vão se tornar novas reservas, entendeu? Você vê aí o tanto de gente que vai ser jogada na rua. (…) Vou levantar isso aí pra vocês começar a acordar pra vida.
∎ O Lula já colocou que não vai pagar indenização, tá bom? e o pessoal não vai ter direito a receber nada. Simplesmente vai sair com uma mão na frente e outra mão atrás. Nem as benfeitorias talvez você não receba. E outra coisa: não adianta ter título de terra não. Título e escritura pública é tudo derrubado. Na verdade, essas áreas que tão com esse desenho aí, se você for lá e consultar o título hoje no Incra, ele já foi cancelado. Então, você não tem mais documento da sua terra.
∎ Pode se preparar para os próximos meses, que se o marco temporal não for aprovado pelos senadores, se eles não tiverem força – porque o STF já se colocou contra, e o Lula também – pode ter certeza que até março, abril do ano que vem essas áreas pintada de preto aí já não vai mais conseguir matar boi no frigorífico, e aí cê já sabe o que vai acontecer com o preço da arroba do boi, né?
∎ O resto de nóis vamo arrumá um jeito de se defendê, de se protege e de si uni. Enquanto o produtor rural não for uma classe unida igual os sem-terra é, nói não vamo ganhar uma batalha. O governo vai fazer com nói o que quiser pro resto da vida. Nói só vamo trabaiá, pagá a conta e nunca vamo ter direito a nada.
∎ Bom dia pessoal: esse mapa aí é a única intenção da Funai de fazer a reserva indígena dos Uru-eu-au-au e os miquelenos. Vai pegar, inclusive, um pedaço de São Miguel aí. Quem pudé dá uma força pra nói, dia 18 temo reunião lá no Porto Murtinho: a Associação de Seringueiras e o Sindicato (Rural) de São Francisco. Lá nós vamos trazer o senador, deputado, vereador, prefeito lá e comunidade geral pra nói informa e discuti essa questão aí.
∎ Nóis têm que defender o que é nosso, né gente? É lamentável o que aconteceu lá no Pará e em todos os lugares onde tão demarcando. Pessoal que já tem suas propriedades, gado e suas criações perder tudo…é triste, muito triste. O prazo venceu lá em Apyterewa (São Félix do Xingu, sudeste do Pará) e poucos produtores conseguiram tirar as criação, outros nem tiraram, perderam tudo. Lá teve um que perdeu até a vida. É só Deus na causa.
A reportagem do Varadouro entrou em contato com a assessoria de imprensa do senador Marcos Rogério, mas até o momento não houve resposta à solicitação de manifestação.