“Viva as mulheres
mulher vagalume que anda no mundo
clareando toda a cidade”.
Dona Maria Zenaide
Enquanto o principal projeto que o Brasil oferece à Amazônia segue sendo o desmatamento, a exploração da terra e do trabalho humano e a consequente vulnerabilização dos povos da floresta, as mulheridades amazônidas continuam atuando na contramão dessas forças predatórias que não descansarão até transformar o último acre de terra em capital.
Enquanto o Sudeste especula como irá salvar a Amazônia e os rios acreanos transbordam engolindo casas e histórias em mais um anunciado episódio de racismo ambiental, as mulheridades continuam mobilizando tecnologias ancestrais de resistência às opressões. Tecnologias estas que até hoje são opostas e aperfeiçoadas em Aquiri, como táticas “para adiar o fim do mundo”, (re)encantar o cotidiano e elaborar futuridades pelas as quais se vale a pena acreditar e lutar, ou seja, esperançar.
Esperançar um futuro em que a Amazônia permaneça “de pé com gente vivendo nela” – gente livre, autônoma, saudável e feliz – é um direito e um dever. Um direito de não tombarmos frente aos avanços neoliberais e aos desenganos de quem diz a ele enfrentar. Um dever de “sermos muitas”, de estarmos juntas e alinhadas na defesa desse direito. E há quem pense ser este um dever também das universidades públicas.
É ainda em tempos pandêmicos, ainda no final de 2020, com o Acre no topo das taxas de feminicídio no país e com um governo federal impondo uma política de morte na negação de vacinas contra o coronavírus à sua população, que começa a germinar o programa de extensão curricular “Samaúma Vivificante: o bem viver e a educação feminina de(s)colonial”, ligado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Ufac). A Samaúma desabrocha com o desafio de desenvolver políticas educativas atravessadas pelas epistemologias e metodologias que brotam dos varadouros acreanos, muito além dos muros universitários.
Não se tratava de criar algo, mas de fortalecer e aprender com as práticas, a um só tempo, tradicionais e inovadoras das mulheridades que têm bravamente defendido e reconstruído a Amazônia, seja nas suas expressões rurais ou urbanas. A metodologia do Programa, idealizada pela professora doutora Marina Vieira de Carvalho – lotada no curso de História da Ufac – segue o talhe de uma samaúma, a grande rainha da floresta.
Seja como um ente sagrado ou como símbolo das potencialidades extraordinárias da vida orgânica das florestas, a Samaúma ocupa um lugar central no imaginário amazônico e informa o modo como nosso Programa se estrutura e toca suas atividades.
A começar pelas suas Raízes, que lhes dão sustentação e conformam a equipe que trabalha perenemente no acompanhamento das ações do Programa, da qual faço parte junto a Alonita Martinha da Silva, Célia Santos da Silva, Jéssica Luana de Castro Marinho, Marina Vieira de Carvalho, Marisol Brandt, Patrícia da Silva, Tailini Mendes Coradi, Edwardy Oliveira Benício de Melo e Daniel Laucas. (Atualmente, as seguintes discentes compõem o Programa: Raiele Souza Moura; Larissa Oliveira dos Santos; Ricardo De Araújo Lopes; Ágatha Rodrigues Correia da Silva; Junaida Mendes Serra).
No Tronco dessa árvore, encontramos as linhas temáticas que informam as ações: hortas comunitárias/agroecologia; indígenas: oficinas e vivências; rituais de comensalidade; oralidades; corporeidades; medicinas naturais e Pluriversidade Samaúma Vivificante. Das Raízes ao Tronco, perpassa a Seiva, conceitos-valores que nutrem-orientam o Programa: equidade étnico-racial, de sexualidade e gênero; interculturalidade crítica; soberania alimentar; cosmofilia-Bem Viver etc.
E enfim, a Copa, que consiste nos projetos de extensão elaborados pelas mulheridades negras, indígenas, afro-indígenas e camponesas/agro-extrativistas do Acre, parceiras e público alvo do Programa. Assim como a copa das árvores em geral, a copa da nossa Samaúma Vivificante se renova sazonalmente com novos projetos propostos e tocados por mais sujeitas.
Durante os anos de 2022 e 2023, já ocorreram os projetos: “Roda Vivificante de Capuêra Angola”, construído junto ao Núcleo de Estudos de Capuêra Angola Maria Felipa; o projeto “Ginecologia De(s)colonial Filhas e Curas”, protagonizado pela grandiosa parteira e cantora Maria Zenaide de Souza Carvalho; a “Oficina de temperos: os saberes culinários/medicinais das mulheres da floresta”, desenvolvido pelas companheiras Maria das Graças e Sônia Maria; e o projeto “Hortas Comunitárias/Agroecologia”, tocado pelo Movimento de Mulheres Camponesas do Acre. E ainda teremos o projeto “O absorvente ecológico e o combate à pobreza menstrual” a se desenrolar neste 2024.
Todas as ações desenvolvidas pelos cinco projetos acima elencados contam com atividades paralelas para as crianças sob responsabilidade das mulheres público-alvo do Programa. A fim de que o valoroso trabalho de cuidado que a sociedade impõe às mulheres não fosse um empecilho à participação plena das mesmas, foi pensado o espaço “Erês da Samaúma”, no qual as crianças participam de atividades lúdicas de trocas de saberes, enquanto suas cuidadoras podem se envolver inteiramente nas atividades dos projetos.
Com apoio institucional da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proex) da Ufac, alinhado ao apoio financeiro da Emenda nº 71020006 do então deputado federal Léo de Brito (PT), a Samaúma Vivificante tem florescido e espalhado sua seiva pelos municípios de Rio Branco, Bujari e Acrelândia. Tem sido um processo rico e intenso, com percalços e contradições, mas com muito aprendizado a todas que nos envolvemos de alguma forma com esta Samaúma.
Em tempos de exacerbação da necropolítica – que quando não nos corta a carne, tenta sufocar simbolicamente até os lugares mais recônditos de nossas subjetividades – é preciso boa dose de ousadia para acreditar que outros mundos são possíveis, “mundos onde caibam vários mundos”. É preciso uma dose maior ainda de coragem, insistência e paciência para tentar construir esses mundos, ou no caso da Samaúma, nos somarmos em suas construções, vivificando-nos umas às outras nesse caminhar em defesa do Bem Viver.
Neste 8 de março, que marca internacionalmente as lutas que as mulheres têm travado na construção de uma sociedade mais justa e igualitária a todos os seres, é imprescindível ressaltar que alinhar práticas pedagógicas acadêmicas às tradicionais e populares é, sim, um dever das universidades públicas, mas é mais do que isso: é uma trincheira essencial na proteção da Amazônia, ou seja, da nossa casa, do nosso alimento, de nós mesmas e da poderosa magia que acontece quando nos juntamos e nos sabemos “mulheres vagalumes”.
Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.
leonisia.mouraf@gmail.com