Como a população de Cruzeiro do Sul faz sua própria adaptação ante as alagações do rio Juruá

Em artigo para Varadouro, o engenheiro civil cruzeirense Irlan Moura nos conta como uma herança cultural dos tempos dos seringais faz os moradores dos bairros mais baixos da segunda maior cidade acreana amenizar os impactos das cheias do rio Juruá. A sabedoria ribeirinha de observar o movimento das águas leva moradores da Várzea, Cruzeirinho e Miritizal a construírem suas casas numa altura adaptada para enfrentar os transbordamentos do manancial.
dos varadouros de Cruzeiro do Sul
Ano após ano, as cidades acreanas são impactadas, com mais intensidade, pelos eventos climáticos extremos. Do Alto Acre ao Alto Juruá os efeitos sentidos pela população são os mesmos. E, logicamente, os mais impactados são os moradores de bairros localizados nas partes baixas, nas periferias, áreas mais sujeitas ao transbordamento dos rios. Assim acontece em Rio Branco, em Cruzeiro do Sul, em Tarauacá, em Brasiléia…
No período do inverno, cidades, comunidades ribeirinhas e aldeias são atingidas pelas alagações. Já no verão, o efeito é inverso, com os mananciais em níveis críticos de vazante. Em muitos locais, fontes secam por completo, deixando os moradores sem água até mesmo para beber.
Sejam as alagações ou as secas, a nossa nova realidade climática – ou o nosso novo normal – exige medidas de mitigação e resiliência. Enquanto o poder público no Acre é totalmente omisso em executar políticas eficientes para amenizar os danos destas oscilações extremas, a própria sociedade faz suas adaptações.
E a população dos bairros localizados na parte baixa de Cruzeiro do Sul é o melhor exemplo disso. Apesar de a cidade ser frequentemente atingida pelas alagações do rio Juruá, os moradores das comunidades como Miritizal, Lagoa, Várzea e Cruzeirinho conseguem mitigar os efeitos. Essa mitigação não é fruto de políticas da prefeitura ou do governo.
Mesmo com o rio Juruá invadindo as ruas, a população permanece dentro de casa. Saem os carros e motos, e entram as canoas como meio de transporte. Essa é uma autoadaptação que a população mais pobre de Cruzeiro do Sul trouxe dos tempos dos seringais, quando também morava às margens dos rios. Já acostumados com o sobe e desce das águas, eles constroem suas casas em níveis para enfrentar as enchentes – sem ter que abandonar a moradia.
Na capital Rio Branco, enquanto milhares de pessoas são desabrigadas todos os anos pelos transbordamentos do rio Acre, em Cruzeiro do Sul as pessoas ficam dentro do aconchego de suas moradias até o momento em que o imponente Juruá não adentra os imóveis por completo.
Em artigo para Varadouro, o engenheiro civil cruzeirense Irlan Moura nos conta o porquê dessa diferença de impactos das alagações entre as duas maiores cidades acreanas. Especialista em engenharia ambiental, ele também fala um pouco sobre essa resiliência da população de Cruzeiro do Sul, herdada dos tempos dos seringais às margens do rio Juruá.
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Adaptação às enchentes amazônicas: um paralelo entre as duas capitais acreanas
As cheias dos rios amazônicos são um fenômeno natural que molda a vida de milhares de pessoas no Acre. Para as comunidades ribeirinhas, a variação do nível das águas, com seus ciclos de enchente e vazante, é uma realidade constante. No entanto, a forma como diferentes comunidades se adaptam a essas variações sazonais revela aspectos importantes sobre a interação entre o homem, o ambiente e o desenvolvimento urbano. Ao compararmos a realidade dos moradores ribeirinhos urbanos de Cruzeiro do Sul com aqueles de Rio Branco, emerge um quadro fascinante de resiliência e vulnerabilidade.
Em Cruzeiro do Sul, município com quase 100 mil moradores, considerado a Capital do Vale do Juruá, a paisagem ribeirinha apresenta características distintas que conferem aos seus habitantes uma maior facilidade em lidar com a imprevisibilidade das águas. Uma das principais razões reside na arquitetura predominante das áreas alagadiças.
As construções em madeira, frequentemente erguidas sobre palafitas elevadas, demonstram uma compreensão intrínseca da dinâmica fluvial. Essa técnica construtiva permite que as casas acompanhem a elevação do nível do rio Juruá, minimizando os danos e garantindo a segurança das famílias e seus pertences.
Essa adaptabilidade arquitetônica não é um acaso. Ela está profundamente enraizada na história e na cultura da região. Muitos dos moradores de Cruzeiro do Sul, ou seus antepassados, viveram boa parte de suas vidas em seringais ou comunidades ribeirinhas mais isoladas.
Essa experiência de convívio próximo com a natureza e seus ritmos, impôs um aprendizado contínuo sobre como construir e viver em harmonia com o ciclo das águas na Amazônia. A madeira, material relativamente abundante e acessível, tornou-se a escolha natural para edificações que precisam ser resilientes às alagações.

Além disso, a urbanização mais recente de Cruzeiro do Sul, em comparação com a capital Rio Branco, resultou em uma menor pressão urbanística sobre os bairros ribeirinhos. Já em Rio Branco, cidade de quase 365 mil moradores, o crescimento desordenado da cidade muitas vezes avançou sobre áreas de várzea, com construções mais sólidas e de alvenaria, que oferecem menor flexibilidade diante das cheias.
A forte especulação imobiliária e a falta de planejamento urbano adequado em algumas áreas da capital acabaram por aumentar a vulnerabilidade de muitas famílias que residem em zonas de risco.
Em Cruzeiro do Sul, por outro lado, observa-se uma ocupação mais espaçada e, tendo uma menor densidade populacional e menor pressão por terrenos urbanos, permitiu que as tradições construtivas ribeirinhas fossem mais preservadas. A cultura da adaptação, transmitida de geração para geração, continua a ser um fator crucial na resiliência dessas comunidades.
A diferença na relação com o ambiente também se manifesta na forma como os moradores de Cruzeiro do Sul lidam com a logística durante as cheias. A familiaridade com o transporte fluvial e a posse de pequenas embarcações facilitam o deslocamento e o acesso a serviços essenciais mesmo durante os períodos de enchentes. A rede social e a solidariedade comunitária também desempenham um papel importante, com vizinhos auxiliando uns aos outros e compartilhando recursos.
Em Rio Branco, a situação pode ser mais complexa. Muitas famílias afetadas pelas cheias residem em bairros mais densamente povoados, com infraestrutura urbana precária e menor acesso a alternativas de transporte fluvial. A dependência de vias terrestres, que muitas vezes ficam alagadas, dificulta o acesso a serviços básicos como saúde, educação e abastecimento. A falta de planejamento urbano em áreas de risco agrava a situação, expondo um número maior de pessoas aos impactos das cheias.
É importante ressaltar que ambas as cidades enfrentam desafios significativos durante os períodos de cheia, e as comunidades ribeirinhas em ambas as localidades necessitam de apoio governamental e da sociedade civil. No entanto, a análise comparativa revela que a experiência histórica, as características da urbanização e as tradições culturais em Cruzeiro do Sul parecem conferir aos seus moradores uma maior capacidade de adaptação às variações sazonais do nível dos mananciais.
Essa observação não implica em minimizar o sofrimento das famílias em Cruzeiro do Sul durante as alagações, mas, sim, em destacar a importância de aprender com as estratégias de adaptação desenvolvidas por essas comunidades. As soluções para mitigar os impactos das cheias no Acre devem levar em consideração as particularidades de cada região, valorizando o conhecimento tradicional e buscando integrar soluções de engenharia com práticas construtivas mais resilientes.
Em Rio Branco, é fundamental um planejamento urbano mais rigoroso, que evite a ocupação de áreas de risco e invista em infraestrutura adequada para lidar com as cheias. A experiência de Cruzeiro do Sul demonstra que a adaptação não é apenas uma questão de construir casas sobre palafitas, mas também de preservar um modo de vida que reconhece e respeita o ritmo da floresta. Ao valorizar o conhecimento ancestral e as práticas sustentáveis, o Acre pode construir um futuro mais resiliente para todas as suas comunidades ribeirinhas. O ciclo das cheias continuará, e como temos visto, com mais intensidade e frequência diante das mudanças climáticas, mas a forma como as comunidades a acompanham pode ser transformada pela sabedoria, planejamento e adaptação.
