Reservas Extrativistas hoje, florestas vazias amanhã

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Artigo publicado originalmente em novembro de 2016 no Jornal A Gazeta


Em 1992 o biólogo americano Kent Redford publicou na Revista BioScience (vol.42, n°. 6, p. 412-422) um artigo intitulado “Empty Forest” (Floresta vazia) no qual nos alertava, usando um trocadilho em inglês, do seguinte: “We must not let a forest full of trees fool us into believing all is well”. Uma tradução da frase resulta em algo assim: “Não podemos deixar uma floresta cheia de árvores nos enganar, fazendo-nos acreditar que tudo está bem”.

Na época da publicação do artigo, início dos anos 90, a destruição das florestas tropicais no mundo estava se intensificando novamente, depois de uma diminuição causada pela recessão econômica global do final dos anos 80. Até então, estimava-se que desde 1960 cerca de 20% das florestas tropicais do planeta haviam sido destruídas.

Apesar da situação crítica, a luta contra a destruição das florestas tropicais mundiais nessa época era mais difusa e não havia um movimento global como temos hoje – liderado por governos e entidades da sociedade civil -, capaz de impor limites e, efetivamente, promover a sua diminuição. Naquela época ONGs de atuação global como o WWF e o Greenpeace não priorizavam as florestas tropicais. No Brasil, a luta contra a destruição da Amazônia era liderada por organizações de extrativistas e indígenas.

Para compensar a devastação em curso, governantes de países que abrigavam florestas tropicais foram obrigados a tomar medidas de proteção para as mesmas. No Brasil, milhões de hectares de florestas da Amazônia foram transformados em Reservas Extrativistas. Outros milhões de hectares, no Brasil e no mundo, foram designados “florestas” ou “parques” sob a tutela estatal.

Na maioria desses casos, prevaleceu, na criação dessas áreas, o conceito de conservação e proteção na qual o homem continuaria a ter o direito de explorar – de forma comercial ou apenas com fins de subsistência – os recursos nelas contidos. As exceções foram as áreas indígenas e as de proteção integral, onde é vedada qualquer tipo de exploração de recursos naturais.

Quando Kent Redford publicou seu artigo, ele criticou a forma de criação das áreas de proteção das florestas tropicais de então porque se por um lado ela mostrava à sociedade que as florestas estavam sendo efetivamente protegidas, por outro a possibilidade de sua exploração continuada se constituía em uma ameaça real à sobrevivência daquelas florestas no longo prazo.

Redford observou que embora algumas florestas exploradas pelo homem possam aparentar um bom estado de conservação, elas não mantêm, necessariamente, sua integridade biológica. A caça intensiva e indiscriminada de animais de médio e grande porte e a exploração madeireira que retira da floresta espécies frutíferas chaves para a alimentação da fauna silvestre podem, no longo prazo, afetar a biodiversidade e diminuir as chances de recuperação dessas florestas.

Desprovidas de animais, especialmente os polinizadores e dispersores de suas plantas, extensas áreas florestais aparentemente intactas ficarão “vazias ou silenciosas” e paulatinamente perderão numerosas espécies arbóreas, arbustivas, epifíticas e lianescentes que serão extintas pela falta dos animais e insetos que as ajudavam a se perpetuar no ambiente florestal.

Obviamente que essas “florestas vazias” de vida animal permanecerão de pé por muito tempo porque algumas espécies de plantas podem viver por dezenas, centenas ou mesmo milhares de anos. Entretanto, na medida em que essas plantas – agora relíquias vivas – forem morrendo, a floresta vai ficar menos diversa e empobrecida.

Você, leitor, deve estar curioso: esse fenômeno de “florestas vazias” ou silenciosas está acontecendo na Amazônia e no Acre? Sim, e faz bastante tempo.

A pressão de ambientalistas contra a exploração e destruição indiscriminada das florestas tropicais, especialmente para a “garimpagem” de espécies madeireiras de alto valor comercial e posterior conversão em áreas agropecuárias, forçou os pesquisadores a desenvolver técnicas de exploração florestal de baixo impacto ambiental. Atualmente, a exploração madeireira usando essas técnicas está amplamente difundida por toda a região.

No caso do Acre, apesar de causar baixo impacto a outras árvores da floresta e à rede hidrográfica local, a exploração madeireira é danosa porque não discrimina as espécies madeireiras que explora. E a fauna silvestre é uma das principais vítimas de todo o processo.

Da lista de aproximadamente 50-60 espécies passíveis de exploração nas florestas acreanas, pelo menos 20-25 tem potencial para serem classificadas como espécies-chaves para a alimentação da fauna silvestre. Essas espécies (“keystone plant resources”), são vitais para a estabilidade e a diversidade da comunidade de plantas em uma floresta.

Elas geralmente são abundantes, produzem anualmente e de forma regular recursos nutritivos (frutos, sementes, néctar, etc), especialmente nos períodos de escassez dos mesmos na floresta, e alimentam uma grande diversidade de animais silvestres.

É digno de nota que a Assembleia Legislativa do Acre aprovou em 2008 um projeto de lei para impedir a exploração de espécies madeireiras importantes para a alimentação da fauna silvestre local. Infelizmente o governador de então, Binho Marques (PT), vetou o mesmo porque sua entrada em vigor implicaria na diminuição em quase 50% do número de espécies madeireiras exploradas nas florestas acreanas.

Dentre as espécies citadas no projeto vetado destacavam-se a gameleira, andiroba, castanhanara, mirindiba, piquí, manitê, copaíba, caxinguba, gamelinha, toari, envira-cajú, guariúba, cajuzinho e ingá-ferro.

A descoberta feita quase por acaso de que a exploração madeireira realizada no Acre estava provocando o fenômeno de “Florestas vazias” tinha ocorrido no início de 2008, quando o Deputado Estadual Zé Carlos (PTN) tinha realizado uma viagem de 10 dias percorrendo seringais e comunidades ribeirinhas ao longo do rio laco, em Sena Madureira.

Na ocasião, muitos moradores reclamaram que a exploração de espécies madeireiras que produzem frutos importantes para a alimentação dos animais silvestres estava afugentando os animais e dificultando a vida de todos que dependiam da caça para a obtenção de proteína animal.

Em maio do mesmo ano o Deputado Zé Carlos apresentou ao plenário da Assembleia Legislativa sua ideia de projeto de lei para proibir a exploração madeireira de algumas espécies que serviam de alimentação para os animais silvestres, tendo listado inicialmente as seguintes espécies: gameleira, andiroba, castanharana, merin-diba, piquí, manitê, copaíba, caxinguba, gamelinha, toari, envira-cajú, guariúba, cajuzinho, taturibá, murici e ingá-ferro.

Em agosto de 2008, quando o projeto foi aprovado e submetido à sanção do então governador Binho Marques (PT), a quantidade de espécies com restrição de exploração comercial tinha subido para 24. Obviamente que ele não foi sancionado pelo governador sob o argumento – razoável – de que lançaria o setor florestal acreano em uma crise sem precedentes visto que o projeto restringiria exploração comercial de cerca de 50% das 40-50 espécies madeireiras.

O fato da proposta do Deputado Zé Carlos não ter causado “comoção entre os envolvidos na cadeia produtiva de madeira no Acre à época é fácil de ser explicado. Naquele tempo o “grosso” da exploração comercial madeireira centrava-se em 15-20 espécies de alto valor comercial não incluídas no projeto do Deputado, com destaque para o cedro, cerejeira, samaúma, cumarú-ferro, cumarú-cetim, amarelão, alguns angelins, ipê, sucupira, mulateiro e o bálsamo.

Entretanto, quando o estoque natural dessas espécies na floresta diminuísse, tornando sua exploração comercialmente inviável, os madeireiros locais se voltariam para a exploração intensiva de outras espécies, incluindo grande parte daquelas listadas no projeto do Deputado Zé Carlos.

De fato, passado menos de 10 anos, a exploração da copaíba, andiroba, jutaí, mirindiba, jatobá, manitê, toarí, castanharana, cajuzinho (ou cajuí), guariúba, copinho e pequi é hoje lugar-comum. Essa guinada da exploração, que passou a priorizar um conjunto de espécies anteriormente consideradas de valor comercial secundário, é um indicativo que o manejo madeireiro das espécies de alto valor comercial parece enfrentar problemas de sustentabilidade.

A rejeição do projeto do Deputado Zé Carlos foi mais uma demonstração de que o fator econômico falou mais alto e que a garantia da preservação das espécies usadas direta ou indiretamente na alimentação da fauna nativa de nossas florestas continua a ser apenas um sonho difícil de ser concretizado. O início da exploração comunitária madeireira em áreas extrativistas do Acre, a partir de 2000, só reforçou essa impressão.

A realização deste tipo de atividade em áreas extrativistas do do Estado favorece a realização da mesma: das 16,42 milhões de hectares existentes, 9,1 milhões (55,65%), são áreas naturais protegidas que incluem projetos de assentamento, unidades de proteção integral e de uso sustentável e terras indígenas. A Reserva Extrativista (RESEX) Chico Mendes foi a primeira, dentre as 54 Resex existentes no Brasil, a conseguir licença para realizar o manejo comunitário da madeira no ano de 2012 (1)

Na Resex Chico Mendes a exploração comunitária de madeira teve início em 2013 e vem, desde então, sendo realizada pela Cooperfloresta A organização comunitária e a decisão para esta exploração, entretanto, foi um processo complexo que, após discussões descentralizadas nos diferentes núcleos organizacionais que compõem a Reserva, terminou por incluir entre as espécies a serem exploradas aquelas importantes para a fauna silvestre e mesmo algumas produtoras de produtos não madeireiros, como a copaíba.

Entretanto, apesar do licenciamento abranger todas as espécies, a decisão final de quais delas deveriam ser exploradas ficou a cargo de cada um dos extrativistas que aderiram ao projeto comunitário.

Esta “opção” para o extrativista ter a palavra do que deve ou não ser explorado é um ponto positivo. Entretanto, o fato de a licença de exploração abranger todas as espécies madeireiras – sem distinção de utilidade alimentar para a fauna e não madeireira para o homem – se configura em uma “tentação” visto que, aparentemente, a condição econômica dos extrativistas no momento da exploração poderá se sobrepor a qualquer princípio e/ou ação conservacionista historicamente exibida por eles, a quem podemos creditar a preservação de grande parte dos cerca de 85% das florestas ainda em pé no estado.

No longo prazo, considerando que no âmbito da Resex Chico Mendes a tomada de decisão sobre as espécies madeireiras exploradas é um tanto complexa, é possível supor que o efeito de “florestas vazias” atingirá de forma mais ou menos intensa as 922 mil hectares de florestas da maior e a mais importante área de conservação ambiental do Acre.

Embora reconheçamos que de longe, do conforto de nosso escritório, seja fácil sugerir e dar conselhos, não podemos nos furtar de alertar que a manutenção da alta qualidade ambiental, florística e fitossociológica das florestas da Rresex Chico Mendes parece depender de uma maior centralização das decisões que os seus moradores venham a tomar no que se refere à exploração madeireira comunitária.

Hoje, por motivos práticos e logísticos, a organização dos moradores – para ser funcional – demanda a sua divisão em 4 ou mesmo 20 unidades de gerenciamento. Alheia a tudo isso, a floresta que recobre a reserva é um continuum verde, complexo e diverso, interrompido aqui e ali pela presença do homem. E esse continuum verde, sabemos já faz tempo, depende mais da presença dos animais silvestres e menos do homem para se perpetuar.

Não faz sentido, portanto, que os homens que habitam a Resex Chico Mendes criem condições que desfavoreçam a presença desses animais, condenado a floresta da qual dependem economicamente para sobreviver ao desaparecimento.

1 – Atualmente o plano de manejo madeireiro comunitário da Resex Chico Mendes não está mais em execução.



Sobre o autor:

Evandro Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), baseado no Núcleo de Pesquisas do INPA no Acre desde 1988, e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Florestais na Universidade Federal do Acre. Possui Mestrado (1997) e Doutorado (2001) em sistemática de palmeiras, obtidos no The New York Botanical Garden e The City University of New York.

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