RASTROS BOVINOS

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Rondônia quer tirar bois de reserva ambiental, mas o crédito de carbono está sub judice

Inventário das árvores no Cautário, em Rondônia, foi concluída em 2020 (Foto Frank Néry/Secom)



Enquanto tenta dar alguma resposta no sentido de proteger a floresta contra os impactos do grande agronegócio, Governo de Rondônia falha ao implementar políticas de crédito de carbono regulamentadas pelo Estado.



Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho

Um angu com muito caroço, eis o resultado prático da política de crédito de carbono na região do Guaporé, fronteiriça à Bolívia, em Rondônia. Rompido silenciosamente o contrato com a Permian Global Brasil, a política de REDD+ na Reserva Extrativista (Resex) Rio Cautário deu um passo atrás neste estado amazônico. Governo e Assembleia Legislativa silenciaram, nem sequer explicando o que houve.

De outro lado, a conta-gotas, seguem outros projetos, a exemplo da Resex Rio Preto Jacundá, executado pela empresa Rio Terra.

O Cautário está sub judice – expressão em latim que significa “em julgamento”

Uma breve história: em 2020, o então secretário da Amazônia e Serviços Ambientais (depois ministro do Meio Ambiente no fim do governo Bolsonaro), Joaquim Álvaro Pereira Leite, surpreendia-se com o possível avanço de Rondônia, primeiro estado a conceder o projeto executado na modalidade de REDD+, com interveniência do Estado, via Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam).

A empresa Permian Global Brasil instalava-se na região do Cautário – entre os municípios de Costa Marques e Guajará-Mirim – vendendo ao governo estadual a imagem de “protetora e recuperadora de florestas naturais com a finalidade de mitigar mudanças climáticas.”

Aplicava-se, então, um programa denominado Floresta + Carbono, que estipulava o pagamento de R$ 1 mil mensais por família em sete comunidades durante 30 anos. Logicamente, a reação das famílias fora positiva. Elas se sentiam realmente na condição de “protetoras da floresta”, vendo a possibilidade de melhorar a atividade tradicional da extração da borracha – algo que estava paralisado desde o fim do ciclo, 50 anos atrás –, óleos, coleta da castanha, e a produção de farinha.

Pouco antes, a chefia da Coordenadoria das Unidades de Conservação da Sedam estava entregue ao polêmico sargento PM Denison Trindade, a quem o governador Marcos Rocha (União) substituíra pelo sargento Fábio França, após um rumoroso escândalo fundiário em Alta Floresta d’Oeste, no qual também se envolvera um deputado e um fazendeiro. Conversas gravadas pela Polícia Federal revelavam a ideia de assassinar um procurador de estado.

E pouco tempo depois, sem esclarecer o que houve, o governo suspenderia o contrato com a Permian Global Brasil. Atribui-se à proximidade de Trindade com a empresa.

Ex-secretário da Amazônia, Joaquim Leite; ex-secretário da Sedam, Marcílio Leite Lopes, e a ex-coordenadora de florestas plantadas na Sedam, Julie Messias (Foto Frank Néry -Secom-RO)

Afinal, ele já era investigado pela PF desde 2013 quando “estourava” o caso de grilagem de terras públicas dentro das unidades de conservação estaduais em Rondônia.  O fio da grilagem vai longe: em 2007, um servidor da Emater ocupava terras no interior da Resex do Rio Ouro Preto.

Enquanto Rondônia patinou na onda ruim do REDD+, pois nada conseguiu até o momento, o Governo do Pará anuncia a conclusão de sua primeira emissão de créditos de carbono envolvendo um milhão de créditos.

Desde 2010, o vizinho Acre segue uma política estadual bem sucedida e pioneira de crédito de carbono, através do programa REM-KFW. Inicialmente firmando com o Governo da Alemanha, ele contou com a adesão do Reino Unido a partir de 2018. Executado em duas fases, o programa tinha como meta o repassa de 60 milhões de euros por redução do desmatamento no estado.

No Cautário, as aproximadamente cem famílias amparadas pelo que seria o primeiro fantástico negócio do governo rondoniense frustraram-se. Elas pertencem às comunidades: Águas Claras, Canindé, Ilha/Jatobá, Lago Verde, Laranjal, Ouro Fino, e Vitória Régia.

O que tem

Quatro anos atrás, em 2020, a Sedam concluía o inventário florestal da Resex Rio Cautário. A unidade de conservação tem angelim, castanheira, copaíba, cerejeira, breuzinho, cipós diversos, mulateiro, sangue de dragão, e seringueira nativa. À beira das estradas internas ainda existem árvores de mogno.

A floresta do Cautário é ombrófila densa. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ela é também conhecida por floresta pluvial tropical (Floresta Amazônica e Floresta Atlântica), cuja formação está condicionada à ocorrência de temperaturas elevadas, em média 25ºC, e altas precipitações bem distribuídas durante o ano; no período de estiagem essas chuvas variam de zero a 60 dias.

O minucioso trabalho de identificação fez a equipe encarregada observar árvores caídas, todas igualmente medidas para determinar a altura dominante do sítio. Feita também a cubagem das árvores, dimensionando o volume do tronco, resultando a avaliação do volume de árvores em pé e no cálculo da biomassa de carbono.

Em 2020, a ex-coordenadora de Florestas Plantadas da Sedam, Julie Messias (que em seguida trabalhou no Ministério do Meio Ambiente e hoje é secretária de Meio Ambiente do Acre) estimava em US$ 50 milhões por ano o potencial dos créditos de carbono em Rondônia.

Já na Amazônia Oriental, o Pará calcula possuir uma carteira total de 156 milhões de certificados do tipo e o potencial financeiro de R$ 10 bilhões.

“Amostra” grátis paraense

Dizem por lá que essa primeira emissão é “apenas uma amostra grátis”, o que colocaria a fonte de recursos no mesmo nível de importância dos setores de mineração e agronegócio na economia paraense. O governo Helder Barbalho (MDB) espera que tudo funcione como um chamariz para a atração de novos interesses do setor privado, mesmo que o ônus do serviço ambiental seja por ele assumido.

O contraditório rondoniense na política ambiental surpreende desde 2021, quando o governador Marcos Rocha autorizou a garimpagem de ouro, especialmente no Rio Madeira. Da mesma forma, em 2022, ele próprio quis cancelar por decreto reservas ambientais criadas pelo antecessor, Confúcio Moura. O Tribunal de Justiça impediu.

Em 2020, a Assembleia Legislativa aprovou projetos que praticamente extinguia a Resex Jaci-Paraná e o Parque Estadual Guajará-Mirim. O PL foi considerado inconstitucional pelo TJ, após recurso movido pelo MPRO. E a ofensiva dos políticos contra as áreas protegidas de Rondônia não para.

Boiada nas reservas

O contraditório dá as caras mais uma vez: este ano, o governo estadual que antes permitiu a criação de gado em áreas ambientais, entrou com Ação Civil Pública contra frigoríficos por comprarem gado bovino de áreas protegidas. Coube à Federação de Agricultura e Pecuária de Rondônia (Faperon) protestar, pois alguns criadores estavam lá instalados há pelo menos 20 anos.

A Justiça enviou ao Palácio Rio Madeira a citação judicial para que o governador se manifestasse por escrito, concordando ou não com ações propostas para órgãos de fiscalização, entre os quais o ICMBio. O regime de “porteira aberta” permitido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro já não existia mais, e o jeito foi o governador entrar na linha.

Idaron vacina todo gado contra febre aftosa, inclusive aquele criado dentro da éras de conservação extrativistas (Foto Idaron)

Mais adiante, pecuaristas do estado deram um jeito de demonstrar evolução: de 4 a 6 de junho eles promoveram um encontro com aproximadamente 90 técnicos e criadores, para debater a sustentabilidade do setor. Tudo sob a grife “Boi na Linha”, um protocolo de iniciativa do Ministério Público Federal e do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Seus organizadores o consideraram “experiência importante” a ser adotada pelos frigoríficos no estado para assegurar a transparência dos compromissos socioambientais no bioma amazônico. Segundo eles, a criação de frentes de atuação visa enfrentar ao desafio da produtividade entre pequenos, médios e grandes criadores, oferecendo-lhes assistência técnica de qualidade, incentivos e mercados; e o cumprimento da legislação socioambiental.

No Parque Estadual de Guajará-Mirim

Barracos cercados, placas de identificação derrubadas, proteção armada, tudo isso o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Justiça do estado constataram no interior do Parque Estadual de Guajará-Mirim desde 2023. Resta agora o cumprimento a lei.

A área do Parque é de proteção integral, onde a pecuária é proibida, entretanto, fazendeiros insistem no delito. As quase duas mil cabeças de bovinos recentemente identificadas estavam sob custódia do Estado após a prisão de um pecuarista acusado de invasão. Investigações da PF dão conta que existe uma organização criminosa atuando na área, usando o parque para criação ilegal. Na análise da Receita Federal, atividade desse porte facilita a lavagem de dinheiro, permitindo a venda do gado para grandes frigoríficos.

O MPRO informou recentemente que a criação desse gado na área conhecida por “bico do Parque” vem ocorrendo há uma década. Um fazendeiro foi condenado pelo desmatamento equivalente a 800 campos de futebol. Ele foi preso preventivamente em novembro de 2023 durante a Operação Persistere, quando já respondia por dois processos pelo crime e era alvo da Operação Mapinguari, a maior até então realizada em Rondônia com essa finalidade.

A pena foi fixada em 4 anos, 11 meses e 15 dias de reclusão mais 2 anos, 9 meses e 15 dias de detenção e 149 dias-multa. Crimes a ele atribuídos: invasão de terras públicas, destruição de floresta situada em unidade de conservação, impedimento de regeneração natural de floresta e desobediência. Ao todo, causando prejuízos de R$ 36 milhões.

“Utilizava a área de preservação como se fosse propriedade privada”, avaliava o promotor Pablo Hernandez Viscardi. Por unanimidade, a Câmara Criminal do TJ rejeitou o pedido de Habeas Corpus impetrado pela defesa do fazendeiro. O desmatamento em áreas do Parque totalizava multas requeridas contra invasores superiores a R$ 140 milhões. Duas centenas de barracos de apoio à criação do gado foram até agora destruídos.

Incapacidade do estado

Conforme a legislação, dentro do Parque só é permitida a agricultura de subsistência e a criação de animais de pequeno porte.

Por causa de atividades Ilegais, a Resex Jaci-Paraná tem mais de trezentas áreas embargadas pelo Ibama. Sua área protegida já teve 49% desmatados para a criação de 150 mil cabeças de gado, um negócio autorizado pelo próprio governador Marcos Rocha. Mesmo sem querer, ele entrou para o index dos destruidores ambientais ao defender a redução de duas das principais unidades de conservação do estado.

A Resex corria o risco de perder 77% do seu território de 197,3 mil hectares, e o Parque Estadual Guajará-Mirim, 20% dos 258 mil ha.

A pesquisadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé Ivaneide Cardozo bateu o pé. Compareceu à Assembleia Legislativa numa audiência pública e declarou: “O que esse projeto de lei pretende é legalizar a grilagem e legislar a favor das ilegalidades que já ocorrem; permitir gado em unidade de conservação é crime, e usar isso para justificar a desafetação de uma área é premiar quadrilhas.”

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Com adendos e modificações às 16h20 de 25 de junho de 2024.

SAIBA MAIS

●  Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou cinco trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em duas propriedades de criação de gado bovino de corte, localizadas na região de Minas Novas, próxima ao distrito de Rio Pardo, em Porto Velho. Essa área está situada na Resex de Jaci Paraná, ao lado da Terra Indígena Karipuna, onde ocorreu a operação para a retirada de invasores.

Além da fiscalização na própria terra indígena, a região adjacente também esteve sob foco dos fiscais do ministério e de toda equipe federal destacada para a desintrusão. A ação fiscal do MTE, que começou em 1º de junho, contou com a participação do MPT, Defensoria Pública da União, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.

O decreto de criação da Resex Rio Cautário é de 7 de agosto de 2001. Uma de suas partes confronta-se com a Terra Indígena Uru-eu-au-au. No antigo acervo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a região foi anteriormente conhecida pelas glebas Conceição, Samaúma e Traçadal.

A Resex Jaci-Paraná é uma Unidade de Conservação de gestão estadual, criada em 1996 pelo Estado de Rondônia destinada à exploração autossustentável e à conservação dos recursos renováveis, por populações extrativistas e ribeirinhas. Seus 197,3 mil equivalem a 183 mil campos de futebol – e abrange os municípios de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré.

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