Quem somos nós?

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Escrevo este texto em uma terça-feira, dia de Ogum, um dos donos de minha cabeça, e peço a esse senhor que minhas palavras tenham a precisão de seu aço, nem mais, nem menos, pois os sentimentos que movem minha escrita neste momento são perplexidade e indignação. O primeiro me paralisa e o segundo me embaralha o pensamento, de modo que não há bom texto que possa resultar desse encontro. Por isso convoco Ogum para que me encha de um dos principais sentimentos que esse divo carrega consigo: coragem.

Em 21 de fevereiro de 2025, estive em uma reunião na Defensoria Pública do Acre, em Cruzeiro do Sul, sobre uma mulher em sofrimento psíquico que vivia em situação de rua e estava sofrendo várias violações de direitos, dentre elas violência física. Muitos desses episódios foram gravados em vídeos e disseminados por vários veículos da imprensa local.

Nessa reunião, estavam presentes vários representantes de órgãos municipais e estaduais e parecia haver um consenso acerca de como a reprodução das imagens dessa mulher sem qualquer consulta ou manifestação de seu consentimento em um momento devastador de sua vida correspondia a uma grave violência simbólica e moral. Uma força tarefa institucional foi realizada para localizar essa mulher e intervir na sua questão de saúde, de modo que, hoje, ela está bem e em condições muito mais dignas de existência.

Como saímos dessa percepção de coisas para a notícia de que o Ministério Público do Acre está realizando um concurso de fotografia para trazer “visibilidade” (sic) para as mulheres em situação de rua é um completo mistério pra mim. O concurso, segundo um veículo de imprensa local, se intitula “Quem São Elas? Um Olhar Sobre as Mulheres em Situação de Rua” e está dividido em três categorias: “Celular, para registros espontâneos do cotidiano; Profissional, voltada a fotos com técnicas avançadas de composição e narrativa; e Imagem IA, destinada a representações simbólicas que mesclem retratos reais com recursos digitais”.

Vou pegar emprestada as palavras de Paulo Henrique Costa, fotógrafo acreano nacionalmente premiado, pois eu definitivamente não conseguiria dizer melhor: “Embora o objetivo declarado seja ampliar a visibilidade dessa população e sensibilizar a sociedade, a própria concepção do concurso escorrega em um problema ético central: transformar a dor e a vulnerabilidade em objeto de contemplação estética. Mulheres em situação de rua enfrentam um cotidiano de violências, exclusões e invisibilizações sistemáticas.”

Falta para elas políticas públicas efetivas, abrigo seguro, acesso à saúde, alimentação, cuidado e dignidade. Nesse contexto, lançar um concurso fotográfico – com categorias como “Imagem IA” e “registro espontâneo do cotidiano” – soa como um gesto de extremo mau gosto, deslocado da urgência real de ações concretas. Ao invés de criar um espaço de escuta, diálogo e protagonismo dessas mulheres, o concurso as coloca como objeto de observação.

Quem são os sujeitos autorizados a produzir essas imagens? Que retorno essas mulheres terão com a exposição de suas vidas? E mais grave: o uso da Inteligência Artificial para criar imagens simbólicas de uma realidade tão concreta e dura escancara a superficialidade da proposta. Representações fictícias não substituem presenças reais. Não humanizam, pelo contrário: podem desumanizar ainda mais.

A arte tem um papel fundamental na transformação social, mas ela exige responsabilidade. Olhar para as mulheres em situação de rua é urgente — mas não através da lente de um concurso que corre o risco de estetizar a dor e reforçar desigualdades. O que precisamos é de escuta ativa, políticas públicas, iniciativas que fortaleçam a autonomia e a dignidade dessas mulheres. O resto é ilustração vazia”.

Em uma atividade de extensão junto ao CAPS Náuas nas imediações da Ponte da União, uma estudante perguntou a uma mulher em situação de rua se ela sabia quais direitos ela tinha, no que a mulher respondeu de pronto:

Eu sei sim! Os mesmos que os teus!

Ficamos desconsertadas, por óbvio. Às vezes a gente se acha por estar chegando com o milho quando a pipoca já tá pronta. Faz parte dessa atividade extensionista informar e discutir sobre os direitos específicos da população em situação de rua, especialmente a Política Nacional contida no Decreto 7.053/2009, a qual se desdobra no plano nacional “Ruas Visíveis” lançado ano passado pelo governo federal.

O Acre assinou o termo de compromisso em julho de 2024 para implementação do plano no estado, que garante o repasse de verbas federais para a realização da política. Nesse sentido, acho importante perguntar: quem é o Ministério Público?

Que retorno essas mulheres terão com a exposição de suas vidas? E mais grave: o uso da Inteligência Artificial para criar imagens simbólicas de uma realidade tão concreta e dura escancara a superficialidade da proposta. Representações fictícias não substituem presenças reais. Não humanizam, pelo contrário: podem desumanizar ainda mais.”



Por imposição constitucional, além da sua função mais conhecida de iniciar a ação penal, essa instituição também é responsável por proteger os direitos difusos e coletivos e de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, dentre outros.

De forma que há muito o que essa instituição pode fazer para trazer visibilidade à pauta da população em situação de rua no Acre, como, por exemplo, demonstrar como a verba federal tem sido ou será investida no estado. Cruzeiro do Sul, mesmo sendo a segunda maior cidade do estado e uma metrópole no Vale do Juruá, não possui Centro POP nem CAPS AD, serviços essenciais à essa população.

Outra ação bastante profícua seria cobrar elucidação às mortes que seguem sem desfecho explicativo, ou às denúncias de violência sem resolução – inclusive feitas a este próprio órgão. A título de exemplo, em minha tese de doutoramento sobre feminicídio defendida ano passado na UnB, explanei a discrepância entre três mortes de mulheres, cujos corpos foram encontrados na mesma localidade e em períodos bastante próximos.

Apenas um desses casos teve desfecho, ostentando uma robustez de provas, incluindo gravações de vídeo do autor do crime em diferentes ângulos. Os outros dois, quase quatro anos depois, ainda não tiveram nem a fase de Inquérito Policial finalizada. O que eles têm em comum e em diferença com o caso encerrado é que as vítimas eram mulheres em situação de rua. Nos autos processuais, se lê que há escassez de provas para se identificar o autor, o que soa bizarro, já que o outro caso ocorrido no mesmo local foi solucionado, como disse, com robustez de provas.

De forma que é difícil dizer que essas mulheres não têm visibilidade. Elas têm sido vistas pelas pessoas nas cidades, pelas pessoas nas instituições, pelas pessoas nos seus comércios, mas como diria a artista, pesquisadora e militante Camila Cabeça, o que essas mulheres são é “inservíveis”, estão fora da lógica de exploração do trabalho e geração de lucro e, nesse sentido, suas vidas não são passíveis de luto, como afirma a filósofa Judith Butler. São vidas descartáveis que acumulam violações de direitos de todas as ordens, desde as que empurram às ruas, em grande maioria decorrente da falta de amparo em políticas de saúde mental, até as medidas que fazem da sua condição de vulnerabilidade um mecanismo competitivo que desconsidera sua privacidade e intimidade.

Tenho enorme respeito pelo Ministério Público do Acre, é uma instituição de grande importância à afirmação dos direitos do povo acreano com profissionais muito sérios e competentes, mas estamos todos fadados a errar em nossas atribuições e acredito que essa iniciativa é um erro e uma violação a essas mulheres. E para encerrar, fica aqui mais uma sugestão, até hoje o estado do Acre não conta com o equipamento de Residência Terapêutica na RAPS (favor não confundir com Comunidade Terapêutica!).

A existência de um equipamento assim, desde que gerido e ocupado por profissionais conhecedores da luta antimanicomial, certamente poderia não apenas encerrar vários ciclos em situação de rua, mas também evitar o início de novos. É uma necessidade urgente e uma vergonha extrema ainda não contarmos com esse equipamento no estado e nos cabe perguntar: quem somos nós, sociedade acreana que tem um teto (alguns até com ar-condicionado!) e três refeições por dia, que ainda aceitamos não ter o mínimo na nossa política de saúde mental? O 18 de maio está dobrando a esquina, será que podemos ter esperança institucional até lá?



Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.


leonisia.mouraf@gmail.com

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