Que dirá o amanhã

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Em memória de Manoel Augusto da Silva (o Bega)



Sob a regência da deusa das ventanias e dos temporais, dezembro nos toma em redemoinhos das conclusões forçadas, mistura de avexo com gritos por descanso, a grande sexta-feira do ano, como ouvi esses dias, pede licença depois de se esparramar pelo cotidiano. Por aqui, parece que o tempo estava represado no calendário e resolveu desabar sobre nossas cabeças feito começo de inverno amazônico. Epahey!

Entre relatórios, declarações, formulários, processos, aulas, confraternizações, prazos e reuniões, busco tempo para meus rituais e tradições de fins de ano, meus agradecimentos, meus pedidos e projeções. Bebo uma cerveja a mais, durmo uma hora a menos, pulo um treino da academia e enforco uma obrigação pra fazer caber tudo com dignidade – inclusive este texto que queria ser escrito já tem dias.

Topo com a trend da rede social ao lado em que as pessoas se enquadram em momentos felizes e se questionam como poderiam ser tristes se em 2024 tudo tanto. Leio boas críticas sobre, respiro, mas não encontro nada sobre o que mais me incomodou: a premissa do bem-estar individual como critério da ausência de sofrimento, além da ausência de sofrimento como premissa do bem-estar, entende? É a exaltação do eu combinada à aclamação da linearidade emocional. Puro suco de uma estética neoliberal que combina a superexploração do trabalho à uma sociabilidade competitiva e isolacionista.

(As fotografias são de Paulo Henrique Costa)


Este fim de ano me chega com muitas conquistas e realizações pessoais e profissionais, tenho sentido uma alegria tão intensa que parece que minha carne vai explodir a qualquer instante. Ao mesmo tempo, tem uma tristeza que insiste em ser notada, que não arreda e me cutuca quando me distraio. Ela tem seus muitos motivos, mas quero falar desse que diz respeito ao fato de que todo o nosso esforço para “arrancar alegria ao futuro” parece pouco contra à necropolítica da seringalidade – pra fazer um feat entre Achille Mbembe e João Veras.

A semana retrasada começou com a notícia do atropelamento que interrompeu a vida de Manoel Augusto da Silva, o Bega, em uma das avenidas mais movimentadas de Cruzeiro do Sul. Não sei muito sobre ele, mas sei que era natural de Rodrigues Alves, que era um homem negro de 41 anos, que vivia em situação de rua e um artista de extrema sensibilidade que trazia cores e intensidade às “cicatrizes na floresta” que são as ruas desta urbe. Pelas mãos de Bega, o carvão se transmuta, cria formas, propõe o novo, os muros descascados ganham olhos, igrejas, multidões, flores e folhas. O que era apenas passagem se torna convite para a demora do olhar – essas magias que artistas sabem fazer.

Arte é combustível. Tecnologia ancestral de significar a vida, mesmo quando ela parece não ter sentido algum.



Em outubro deste ano, meu amigo Paulo Henrique – de quem já falei nesta coluna – aceitou meu convite para fotografar algumas artes do Bega para expormos no sarau anual “Louca Expressão” organizado pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Náuas, que atende e cuida da população em situação de rua em Cruzeiro do Sul. O processo dos registros foi bonito, Bega nos dizia da sua vontade de mudar de vida por meio da sua arte. Contra as possibilidades que a sonegação de direitos que o estado do Acre impõe ao seu povo, Bega construía pra si uma futuridade que lhe foi arrancada com a interrupção violenta de sua vida.

Organizar a exposição das artes do Bega foi uma atividade do “Liberdade caça jeito”, projeto de extensão que toco junto à Lígia, João Paulo, João Lucas, Ermesson, Vinícius e Elissadra, e que tem como um de seus objetivos associar a luta por direitos e cidadania ao exercício da saúde mental de modo a fortalecer a Luta Antimanicomial. Ou seja, a luta pelo fim dos manicômios físicos, mentais e institucionais, pelo fim dessa artilharia pesada contra o que há de mais humano em nós e que já ceifou e ceifa tantas subjetividades. A luta por uma existência abundantes em corpos livres que se questionam cotidianamente o que vieram fazer neste mundo. Os desenhos do Bega são uma resposta a essa indagação.

Entendemos que o reconhecimento comunitário da arte produzida por Bega poderia contribuir com a relação do artista com sua saúde mental, bem como educar essa mesma comunidade acerca das múltiplas individualidades e potencialidades das pessoas que estão em situação de rua, que, na maioria das vezes, são desrespeitosamente enquadradas e etiquetadas sob os estereótipos desumanizantes de “zumbis”, “drogados” e criminosos em potencial.

Manoel Augusto da Silva, o Bega (Foto: Paulo Henrique Costa)



Eu sei ainda outras coisas sobre Bega. Sei que ele era o irmão de alguém e o quanto ele era querido pela equipe do CAPS Náuas e principalmente pelos homens e mulheres que se encontram na mesma condição de vulnerabilidade social em que ele estava. Sua morte foi duramente sentida por seus amigos. Junto às lembranças e ao processo de luto, fica também a decoração de Natal que ele fazia a partir de itens que encontrava descartados pelas ruas e que tomavam vida e beleza em suas mãos que, além de arte, fazia várias mudas de plantas, como quem oferenda ao amanhã a oportunidade do hoje.

Poderíamos lamentar sua morte como um acidente trágico, se fosse um caso isolado, mas este é o terceiro de que tenho notícia somente neste ano, de modo que algumas perguntas insistem em martelar minha cuca e acabam por me escapar pelos dedos: Quanto vale a vida de uma pessoa em situação de rua? Se as pessoas que vivem em situação de rua são perigosas, o que dizer de alguém que dirige imprudentemente, atropela um ser humano e não para a fim de prestar socorro?


Há outros casos de mortes violentas de pessoas em situação de rua, outros modus operandi e muitas dúvidas acerca de como se deram. Cometer violências ou crimes não é privilégio da população em situação de rua, mas ter uma “vida passível de luto” público parece ser um privilégio das classes médias e altas do Brasil. Isso me entristece. Na rua, encontramos muitas coisas, amor, fé e união estão entre as que mais me deslumbram e isso me alegra muito.

Encerro este terrível e maravilhoso 2024 com muita alegria assentando morada em mim, mas apesar disso, também sinto muita raiva e tristeza. E não quero que esses sentimentos me abandonem, ao contrário, quero que eles me motivem, como nos ensinou Audre Lorde, quero que eles me impulsionem a seguir na luta por verdade, justiça e memória em nosso país. Quero que eles ganhem contornos coletivos e que encontrem outras pessoas que buscam essa forma de felicidade tão difícil: a de nos sentirmos parte de um todo que conhece sua força para pegar o destino pelas mãos e o levarmos para onde sonhamos.

Pra você que me deu a honra de dividir seu tempo com minhas palavras durante mais este ano, meus mais sinceros votos de um 2025 com alegrias intensas e mansas, desejadas e inesperadas, pessoais e coletivas. Que nossos sonhos possam ser matéria de vida a cada novo amanhecer.


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