Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
Pergunte-se a prefeitos dos estados do Acre ou de Rondônia se rejeitam 50 mil metros cúbicos de asfalto. Há anos eles vêm aceitando esse benefício, porque são incontáveis as reclamações contra a buraqueira em diversas cidades. No entanto, solicite-lhes serem mais enérgicos com a bancada federal, exigindo-lhe a garantia/obtenção investimentos para saneamento básico, tanto quanto fazem festa com os programas de asfaltamento. O Norte do País parece ter se acostumado com a fedentina dos canais que cruzam as cidades, e a falta de higiene nos lares.
O Brasil é dono da mais baixa cobertura de esgoto e resíduos sólidos – pouco mais de 50%; mantém mais de 1,5 mil lixões a céu aberto e mais de 4 milhões de pessoas não possuem acesso a banheiros. Sim, a um simples banheiro.
Os retratos periféricos são por demais conhecidos e nesta quarta-feira (21 de fevereiro) foram uma vez mais escorraçados na sala da Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal durante a aprovação do relatório sobre Política Nacional de Saneamento Básico (Lei 11.445, de 2007).
Em 2015, a Organização Mundial de Saúde publicava seu relatório revelando que mais de 4,1 milhões de brasileiros de áreas rurais, ou 2% da população do Brasil, não têm acesso a banheiros e precisam defecar ao ar livre.
A falta de saneamento básico causou mais de 1,3 mil internações no Acre em 2019, informa um estudo do Instituto Trata Brasil; a taxa de incidência de internações foi de 15,44 para cada 10 mil habitantes.
Prefeitos e governadores, se cuidem: até 31 de dezembro de 2025 será bloqueado o acesso aos recursos públicos oferecidos para o saneamento básico. Já vimos esse filme antes. Gestores escutam – aprenderão? – uma vez mais que se não cumprirem as regras, inviabilizarão todos os serviços, pois estarão inadimplentes.
O relator da nova política é um senador do norte brasileiro: Confúcio Moura (MDB-RO).
Nas 20 melhores cidades em saneamento básico no País, o investimento médio anual em saneamento básico entre 2016 e 2020 foi de R$ 135,24 por habitante, enquanto nas 20 piores foi de apenas R$ 48,90.
Em Macapá, última cidade do ranking, o investimento foi de apenas R$ 11,25 per capita.
Três anos depois da publicação do novo marco regulatório do saneamento básico (Lei 14.026, de 2020), 1.106 municípios ainda não concluíram seus processos. O Ministério das Cidades informa que 57% dos municípios já incluídos em algum tipo de regionalização pelas leis estaduais ainda não implementaram, de fato, os serviços; e aproximadamente 25% dos 4.463 municípios já regionalizados ainda não possuem a comprovação da capacidade econômico-financeira da prestadora dos serviços de saneamento básico.
Insistindo no mesmo assunto de há 30 anos e colocando na mesa do debate a alardeada “universalização”, a Comissão foi fundo nas entranhas dessa realidade. Dados apurados pelo relator apontam desigualdades gritantes depois de três anos da vigência do Marco Regulatório do Saneamento Básico.
Segundo Moura, apesar de o País ter ultrapassado o atendimento de mais de 84% da população em abastecimento de água, isso só se tornou possível após o avanço em municípios das Regiões Sul e Sudeste, o que elevou os índices gerais. Já as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste alcançam níveis de cobertura de aproximadamente 90% ou acima; enquanto isso, a Região Norte não passa dos 60%, e a Nordeste, 74,7%.
O que mais inquietou o relator – que já foi prefeito, deputado federal e governador de Rondônia – é o aumento de desigualdade social em relação ao esgotamento sanitário, cujo índice aproximado de atendimento total de esgoto é de pouco mais de 50%: 82% no Sudeste e 62% no Centro-Oeste. Enquanto o Sul possui 48%, o Nordeste 30% e o Norte, 14%.
“Não é razoável, aceitável ou concebível que o Amapá e Rondônia mantenham índices de esgotamento sanitário que não ultrapassam 20% da população local atendida”, queixou-se o senador. “A realidade de Norte e Nordeste, com índices de saneamento consideravelmente mais baixos do que os das demais macrorregiões, também não pode ser negligenciada”, desabafou.
Entre as principais defesas apresentadas por especialistas e gestores públicos, destacam-se a regionalização dos serviços, o aumento dos investimentos e a segurança regulatória, para que haja de fato um avanço.
A grande rede custa R$ 890 bilhões
O relatório aponta: para ser alcançada a universalização exigirá investimentos acima de R$ 890 bilhões. É o dinheiro que pagará a expansão da rede e a recuperação do que já existe. “Com isso, a capacidade de impacto positivo do saneamento no PIB seria de quase R$ 2 trilhões e R$ 1,4 trilhão em arrecadação”, considera o relator.
Até o momento, conforme dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, dos 26 estados e do Distrito Federal, 20 já avançam na regionalização formal dos serviços de saneamento básico (cerca de 80% do total de municípios).
Enfim, o relatório recomenda como prioridades a ampliação da capacidade de execução de obras, a segurança jurídica e a diversificação de modelos prestacionais. “Uma iniciativa importante é o lançamento do novo PAC, programa de investimentos anunciado pelo governo federal em agosto de 2023, que prevê investimento de cerca de R$ 52 bilhões no saneamento básico, dos quais, aproximadamente R$ 46,5 bilhões entre 2023 e 2026 e o restante após 2026.”
E aí os banheiros estarão em pauta, uma vez que o programa prevê a destinação de R$ 37 bilhões para seleção de novos projetos. “A maioria dos recursos, R$ 26,8 bilhões, será destinada ao esgotamento sanitário; para o abastecimento de água estão previstos R$ 11,7 bilhões; para resíduos sólidos, R$ 1,8 bilhão; e para drenagem urbana, R$11,6 bilhões”, informa o relatório.
Há um nó górdio ainda não solucionado: as regiões Norte e Nordeste, apesar de representarem 35% da população nacional, têm menos recursos investidos em saneamento do que as demais regiões.
Atualmente, a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades possui 812 contratos ativos e destes, 319 encontram-se com as obras paralisadas. Daí, o risco de não-execução de recursos disponíveis.
Não há mapeamento das áreas de risco
Um dos estudos consultados revelou que apenas 20% dos valores empenhados para investimentos em água e esgoto sob gestão do Ministério das Cidades, entre 2008 e 2015, foram liquidados.
Há riscos de todo tipo, especialmente o manejo de águas pluviais: 66% dos municípios não possuem mapeamento de áreas de risco de inundação, 82% não possuem sistema de alertas de riscos hidrológicos e 37 municípios possuem mais de 50% dos domicílios em áreas com risco de inundação.
Água potável
O Projeto de Lei nº 3.228/2023, também de autoria do relator, visa alterar a Lei nº 11.445, de 2007, para ampliar a transparência sobre aspectos quantitativos e qualitativos da água potável servida.
“Isso tem que acontecer logo, porque diz respeito à melhoria da saúde e dos índices de desenvolvimento de nosso País”, assinala o senador.
Moura reivindica mais ações ministeriais e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tanto no trabalho de consultoria jurídico-administrativa, para possibilitar o arcabouço legal e facilitar a operacionalização e desburocratização, quanto no reforço de recursos para cumprimento desses procedimentos legais.
O documento pede a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC 2/2016), para incluir o saneamento básico entre os direitos sociais, e do projeto de lei (PL 2.910/2022), do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), para dispor de maneira mais específica sobre o saneamento em áreas rurais, comunidades tradicionais e povos indígenas.
Números que assustam
● Mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto; 47% da população brasileira não tem acesso ao serviço de coleta de esgoto; cerca de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada;
● Quando se trata de coleta de esgoto a desigualdade regional se agrava: nos 20 municípios mais desenvolvidos, 95,52% da população tem acesso ao serviço, mas o percentual entre os 20 piores é de 31,78%;
● Somente duas cidades da amostra, das 5.570 existentes no Brasil, têm 100% de coleta de esgoto: Piracicaba (SP) e Bauru (SP);
● Apenas 34 cidades têm índice de coleta de esgoto de pelo menos 90% e podem ser consideradas universalizadas de acordo com a legislação;
● Recomendações gerais: urgência na prestação de serviços regionalizada; elaboração de arcabouço regulatório-institucional maduro e estável; governos municipais, estaduais e federal devem concentrar esforços prioritários nas regiões menos favorecidas, tanto em investimentos quanto em acompanhamento e implementação de soluções alternativas escaláveis;
● Dar prioridade ao cumprimento das metas de saneamento básico; destinar e garantir a aplicação a fundos de saneamento básico instituídos pelos entes da federação, dos recursos auferidos com as outorgas dos serviços de água e esgoto, para financiamento dos investimentos necessários à universalização;
● Reconhecer, regulamentar, apoiar e integrar o trabalho dos catadores de lixo às políticas nacionais de saneamento básico.
● Recomendações à União: reforçar o quadro de servidores especializados em saneamento básico da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), para acelerar o processo de elaboração das normas; dar prioridade à destinação dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional; estruturar governança das metas nacionais com ferramentas e rede de apoio;
● Dar prioridade às regiões com menores índices de cobertura de abastecimento de água e esgotamento sanitário; intensificar esforços de parcerias, publicação de editais, chamadas públicas e programas para a busca de soluções técnicas inovadoras e escaláveis para abastecimento de água e esgotamento sanitário em núcleos urbanos informais de interesse social; responder aos pleitos dos estados que aguardam auxílio para o cumprimento das metas.
● Recomendações a estados e municípios: adaptar, com celeridade, o arcabouço regulatório-institucional local às normas de referência da ANA. Concluir o processo de regionalização dos serviços de saneamento básico, de comprovação da capacidade técnica dos atuais prestadores ou licitação dos serviços.
● Elaborar, imediatamente, os Planos de Saneamento Básico próprios e respectivos projetos técnicos para implantação, ampliação ou melhoria das redes prevendo a integração dos quatro componentes do saneamento.
● O trabalho de avaliação foi feito durante um ano, mediante a realização de consulta a dados e estudos já publicados, tanto com informações oficiais disponibilizadas pelos diversos órgãos competentes, como informações complementares por meio da realização de reuniões técnicas e quatro audiências públicas.