João Capiberibe*
Chamava-se José Ataíde o “piloto” da canoa a vela que me levou do coração da Ilha de Marajó a Macapá. Só de olhar a altura do sol ele era capaz de dizer as horas com precisão. Durante a noite, lia nas estrelas os acontecimentos que poderiam influir no singrar da sua pequena embarcação. Mestre Ataíde não descuidava da cana do leme, um cilindro de madeira embutido na parte superior, na popa da canoa. Nos dias de tempestade, o esforço era mais intenso e dolorido, e ele sustentava a cana com toda a força para manter o rumo. O roçar na madeira calejara suas mãos a ponto de já não conseguir cerrar os punhos.
Foi com esse homem, que sabia das estrelas e andava no ritmo das marés, que deixei o Jurará, braço do rio Xarapucu, “abrigado de qualquer vento”. Faltava pouco para eu completar 7 anos, mas já dominava a vida ribeirinha. Sabia nadar, remar, pescar, subir e colher o fruto do açaizeiro, palmeira tão esguia. Habilidades até então decisivas, mas de utilidade duvidosa no futuro, que insistia em não chegar por falta de vento. Flutuávamos quase sem sair do lugar…
– Canoa a vela em dia de calmaria é um problema danado! Ainda bem que temos duas marés por dia. Hã, hã, hã! Ele pigarreia, sem arredar do leme, cospe dentro do rio.
– Veja seu menino, a natureza sabe o que faz. O rio leva mais tempo pra secar do que pra encher. Nosso destino está a meio caminho do mar, do outro lado do canal do Norte, na margem esquerda do Amazonas. Quer dizer, mesmo nessa calmaria, gingando na popa, a canoa desliza na correnteza da vazante. Assim vamos chegar lá, vai demorar um pouco, mas, como dizem, devagar se vai ao fim do mundo. Pode levar cinco, seis, até sete dias; só sei que, na hora certa, vai surgir a cidade à nossa frente, e aí então, seu menino, você vai conhecer essa beleza. Eu gostaria muito de mudar de vida – prossegue ele. – Fico imaginando que um dia ainda vou pilotar um vapor, de quepe, túnica branca com aquelas divisas no ombro, hum… adeus tempo ruim, vou desdenhar da cara do vento, com ou sem ele vou aportar na hora certa, basta ligar o motor que a hélice empurra o barco até mesmo contra a maré! Agora, canoa a vela… hum! Virgem santa! Sem vento pra empurrar a vela! É essa lentidão.
Quantos dias de viagem? Só sei que pra mim foi interminável, durou até que seu Ataíde olhou para o céu:
– Soltem a âncora, estamos na boca do Furo dos Porcos, vamos fundear aqui.
Eram cinco da tarde, e a maré estava muito baixa.
– Maré não espera a canoa, é a canoa que tem de esperar pela maré, lá pelas dez da noite vamos ter água bastante para atravessar o canal, entrar no igarapé da Fortaleza e assim vencer nossa viagem.
Sentia uma mistura de ansiedade e medo. Eu finalmente ia conhecer aquele misterioso lugar que engolia tudo que meu pai levava: dormentes, sementes, borracha – e devolvia alimentos, roupas e coisas fascinantes, como a lanterna de pilha, que fez enorme sucesso em nossa aldeia e atraiu gente das brenhas distantes dos altos rios: muitos remaram dias só para ver de perto o facho a romper as trevas das noites sem lua.
Quando chegamos, meu corpo estava prostrado de cansaço. A canoa parecia ter encolhido tanto que eu mal cabia dentro, mas o fascínio de ver pela primeira vez a cidade era tão grande que nada disso importava. O relógio de mestre Ataíde, agora uma enorme bola de fogo em matizes vários, foi aos poucos deslizando no horizonte até sumir por detrás da mata.
Do outro lado do canal, um enorme clarão emergia da escuridão. Imaginei um enxame de vaga-lumes reluzindo ali, porém, logo percebi que o lume ia aumentando, ficando mais intenso, deixando-me confuso, mergulhado em dúvidas, atordoado pela curiosidade e pela emoção. Ainda ouço mestre Ataíde repetir:
– Não se assuste, é o clarão da cidade. É o milagre da eletricidade, seu menino! Parece a morada de Deus em dia de lua cheia, não é mesmo? Veja! Está tudo tão claro, parece que ali sempre é dia.
Perplexo, não conseguia afastar os olhos daquele horizonte luminoso. À medida que a canoa avançava, cortando lentamente as águas do rio, aumentava a sensação de que eu iria arder numa gigantesca fogueira. Só me acalmei quando finalmente pude enxergar as lâmpadas incandescentes que rompiam a sombra.
Senti alívio, pelo menos até o susto que tomei logo em seguida, quando pus os pés em terra firme e quase fui arrastado por um dragão de metal que urrava e botava fogo pelos olhos. Passou célere, bem perto de mim. Naquele instante, pensei no que vivera até ali, olhei para trás e desejei voltar, mas me contive, teria mesmo de me acostumar com tudo aquilo. Afinal, acabara de mudar de mundo. E nele, hoje completo 77 anos de história.
Macapá
*João Capiberibe, prefeito de Macapá, governador do Amapá, Senador da República
(Artigo publicado originalmente no jornal Diário de Minas)