Para pensar o Hino Acreano com outros ouvidos

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Sobre a música urbana acreana, uma hipótese de formação

Sabemos todos do poder da música em nossas vidas. Nossas vidas sentimentais, sociais e culturais. Não acho que ignoremos de um todo o fato da indústria de cultura, da qual somos consumidores desde o nascimento, ter como meta nos acomodar ao gosto/consumo do que nos é mais passional e menos reflexivo. Que o digam, no caso da audição no Brasil, os pagodes, funks e, especialmente, a chamada música sertaneja universitária, como grifes massificantes que só se tornam sucesso graças ao nosso consumo, enquanto ignoramos todo o resto que não tem a chancela do mercado. Vocês sabem do que estou falando.

Então, não vou falar disso que todos nós já sabemos. Vou falar do que não sabemos ou ignoramos, justamente o que poderia ser de nosso interesse, e não absolutamente esses sentimentais melosos pelos quais temos sido levados a ser tão social e culturalmente distraídos.

Pois bem. Proponho aqui pensar a música acreana urbana, a MAU, pelo aspecto de sua constituição histórica, para o que trago duas de suas expressões, as quais julgo de grande importância para a sua formação, observando suas particularidades e relevâncias especialmente como discursos históricos pela via de suas letras como textos poéticos que são.

Vou considerar o Hino Acreano – que nasceu de um poema e só foi musicado vinte e três anos depois de sua criação – a primeira música acreana urbana, de cujo registro eu tenho notícia. Assim afirmo em razão tanto do histórico e contexto de sua constituição, como pela forma e discurso que contém, quanto pelo o que depois veio a se tornar socialmente.

Tal posição a defendo sem prejuízo à justa consideração de existência concomitante de outras músicas produzidas no território e tempo de que trato aqui, porém sem as características para se firmarem como MAUs, segundo entendo.



Vejamos se esta minha particular proposição consegue ter algum fôlego persuasivo.

Escrito em 1903, por ocasião da guerra da chamada Revolução Acreana, portanto ainda em território não urbano de um Acre ainda não constituído oficialmente, a letra do hino foi de fato escrita originalmente como um poema. O seu autor foi o poeta baiano Francisco Cavalcanti Mangabeira que na ocasião integrava, como médico, as tropas de Plácido de Castro, nas trincheiras do Seringal Capatará.

Oito anos depois, em 1911, o então Prefeito do Departamento do Alto Acre, Epaminondas Jácome, que havia também participado da guerra, resolve, por Resolução, determinar a adoção do texto, então denominado Hino Acreano, em todas as escolas públicas, como homenagem ao poeta e demais “revolucionários”, que “se sacrificaram pela causa do Acre”, e, simultaneamente, cultivando o amor da pátria nos edificantes exemplos que estes nos legaram”.

Já a sua melodia foi composta em 1926, na Vila Seabra, hoje município de Tarauacá, portanto já em pleno território acreano. Seu autor, o músico, compositor e maestro cearense Mozart Donizetti Gondim, a compôs quando lá morava e trabalhava.

Até a década de 1990, o Hino Acreano era executado quase que exclusivamente no âmbito de cerimônias oficiais por bandas militares e corais, na forma rígida de marcha e dobrado, em datas e eventos estatais, ganhando, a partir de então, uma outra maneira de ser executado/cantado e fora dos contextos cerimoniais, o que passou a ocorrer no estilo de canção popular, isto graças à interpretação, gravada no LP vinil “É pra frente que se anda”, dada pelo compositor e cantor de Sena Madureira, Sergio Souto, o que a firmou como a música local mais conhecida e executada/cantada dentro do território acreano.

Muito embora a sua popularidade a tenha libertado da camisa de força das formalidades legais impostas à sua execução – conforme diretrizes da Lei Estadual 1.175/1995 que regulamenta e dispõe sobre a forma de apresentação do hino – a obra findou por ficar vinculada a políticas de propagandas em campanhas eleitorais e gestões governamentais de então, sobretudo do Governo da Floresta, feito esse no interesse pela mitificação legitimadora da história colonial do Acre.

Nesse sentido, o hino é apresentado estritamente dentro de um contexto discursivo como o testemunho da boca dos vencedores, internos e externos, da tal revolução com o qual busca universalizar o sentimento/conhecimento a respeito do que ali aconteceu, isto é, tornar um dos dispositivos/símbolos oficiais a promover/legitimar a suposta única e verdadeira interpretação dos fatos.

Quem detém a fala nele, senão um fictício coletivo de vencedores “invencíveis e grandes na guerra” cujo único interesse é a liberdade, o seu “querido tesouro” e o “arco-íris da paz”. Liberdade e paz para quem? Onde estão os povos nativos, os seringueiros e demais subalternos do território colonizado da época? As mulheres são explicitamente reduzidas a “…esposas e mães carinhosas a esperar-nos nos lares fieis, atapetam as portas de rosas e cantando entretecem laureis”.

Que imortal e sagrado troféu” ganharam os colonizados com a vitória da tal revolução, com a condição dita libertadora de brasileiros, acreanos? Liberdade e paz, para os que já eram proprietários (os patrões seringalistas coloniais), de se manterem proprietários, eis o verdadeiro “bem conquistado”, o verdadeiro “prêmio de guerra”.

Estamos diante de um poema de caráter epopeico-patriótico que busca instaurar, pela ideia de força bélica, o que aquele momento histórico “exigia” (“Possuímos um bem conquistado nobremente com armas na mão/se o afrontarem, de cada soldado, surgirá de repente um leão…”), a consagrar uma forma de identidade/comunidade local/nacional com a qual se eleva pela concepção de pertencimento do tipo ufânico que “enche o peito de cada acreano de nobreza, constância e valor”. Melhor dizer, de um tipo de acreano.

Como entendo, sua mensagem se fundamenta numa ficção epistêmica e histórica – ficção de revolução, portanto, ficção de que foi produto da vontade popular; ficção de que quem saiu ganhando foi o povo (esta unidade abstrata que não alcança os condenados da floresta); ficção de que alterou o status quo das relações de poder ali instalado…

A propósito, existe outra canção acreana, Sou Fronteira, do poeta xapuriense Océlio de Medeiros e do compositor rio-branquense Cezar Escócio, que considero, comparando com o hino de Mangabeira e Donizetti, não só uma espécie de hino acreano da paz e da auto-expressão sensual e do amor (A minha irmã é a Bolívia e o Peru é o meu irmão, mas sou filha da lascívia e ambos dou meu coração…”), mas, também por isso, um discurso poético e político não colonial em relação aos termos daquele.

Océlio escreveu o poema, em 1942, na cidade acreana de Xapuri, e publicou em seu livro Jamaxí– A Poesia do Acre em Três Tempos, de 1979 (Arquimedes Edições). Não por acaso, na epígrafe do poema, o poeta o dedicou às mulheres daquele lugar: “Para as minhas conterrâneas de Xapuri”.


“Que imortal e sagrado troféu” ganharam os colonizados com a vitória da tal revolução, com a condição dita libertadora de brasileiros, acreanos? Liberdade e paz, para os que já eram proprietários (os patrões seringalistas coloniais), de se manterem proprietários, eis o verdadeiro “bem conquistado”, o verdadeiro “prêmio de guerra”.



Este poema foi transformado em canção nos idos dos anos de 1990, quando Cezar o melodiou e lançou no show Made in Seringal, em Rio Branco; sendo gravada, no CD/Songbook Canções Acreanas que produzi no ano de 2000, pela voz da cantora acreana Laélia Ramos.

Vinculada a outra forma de interpretação historiográfica do Acre, diversa da adotada no hino, Sou Fronteira usa como metáfora a seringueira, de modo a colocar o Acre numa condição de lugar explorado, tal qual o produto seringa/látex, condição esta que historicamente levou o território ao tipo de estado de existência social, política, econômica e cultural, justamente da linhagem daquela instalada com a tal revolução.

Como se pode constatar neste verso: “Sou peito lanhado à faca, do machado que me corta, tiraram meu couro sou vaca, meu sangue o Brasil exporta.”, é dado voz ao ser vegetal seringueira pela qual constata/denuncia a sua transformação ao estado pecuário/desenvolvimentista; inclusive lamentando o próprio comportamento subalterno/colonizado do lugar – em primeira pessoa – “Acreana, sou fronteira no noroeste encravada, Seringueira guerrilharia, não mais luto estou calada.”.

Em 1942, o poeta, falando ali do passado e do presente, já antevia o que aconteceria – senão continuaria a acontecer – nas décadas seguintes com as políticas de desenvolvimento econômico e sustentável adotadas pelos governos acreanos.

O curioso é que a construção composicional de Sou Fronteira ocorreu da mesma forma que se deu com o hino oficial. Duas músicas nascidas de dois poemas em períodos e lugares do Acre distintos; duas formas de pensar a ideia de lugar de vida como nação (glorificar, uma; criticar, outra); duas particulares posições políticas a respeito da formação histórica do Acre, das suas relações fronteiriças (uma, que se abre; outra, que se fecha “mas se audaz estrangeiro algum dia nossos brios de novo ofender, lutaremos com a mesma energia, sem recuar, sem cair, sem temer…”), de seu circuito sociocultural no qual a música ganha sentido válido e próprio, especialmente pelo senso de localidade constitutivo dali, para quem se considera a ele pertencer.

Mas as semelhanças não estão somente na forma de suas constituições e nos embates frontais de seus discursos a partir de interesses locais. Elas avançam também para a estética-musical, alguns de seus aspectos. Nesse sentido, tanto a interpretação de Sergio Souto quanto a melodia de Cezar Escócio optam em trabalhar com a forma-canção.

O arranjo e o canto da versão de Sergio saem da esfera rítmica do dobrado rígido-militar, tal como foge da marcha épica, para caminhar por uma interpretação suave sustentada por um modo sentimental de cantar/dizer o poema de Francisco Mangabeira, como quem narra, sem nenhuma pressa, uma saga.

A melodia de Cezar coloca o poema de Océlio a operar na mesma região performática do ritmo, do arranjo e do canto do hino de Sergio. Ambas obras se valem de um quase solitário piano como instrumento de harmonia e acompanhamento. É que, com acerto, o que mais importa é o canto, isto é, a narrativa, o discurso.

A versão de Sergio, porém, aplica, numa segunda parte, uma camada sonora de orquestração e uma batida rítmica menos compassada, o que faz parecer não desejar trair a referência original/oficial.

A gravação de Sou Fronteira tem um solo de sanfona no arranjo da sua introdução com o que mantém a leveza da canção, sem deixar de registrar a memória do timbre característico do forró do Nordeste, justamente de onde vieram os seringueiros-soldados da tal revolução a construir esse lado acre do Acre por seus heróis condenados…

A forma estética-musical de ambas opera uma estratégia de narrativa (uma, de glória diante do outro; outra, de alteridade) de não só fazer com que o ouvinte ouça a letra, mas de fazê-lo apreendê-la, senão adotá-la como seu o discurso/posição política ali posto/posta no contexto da localidade, na arena do conflito interpretativo da historiografia acreana.

De fato, as duas melodias tratam de questões profundamente caras a este lugar sob os pontos de vistas não só histórico, mas também social, político e cultural, se constituindo, como tais – para além de manifestações poético-musicais – importantes e substanciais documentos abertos a interpretações, a exemplo da minha aqui exposta de maneira breve.

ndependentemente de seus usos, o fato é que, por elas, o senso de localidade/comunidade se apresenta como uma das características de uma música que se pode chamar de própria – sendo o Hino Acreano o seu momento inaugural e Sou Fronteira uma das suas mais significativas expressões com quem dialoga – o que faço objetivando defender a existência da música acreana urbana no contexto colonial – que vou cunhar de colonialidade estética – que lhe tem sido frontalmente adverso.


Seguem abaixo os links dos áudios e as letras de ambas as canções.

Sou Fronteira – Laelia Ramos

Hino Acreano – versão Sergio Souto


HINO ACREANO

(Francisco Mangabeira/Mozart Donizett)

Que este Sol a brilhar soberano
Sobre as matas que o veem com amor
Encha o peito de cada acreano
De nobreza, constância e valor.

Invencíveis e grandes na guerra
Imitemos o exemplo sem par
Do amplo rio que brilha com a terra
Vence-a e entra brigando com o mar.

(Refrão)
Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto com sangue de heróis
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.

Triunfantes da luta voltando
Temos n’alma os encantos do céu
E na fronte serena, radiante
O imortal e sagrado troféu.

O Brasil a exultar acompanha
Nossos passos, portanto é subir
Que da glória, a divina montanha
Tem no cimo o arrebol do porvir.

(Refrão)

Possuímos um bem conquistado
Nobremente com armas na mão
Se o afrontarem, de cada soldado
Surgirá de repente um leão.

Liberdade é o querido tesouro
Que depois do lutar nos seduz
Tal rio que rola, o Sol de ouro
Lança um manto sublime de luz.

(Refrão)

Vamos ter como prêmio da guerra
Um consolo que as penas desfaz
Vendo as flores do amor sobre a terra
E no céu o arco-íris da paz.

As esposas e mães carinhosas
A esperar-nos nos lares fiéis
Atapetam as portas de rosas
E, cantando, entretecem lauréis.

(Refrão)

Mas se audaz estrangeiro, algum dia
Nossos brios de novo ofender
Lutaremos com a mesma energia
Sem recuar, sem cair, sem temer.


E ergueremos então destas zonas
Um tal canto vibrante e viril
Que será como a voz do Amazonas
Ecoando por todo o Brasil.

(Refrão)


SOU FRONTEIRA
(Océlio de Medeiros/Cezar Escócio)


Acreana, sou fronteira
No noroeste encravada
Seringueira guerrilheira
Não mais luto, estou calada.

No lado de cá, descaso
Ou me junto, bebo e danço
No de lá, de novo caso
É só subir o barranco.

A minha irmã é a Bolívia
E o Peru é meu irmão
Mas sou filha da lascívia
E a ambos dou meu coração.

Na fronteira tenho ficha
Desde a guerra com meu guascar
Com a Bolívia tomo chicha
Com o Peru eu bebo asca.

Sob o meu verde colchão
Tenho o peito recoberto
Como terra, sou ilusão
Sob o húmus sou deserto.

Meu peito todo riscado
Fui borracha, fui castanha
Nos seringais do passado
Minha História foi façanha.

Sou peito lanhado à faca
Do machado que me corta
Tiraram meu couro, sou vaca
Meu sangue o Brasil exporta.




João Veras é poeta, músico e escritor acreano. Publicou, entre outras obras, Seringalidade, o estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta, pela editora Valer, 2017.

joao_veras@hotmail.com



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