Os muitos vales dos Taquaris 

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Nas últimas semanas assistimos atônitos aos acontecimentos da grande enchente que atingiu (e atinge) o Rio Grande do Sul. Situações e histórias de vida (as muitas vidas) que nos sensibilizam. A indiferença seria infame. Cidades inteiras tomadas pelas águas. Casas destruídas. E não são apenas estruturas físicas, mas construções de vidas inteiras de trabalho e sacrifícios. Cidades que em pouco mais de oito meses foram impactadas por duas inundações extremas. 

Os municípios do Vale do Taquari foram os mais afetados – isso se é possível dizer qual foi o menos impactado. A situação vivida pela população gaúcha lembra muito o que nós, acreanos, também sentimos já há alguns anos. Acre e Rio Grande do Sul não têm muito (ou quase nada em comum) – a não ser o fato de o heroi da dita Revolução Acreana – o coronel José Plácido de Castro – ser um gaúcho. Mas o que talvez mais aproxime estes dois estados localizados em pontos extremos do Brasil sejam os impactos da crise climática. 

Meses atrás, quem estava com suas cidades e a zona rural tomada pelas águas era a população acreana. Tudo isso, assim como lá, menos de um ano após o estado ter sido impactado por uma alagação extrema. Como costumo escrever rotineiramente por estas páginas varoudianas, os eventos climáticos extremos – sejam as enchentes ou as secas – estão cada vez mais severos e intensos, afetando o globo terrestre do Hemisfério Sul ao Norte. 

Ao acompanhar os estragos provocados pela grande cheia do rio Taquari, lá no Sul, eu faço uma conexão com outro Taquari: o nosso conhecido bairro aqui da periferia de Rio Branco, no Norte do Brasil Marginalizado por nós mesmos, o nosso Taquari pode servir como um “exemplo” de nossa falência enquanto “humanidade” e de nossa relação com a mãe natureza. 

Além de ser hoje uma das regiões mais violentas da capital acreana, dominado e disputado pelas facções criminosas – numa guerra onde a principal vítima é a população trabalhadora – o nosso Taquari é o primeiro e um dos bairros mais impactados pelas alagações do rio Acre. É pelas ruas, vielas e becos do Taquari onde está a nossa população mais pobre, excluída das políticas sociais, onde está a nossa população preta, parda, indígena. 

Assim como a maioria de nossas periferias, o Taquari foi formado a partir da ocupação de Rio Branco pelas famílias e descendentes de seringueiros expulsos de suas colocações pelos “novos donos do Acre”, os latifundiários que aqui chegavam para transformar a floresta em pasto.  

Ou seja, além de serem vítimas da violência do Estado (ao não lhes assegurar políticas públicas para a sua qualidade de vida) e das facções criminosas, a população do Taquari pode ser exemplificada como um dos casos daquilo que convencionou-se chamar de racismo ambiental. Invisíveis nas periferias de Rio Branco, essas são as pessoas mais afetadas pelas alagações extremas do rio Acre.

Comparar o Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, com o nosso Taquari do Segundo Distrito não é nenhum exagero. As suas populações são vítimas de uma crise climática cada vez mais aguda, e da ineficiência dos governos em reduzir estes danos.

Falar sobre o bairro Taquari para mim é emblemático. A cada época de alagação era o primeiro a ser visitado nas minhas coberturas jornalísticas. Bastava pegar uma catraia ali na rua Baguari, a poucos metros da via Chico Mendes, e já nos deparávamos com as águas do rio Acre e outros córregos transbordados. 

O local estava sempre agitado. Lá era o ponto de desembarque das canoas trazendo os alagados e seus pertences que não ficaram estragados pela água. Caminhões os esperavam para levá-los ao Parque de Exposições. Mais de 10 anos depois, a cena se repete a cada período de chuvas. 

Naqueles tempos não falávamos (ou nem sabíamos) em mudanças climáticas. Acho que era um tema em início de debates. Afinal de contas, as alagações do rio Acre fazem parte de nosso calendário. O problema é que, a partir de 2012, elas passaram a ser mais recorrentes e severas. Já na época do verão o rio ficava (e fica) em níveis críticos de vazante. Foi aí que passamos a saber, na prática, o que significa o termo mudanças climáticas. 

Nestes meus 15 anos cobrindo e vivenciando estas situações, o cenário só se agravou – e não só no sentido ambiental. O Acre continua submerso pela extrema pobreza e as injustiças sociais. Nossos abismos (vales) sociais são gritantes. Os muitos governos que passaram se mostraram ineficientes para lidar com nossas mazelas. E o bairro do Taquari é apenas um exemplo de como nós falhamos. Ao invés do estado, o crime organizado impõe suas regras aos moradores do Taquari.   

Fazer uma conexão entre os dois Taquaris para mim é muito emblemático. No Sul, o termo Vale do Taquari recebe este nome por formar a Bacia do Rio Taquari – assim como temos os nossos vales do Acre, do Purus e do Juruá. Apesar de ser um bairro, o nosso Taquari também está num vale (neste caso no sentido metafórico da palavra). 

O nosso Taquari está num vale de pobrezas, de violências, de omissões e de nossa falência enquanto sociedade e da nossa relação com o meio ambiente em seu sentido mais amplo.        



Fabio Pontes – jornalista acreano, nascido e criado pelas curvas do Aquiry
Editor-executivo do Varadouro

fabiopontes@ovaradouro.com.br


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