OBSTÁCULO A MENOS

Compartilhe

À espera de demarcação, Yaminawa vencem batalha contra grilagem

Os Yaminawa do rio Caeté, em Sena Madureira, aguardam desde 2007 demarcação de territórios; enquanto isso, apenas muitas pressões (Foto: Jardy Lopes/2019)



Família de Sena Madureira entrou com ação na Justiça Federal pedindo indenização da Funai por desapropriação de seringal para assentar indígenas no rio Caeté; em parecer, MPF apontou fortes indícios de grilagens de terras públicas praticada ao longo das décadas por possíveis donos dos falidos seringais da Bacia do Purus. Magistrada negou o pedido de reparação, e determinou a extinção do processo.

Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco


O povo Yaminawa de Sena Madureira aguarda, desde 2007, a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Jaminawa do Rio Caeté. Nestes quase 20 anos de espera, eles enfrentam todo tipo de vulnerabilidade, como as invasões de suas terras por caçadores, madeireiros e grileiros. Com tanta insegurança, muitos Yaminawa passaram a morar nas periferias de Sena Madureira, onde ficam expostos à violência das facções criminosas, com muitos dos jovens sendo recrutados como seus “soldados”.

Na semana passada, em meio a tantas omissões pelo poder público, os Yaminawa obtiveram uma importante vitória na Justiça contra os invasores dos territórios reivindicados. A juíza Luzia Farias da Silva Mendonça, da Segunda Vara Federal de Rio Branco, negou pedido de indenização no valor de R$ 40 milhões, de uma família que afirma ser proprietária do Seringal Boa Vista – que mediria 3.000 hectares – cujos limites foram incorporados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) à Ti Jaminawa do Rio Caeté.

A magistrada, todavia, seguiu o parecer emitido pelo Ministério Público Federal (MPF) no qual afirma não haver garantias nem segurança jurídica para provar a posse do seringal pela família, o que não daria a ela direito de indenização por desapropriação. No caso, o possível pagamento deveria ocorrer apenas por benfeitorias de boa-fé feita na área, o que também não foi comprovado. Em sua manifestação, o MPF afirma haver fortes indícios da prática de grilagem pelos proprietários do Seringal Boa Vista.

A leitura da sentença traz à luz uma série histórica de problemas sociais e fundiários ocasionados, ao longo do último século, pelo processo de ocupação da Amazônia para explorações econômicas – em especial a produção de borracha. Primeiros e legítimos proprietários das terras que hoje formam o Acre, os indígenas foram expulsos de seus territórios, vítimas de massacres e escravizados para atuar como mão-de-obra dos barões da borracha que loteavam a Amazônia com os seringais.

Entre estes povos estão os Yaminawa. Conhecidos por seu modo de vida nômade, há registro da presença deles por grande parte do sul da Amazônia Ocidental, incluindo terras no Brasil, na Bolívia e no Peru. No Acre, suas maiores presenças estão nas nascentes dos rios, como o Acre e o Iaco. Porém, os Yaminawa tinham nas migrações em busca de caça e água uma de suas principais características de vida. Com a economia seringueira, essas movimentações se intensificaram – agora para não serem mortos pelos capatazes dos seringais.

Das cabeceiras eles foram descendo os rios, procurando áreas mais seguras. Após um intenso conflito que por pouco não levou ao extermínio, os indígenas “se renderam”, e passaram a trabalhar para os seringalistas. Todo este processo deixou marcas profundas nos Yaminawa. Por anos eles viveram em situação de mendicância pelas ruas de Rio Branco. No centro da capital ficavam nas caçadas a pedir esmolas – situação possível de ser encontrada ainda hoje.

Além da capital, eles são moradores das periferias de Sena Madureira, Brasileia e Assis Brasil. Espalhados por quase todo o Acre, os Yaminawa acabaram se subdividindo, criando clãs cujos líderes (por vezes) travam certa rivalidade. Na Bacia do Purus, eles estão em aldeias espalhadas por duas TIs: a Mamoadate (rio Iaco) e a Cabeceira do Rio Acre. Em Sena Madureira eles também pedem a demarcação da TI Riozinho do Iaco, cujo processo se arrasta há anos. Em maio, o MPF ingressou com ação na Justiça para pressionar a Funai a acelerar a demarcação. Tanto na Mamoadate (maior TI do Acre) quanto na Riozinho do Iaco os Yaminawa dividem o território com os Manchineru.

Com a falência da economia extrativista da borracha, os herdeiros dos seringalistas passaram a reinvindicar a propriedade destas áreas. No Acre, havia seringais que podiam chegar a até 40 mil hectares – verdadeiros latifúndios. As posses dessas terras eram feitas por documentações precárias, muitos deles sem nenhum tipo de respaldo legal. Bastava chegar ao cartório dizendo de quantos hectares era dono, e a propriedade era registrada. Como se vê, a grilagem na Amazônia é de longas datas.

Estes seringais eram vendidos, passados de dono para dono. Às vezes, por serem tão grandes, eram subdivididos. Desta forma, criou-se um verdadeiro emaranhado no registro de títulos de posse de terra no Acre, não sendo possível definir a cadeia dominial da área. Para o MPF, assim acontece com o Seringal Boa Vista.

Segundo os estudos antropológicos, as terras tradicionalmente ocupadas pelos Yaminawa do rio Caeté formavam o Seringal Santa Helena – não havendo o registro do Seringal Boa Vista. Além disso, os quase 10 mil hectares identificados para formar a TI Jaminawa do Rio Caeté estão localizados dentro da Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, unidade de conservação federal. Todos os 750 mil hectares que formam a área protegida foram identificados. Aqueles onde de fato havia respaldo jurídico de posse, o governo fez o pagamento de indenizações.



Indícios de uma indústria da grilagem

A posse do Seringal Boa Vista é reivindicada por Ciro Machado Filho. Ele morreu em 2015, mas seus herdeiros deram continuidade ao processo que colocavam a União e a Funai como réus. A família alega no processo não haver registros de ocupação tradicional pelos Yaminawa nas terras onde a Funai realizou o assentamento, no final dos anos 1990, no rio Caeté.

De acordo com a família, ao assentar os Yaminawa em 1997 nas áreas que seriam de sua propriedade, a Funai faria o pagamento da indenização no prazo de dois anos – o que nunca foi feito. Chama a atenção um fato: além de querer o pagamento de indenização pelos três mil hectares do Seringal São Boa Vista (cujo valor avaliado, em 2009, seria de R$ 6 milhões), a família de Ciro Machado Filho reivindica receber por toda a área identificada pela Funai para compor a TI Jaminawa do Rio Caeté, que seria pouco mais de 10 mil hectares. Pelas contas, o valor total a que teriam direito de receber do governo seria R$ 40 milhões.

Porém, o MPF apontar não haver provas nem de que os três mil hectares do Seringal Boa Vista de fato e de direito pertencem aos autores da ação. Para se chegar a essa conclusão, o Ministério Público fez uma análise histórica da cadeia dominial do que seria o Seringal Boa Vista – a fim de checar os registros de posse do primeiro dono até Ciro Machado Filho.

Além disso, foi feita uma varredura nos sistemas oficiais de registro de posse de terras no país, Um dos problemas encontrados é o não registro dos limites do seringal, com coordenadas. Nas investigações, descobriu-se que a propriedade não possui registro no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SBCR), “de modo que não se encontrou o bem denominado Seringal Boa Vista”.

“Nesse ponto, cabe ressaltar que, após detida análise do histórico de procedimentos judiciais e extrajudiciais do MPF no Acre, foram encontradas várias demandas que envolvem supostos ilícitos de apropriação indevida e ilegal de terras pertencentes ao patrimônio da União em desfavor de Ciro Machado Filho”, diz trecho do parecer ministerial.

De acordo com os levantamentos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) identificou Ciro Machado Filho como beneficiário de projetos de assentamentos em áreas de Sena Madureira e em Boca do Acre, no Amazonas. Pelas regras, somente famílias do perfil da agricultura familiar e cadastradas em programas de reforma agrária podem ser assentadas pelo Incra. Ao se apresentar como dono de grandes porções de terra, o proprietário do Seringal Boa Vista, ele jamais poderia constar como assentado.

Para o MPF, o histórico envolvendo o autor da ação, além da inconsistência dos documentos apresentados como prova de posse, fazem colocar sérias dúvidas sobre a autenticidade sobre a propriedade do Seringal Boa Vista – o que não daria direito algum de indenização por desapropriação.

Com tantas incongruências, a juíza Luzia Mendonça não teve outra opção a não ser negar o pedido da família Machado, julgando-o improcedente e determinou a extinção do processo. Ela ainda determinou o pagamento de todas as custas processuais da ação, determinado o valor em 10% sobre o pedido inicial do caso, que era de R$ 40 milhões.

A reportagem do Varadouro procurou o advogado da família Machado Filho para comentar a situação do caso, mas não houve retorno. Como consta na sentença da magistrada, a defesa também não contestou as acusações feitas pelo MPF em seu parecer nos autos, mesmo sendo dado o prazo para as contestações.



A retomada da demarcação

Em abril, durante as celebrações do abril indígena, a Funai anunciou a retomada do processo de demarcação da TI Jaminawa do Rio Caeté, cujos limites abragem os municípios de Sena Madureira e Boca do Acre. Foram criados seis Grupos de Trabalho (GTs) no país, incluindo o território Yaminawa e dos Nawa, em Mâncio Lima.

O geógrafo José Frank Silva é assessor técnico do Setor de Geoprocessamento (SEGEO) da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), organização que integra o GT da TI Jaminawa do Rio Caeté. De acordo com ele, neste momento está sendo elaborado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). Neste ano já foram realizadas duas visitas a campo às aldeias Yaminawa do rio Caeté. Uma terceira seria realizada em setembro, mas foi suspensa pelo nível crítico de vazante do Caeté. Ela foi reprogramada para fevereiro.








Logomarca

Deixe seu comentário

VEJA MAIS

banner-728x90-anuncie