O entregador de jornal de ‘origem’ italiana das periferias de Rio Branco, que virou o fotógrafo da Amazônia
Aqui neste texto, faço uma homenagem ao fotojornalista Marcos Vicentti. Tive o privilégio de tê-lo como colega de sala no curso de Jornalismo. Eu o culpo por estar até hoje persistindo neste fazer jornalístico. Marcão me levou para a redação do Página 20, onde tudo começou para mim e para ele. Conheci a história daquele entregador de jornal que se transformou num dos melhores nomes da fotografia amazônida. O colega de turma também foi uma das minhas maiores influências profissionais.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
Era o começo de 2005. Em um canto da sala, meio que tímido e acanhado, um homenzarrão sentava na cadeira para o primeiro dia de aula. O curso se chamava Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo. A universidade era o já extinto Instituto de Ensino Superior do Acre, o Iesacre. O homem grandão era nada mais, nada menos do que Marcos Vicentti. Porém, quase nunca os amigos o chamavam de Marcos. Aquela marra de homem com quase dois metros de altura só poderia ser chamado mesmo de Marcão. Ele era grande não só na estatura. Sua grandeza estava no caráter, no profissionalismo e na sua generosidade acreana. Uma grandeza de espírito.
Foi assim que eu conheci Marcos Vicentti. Melhor dizendo, Marcão. A vida me deu o grande privilégio de dividir a minha formação jornalística ao lado de um dos maiores e mais importantes nomes do jornalismo amazônico. Aliás, foi ele quem me introduziu a este mundo tão apaixonante do fazer jornalismo – mesmo com todas as suas angústias. Meio que sem querer, Marcão me empurrou para este mundo de catar e contar histórias. De entrar nas periferias, nas florestas, nos seringais em busca de ouvir a nossa gente – de tirá-las do invisível.
Acho que eu nem tinha 20 anos quando Marcão me convidou para começar um estágio no saudoso Página 20. (Como tudo no Acre de hoje é apenas saudosismo). Marcão gostava dos meus textos em sala de aula. Os meus tons irônicos na escrita chamavam a sua atenção, e via em mim um potencial escriba nas redações. E lá fui eu começar a minha carreira profissional da qual nunca mais sai. Graças ao Marcão, tive o privilégio de começar no jornal impresso. A velha escola do Jornalismo. Tempos mágicos aqueles.
Além de Marcos Vicentti, a redação do P20 era composta por Val Sales, Tião Vitor (estes dois também já fizeram suas passagens), Renata Brasileiro, Andrea Zilio, Whiley Araújo, Leonildo Rosas escrevendo a coluna política Poronga e o também fotojornalista Regiclay Saad. Toda a redação saia de manhã cedo para apurar as pautas, e à tarde tinha que entregar os textos ao editor Tião Vitor.
Era a corrida contra o relógio para “fechar” a edição do dia e enviá-la para a impressão na gráfica. Nosso único veículo de transporte era uma Kombi lendária. Nos dias mais quentes, suávamos de calor. O motorista, se não me falha a memória, era o seu Waldecir. Quando não estava dirigindo, tirava um ronco no banco da Kombi. À tarde a soneca era no sofá da redação.
Este era o nosso fazer jornalístico naquela Rio Branco de tempos mágicos – bem diferente de nossa atual decadência. E nunca me esqueço a minha primeira pauta com Marcos Vicentti. Ele queria apresentar a cachaça feita da folha do jucá como patrimônio cultural-gastronômico da capital acreana.
Levou-me para conhecer e degustar a melhor cachaça de jucá da cidade. Ficava num boteco de madeira (estes sim verdadeiros patrimônios boêmios de Rio Branco) ali no bairro da Cerâmica, próximo ao Araújo do Aviário. Não sei se existe mais. Deve ter sido demolido para a construção de algum prédio de concreto.
Ah, a tal modernidade do cimento.
Não sei se cheguei sóbrio à redação do Página 20. Mas escrevi a reportagem e ela saiu no encarte especial da edição dominical. Sim, naqueles idos os jornais de domingo eram os mais caprichados. Com bons textos e fotografias. Venho destes tempos. Além de um excelente fotojornalista, Marcão era um pauteiro de mão cheia. Em tudo via a possibilidade de escrever uma reportagem.
Depois do jucá, Marcão e eu viramos parceiros de copo também. Coisa de jornalista. Sabe como é. Às sextas, nossa turma ia para o tradicional Chorinho que tinha ali na Gameleira beber ….jucá. Lá no Bar do Brucutu, no bairro do 15, bem na curva do rio, bebíamos cerveja mesmo. Como falei, eram tempos de uma Rio Branco mágica, tranquila. Tempos que ficam apenas nas recordações.
O entregador de contos
Marcão iniciou a faculdade de jornalismo apenas para obter o diploma. Ele já era um jornalista nato, formado na escola da vida. Ah, sim, naqueles tempos era obrigatório ter a formação em Jornalismo para exercer a profissão. Alguns anos depois, quando ainda estávamos em sala de aula, o STF – a pedido das grandes empresas de comunicação – derrubou a obrigatoriedade.
Entre 2004 e 2005 o Acre recebia os primeiros cursos de Jornalismo. Na verdade, só havia na Ufac e no Iesacre. Até então, os nossos jornalistas eram formados no cotidiano, no fazer diário, no ir para as ruas ouvir e contar histórias. Foi nesta formação na marra que tivemos os grandes nomes de nossa imprensa. Profissionais do texto, da fala e das imagens. Mulheres e homens movidos pela paixão que é a única coisa capaz de explicar a nossa persistência na reportagem.
E entre eles estava Marcos Vicentti Batista da Silva. Um rio-branquense nascido e criado pelas ruas do bairro da Conquista. À medida que íamos convivendo, em sala de aula e na redação do Página 20, Marcão ia me falando sobre sua vida. Fui conhecendo sua família. A esposa daqueles tempos também estudava no Iesacre, fazia o curso de Serviço Social.
Marcão me contou que, antes da fotografia, era entregador do jornal Página 20. Retirava os exemplares na gráfica e os distribuía nas bancas. Este foi seu primeiro contato com o jornalismo: entregar, vender notícias. Depois da gráfica passou a ter mais contato com a redação. Também fazia o serviço de office-boy e trabalhava nos arquivos do jornal. Aos poucos foi se aproximando dos jornalistas. Mas a fotografia foi sua grande paixão. Como era um dos primeiros a ter acesso ao jornal recém-saído das impressoras, ia olhar as fotografias.
E, assim, a curiosidade do menino virou a sua profissão. De entregador passou a ser o fotógrafo oficial do jornal. O ano era 1996. O Página 20 era a trincheira de resistência das forças mais à esquerda e progressistas de Rio Branco. Fazia oposição aos governos de direita – e enrentava dificuldades financeiras por isso.
Naquele ano, o PT perdeu a prefeitura da capital, e o jornal quase fechou. Os próprios jornalistas se viraram para que o periódico sobrevivesse. Foi aí que Marcão foi chamado para “quebrar o galho” na fotografia – e nunca mais saiu da função. Viveu e contou muitas histórias. Tinha uma bagagem cultural riquíssima. Conhecia este Acre de ponta a ponta. Marcão era um fotógrafo das periferias. Ele próprio vinha da periferia.
Um acreano italiano
O verdadeiro nome de Marcão era Marcos Vicente, bem à brasileira. O Vicentti de uma grafia italiana foi criada pelos amigos de redação. Foi batizado de Marcos Vicentti pelo então diagramador Gean Cabral, me conta o Leonildo Rosas. O Vicentti com dois tês era mais chique.
E, assim, aquele menino das periferias de Rio Branco passou a ter “descendência” italiana. Marcão me disse que uma vez uma pesquisadora italiana viu sua assinatura no jornal e o procurou para conhecer sua árvore genealógica – para descobrir de onde vinha da Itália. Ele adorava nos contar essa peripecia.
Marcão sempre foi um cara batalhador. Começou a trabalhar ainda criança para ajudar no sustento da família. Precisou abandonar os estudos. Sempre falava que, para entrar na faculdade, realizou o supletivo – o antigo “provão” – para obter o diploma do segundo grau. Havia anos que não colocava o pé numa sala de aula antes de começar o curso de Jornalismo. Dizia que jamais imaginava um dia chegar ao banco da universidade. Formou-se com maestria.
Se sentia um “velho” estudando no meio de um monte de jovens. Mas nada que o limitasse na busca daquele sonho. Marcão costumava dizer que não se sentia capaz de chegar até o fim do curso. Algumas vezes cogitava em desistir, mas nós não deixávamos. A turma o incentivava a continuar.
O ritmo apertado de trabalho o fazia perder alguns dias de aula, o que o deixava atordoado por não seguir a sequência das disciplinas. Era um cara disciplinado. Determinado. Não tinha nenhuma vergonha ao dizer que não sabia de algo, e nos pedia ajuda ou aos professores.
Com a conclusão do curso, no fim de 2009, nos distanciamos um pouco. Após o Página 20, fui trabalhando em diferentes jornais. Encontrávamos nas pautas. Ele largou a redação. Era o fotógrafo oficial do então prefeito Raimundo Angelim (PT). Depois continuou com Marcus Alexandre. Sempre foi ligado aos movimentos de esquerda.
Marcos Vicentti era servidor de carreira da Secretaria de Comunicação. Após a saída do PT do poder, retomou ao cargo na Secom, e continuou como repórter-fotográfico no governo de Gladson Cameli (PP). Nosso último encontro, se bem não me engano, foi no café da manhã em um hotel em Cruzeiro do Sul. Ele cobria a agenda do governador na cidade.
De forma paralela, nos últimos anos, Marcão passou a oferecer cursos de fotografia. Formava turmas e usava o ambiente livre para ensinar as técnicas para seus alunos. Costumava fazer imersões na região do rio Croa e na Serra do Divisor – os lugares mais belos para fotografar a floresta em nosso Acre. Parte da safra de novos fotógrafos e fotógrafas do Acre foi formada pelas mãos do mestre Marcos Vicentti.
Daquele aluno acanhado no curso de jornalismo, transformou-se em professor. Formou uma geração de jornalistas e fotógrafos – incluindo este aqui que vos escreve. Marcão deixa um legado riquíssimo na fotografia amazônida. Talvez não tenha recebido o devido reconhecimento nacional por nós, do Acre, sempre estarmos na periferia e sermos sempre colocados às margens. Mas isso eu posso dizer: ele está entre um dos maiores e melhores nomes do fotojornalismo amazônico. O seu nome já está na história.
Um bom descanso, camarada!
Seguiremos aqui com seu legado, de levar luz (a photo) ao obscuro, ao invisível.