OBITUÁRIO: ENNIO CANDOTTI

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Um pouco da história de relação de um ítalo-brasileiro que se fez caboclo e seus encantos com a Amazônia

Ennio Candotti: uma vida dedicada à ciência, à pesquisa e à cultura da Amazônia (Foto: Jeiza Russo)

Neste texto especial para o Varadouro, a jornalista manauara Rosiene Carvalho fala sobre a trajetória de um dos mais importantes nomes da ciência no Brasil: o físico Ennio Candotti. Sempre de forma cordial, Candotti concedia entrevistas para Rosiene em seu programa Exclusiva, na rádio BandNews Manaus. Idealizador do Museu da Amazônia, o Musa, que contribuiu para fortalecer a divulgação científica e pesquisas sobre a Floresta Amazônica. Ennio morreu dia 6 de dezembro, mas o seu legado está enraizado – assim como as raízes das centenárias árvores que Candotti tanto lutou para manter como devem estar: em pé.



Dos varadouros de Manaus


“Não desistam! A floresta é ouro. Precisamos aprender a metalurgia do ouro. Sem essa metalurgia ou exportando essa metalurgia seremos sempre expropriados. E a floresta não é apenas um sorvedouro de carbono. Ela é muito, muito mais que isso. É a história da humanidade, da vida no planeta, que está armazenada nesses seis milhões de quilômetros quadrados.” Com esse apelo, o cientista Ennio Candotti encerrou a entrevista concedida ao programa Exclusiva, da rádio BandNews Manaus, no dia 19 de novembro de 2021. Ao exortar a todos e a todas que o ouviam, acenou com um tchau e um sorriso.

Na entrevista, Candotti desenhou a importância do investimento em pesquisa científica e a produção de conhecimento na e sobre a Amazônia. Essa sempre foi a conduta de Ennio em qualquer ambiente em que se encontrasse. Naquele 19 de novembro, posicionou-se sobre o negacionismo que levou Manaus, a capital mais populosa da região Norte, a dois colapsos do sistema de saúde durante a pandemia de covid-19. “A ciência é um imunizante à devastação e é veículo de manutenção da floresta e desenvolvimento de suas populações”, disse Candotti.

Aos 81 anos, com mais de 50 anos dedicados à ciência – e ao menos 15 morando na Amazônia, com base em Manaus – o físico Ennio Candotti morreu no último dia 6 de dezembro, em plena atividade intelectual e física. O velório ocorreu na sexta-feira, dia 8, no Museu da Amazônia, idealizado e fundado por ele.

A causa da morte não foi divulgada pela família. O corpo de Ennio Candotti foi cremado. O pesquisador deixa o filho, o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e sociólogo Fábio Magalhães Candotti, e a esposa, a física Maria Elisa da Costa Magalhães. Ennio Candotti nasceu em Roma, na Itália, e ainda criança se mudou com os pais para o Brasil, em 1952.

Segundo nota da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), trazendo consigo um livro que havia ganhado de presente do avô “Este Mundo Grande e Terrível”, cuja autora, Ginestra Amaldi Giovene, foi pioneira na divulgação científica em seu país de origem.

Ennio Candotti mantinha uma agenda completa de compromissos e de sonhos para realizar. Participava ativamente de reuniões presenciais e virtuais, em vários pontos do país, onde apresentava o seu pautão/plano de ação: o desenvolvimento do conhecimento científico na Amazônia, a utilização inteligente do potencial institucional que a Amazônia dispõe. Familiares, amigos e funcionários do Musa relatam que, quando estava em Manaus, subia diariamente a torre de 42 metros do local.

Ao longo da sexta-feira, a comunidade acadêmica, instituições de pesquisa, familiares, amigos, admiradores e funcionários do Musa, emocionados, se despediram do pesquisador com palavras de reconhecimento à sua dedicação à ciência, à democracia e à Amazônia, em seu velório em Manaus e por meio de várias publicações na internet. A vida estudantil e acadêmica de Ennio foi escrita por meio de instituições de ensino públicas brasileiras como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a Universidade do Estado do Amazonas (UEA ), além da Ufam.

Exaltado com um dos mais incansáveis e ativos defensores da política científica do Brasil, Ennio Candotti presidiu por quatro mandatos a SBPC – 1989-1991, 1991-1993, 2003-2005 e 2005-2007. Segundo nota de pesar da entidade, Candotti foi o único, em mais de 70 anos, a liderar por quatro vezes a representação máxima da pesquisa e da ciência brasileira. Da SBPC, por seus relevantes e destacados serviços à ciência, tornou-se presidente de honra, em 1999. No mesmo ano, ganhou o prêmio Kalinga, concedido pela Unesco em função da atuação para a popularização da ciência. Em 2002, ajudou a fundar a União Internacional de Divulgadores Científicos, com sede em Mumbai, na Índia.

De acordo com o relato da professora Marilene Corrêa, Ennio Candotti foi importante na refundação da Fundação Padre Anchieta, organização do governo paulista responsável pela gestão da TV Cultura, um dos mais importantes veículos de comunicação pública do Brasil.


Uma voz em defesa da democracia

Candotti recebe Lula no Musa, durante a campanha de 2022 (Foto: Ricardo Stuckert)

Atuante do campo democrático, na década de 1970, Ennio Candotti se posicionou contra políticas de governos militares e, nesse período, se aproximou da SBPC. Candotti conduziu e articulou com a comunidade científica e organizações sociais “o primeiro pedido de impeachment contra um presidente acusado de corrupção”.

Em 2022, em evento pró-democracia e a floresta, o Musa recebeu o então candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que nas trilhas do museu, dançou com indígenas, tirou fotos com árvores centenárias e se comprometeu com projetos de desenvolvimento que não representassem os mesmos danos que a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, construída durante os governos petistas.

Na ocasião, recebeu das mãos de Ennio Candotti um manifesto chamado “Recado das Árvores” que falava sobre os mais de 300 milhões de anos de serviços prestados à vida no planeta e a revolta com a ingratidão do “desumano mundo dos humanos”. O pesquisador liderou movimentos para criação de processos de institucionalização da ciência no Brasil, como o Ministério de Ciência e Tecnologia, e a expansão da rede de Fundações de Amparo à Pesquisa por todos os estados brasileiros, como lembrou Marilene Corrêa, em discurso durante o velório, em nome da SBPC Amazonas.

Candotti envolveu-se de corpo e alma para liderar uma nova frente do desenvolvimento da política científica brasileira: aproveitamento e investimento nos institutos de pesquisa e tecnológicos já implantados por toda a Amazônia e integração do conhecimento científico com outros países da Bacia Amazônica.

“No interior, na Amazônia inteira, tem 300 campi das universidades federais e estaduais. Isso é formidável! Isso se implantou há 15 anos. Eu ainda era jovem (sorriu). E hoje está dando fruto. Só que essas pessoas que estão no interior e poderiam fazer uma revolução na Amazônia precisam de ciência, de saúde, de internet e de estrutura para fazer funcionar o todo”, afirmou o presidente do Musa em entrevista no Museu Goeldi, em Belém, no dia 8 de agosto, em entrevista à coluna de política da rádio BandNews Manaus.

Na ocasião, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação anunciara investimentos da ordem de R$ 3,4 bilhões entre 2024 e 2026 no programa Mais Ciência na Amazônia. Candotti reconhecia ser um importante passo, mas cobrou promessas antigas da ordem de R$ 10 bilhões anuais. “Precisamos formar gente: engenheiros, físicos, químicos, antropólogos, sociólogos, sanitaristas, jornalistas. A Amazônia é muito grande. Essa tarefa de formar gente ainda está longe de ser completa”, destacou na mesma entrevista.

Em outra entrevista, na Semana de Meio Ambiente, ao programa Exclusiva da rádio BandNews Manaus, em 2022, Ennio Candotti reforçou que a região precisava de 100 vezes mais formação em todas as áreas de conhecimento, porque o processo de desenvolvimento da Amazônia passava por um momento de desenvolvimento social.

Antes, em 2021, em outra entrevista ao Exclusiva, ele lembrou que: “nunca foi pensado um sistema de saúde na Amazônia que não fosse apenas uma cópia do sistema de saúde do sul, com ecossistemas completamente diferentes, com culturas diferentes. Como pode, em pleno século 21, a arquitetura das casas no interior não deixar as pessoas menos vulneráveis às cheias? A cultura amazônica não foi ainda pensada com suas peculiaridades, como amazônica”.

Uma ignorância que desmata

Para Candotti, o desmatamento avança na Amazônia por ignorância de quem devasta e do desconhecimento da população que aqui vive sobre o valor da floresta em pé. “Ninguém desmatava quando a borracha era um item importante na economia da região. Hoje, se desmata por pura ignorância. Por não ter alternativa”, afirmou em 2022 ao programa Exclusiva.

“A própria sociedade amazonense nunca foi informada devidamente do valor, do tesouro, do patrimônio que encontramos nessas terras. Quando digo a sociedade, não digo os que moram em prédios de dez andares, estou dizendo os povos que habitam o interior e as periferias das cidades e aqueles que dizemos estar mal informados ou por darem ouvidos às informações falsas ou terraplanismos, a cloroquina, etc. Falta a atenção para uma Amazônia, hoje desprezada, senão teríamos hoje uma sociedade revoltada com as queimadas”, declarou durante palestra virtual na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2021.

O empenho em formar uma sociedade mais próxima do conhecimento científico se materializou por meio da criação da revista científica “Ciência Hoje” e “Ciência Hoje para crianças”, além de sua versão na Argentina “Ciência Hoy”. Segundo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Candotti foi editor da revista entre 1982 e 1986.

“Precisamos formar gente: engenheiros, físicos, químicos, antropólogos, sociólogos, sanitaristas, jornalistas. A Amazônia é muito grande. Essa tarefa de formar gente ainda está longe de ser completa.”
Ennio Candotti



Em sua gestão na SBPC, vários encontros nacionais e regionais foram realizados nos estados da Amazônia. Em um deles, penso que em 2004, fiz minha primeira importante entrevista, ainda como universitária do curso de Jornalismo na Ufam, e tive o primeiro contato com o professor Ennio Candotti. Em quase 20 anos, o entrevistado sempre me causou impressões de respeito, generosidade e de estar muito à frente da atualidade. Um semeador de inquietações, um prospector de aliados, por toda parte.

No encontro da SBPC em Belém, em 2007, surgiu a ideia de criar na Amazônia um museu e centro de desenvolvimento de pesquisa a partir de diálogos com a então primeira secretária de Estado de Ciência e Tecnologia do Estado do Amazonas, Marilene Corrêa.

O pesquisador conheceu museus que tentavam reproduzir aos visitantes, na Europa, o contato com a Floresta Amazônica. “Visitei alguns museus na Europa que tinham salas específicas para reconstituir a Amazônia. Mas era uma caricatura. Tem as plantas, não tem os insetos. Não tem formiga. Imagine: você entrar numa floresta que não tem os ritos. Não é floresta”, disse Candotti, em entrevista à BandNews Manaus, em 2021. Prestes a se aposentar, Ennio Candotti se mudou com toda a família para Manaus. Em 2009, nasceu o Museu da Amazônia. O italiano, naturalizado brasileiro e cientista renomado dentro e fora do país, abriu mão da aposentadoria para, nas palavras do filósofo e professor da Ufam José Alcimar, se fazer caboclo.

O regente de uma orquestra na floresta

Ennio Candotti nas escadaria da torre de observação do Musa, um dos centros de estudos mais importantes sobre a Amazônia (Foto: Ricardo Oliveira)


“Me convidaram para vir dirigir a orquestra. Estava para me aposentar, me aposentei da física e vim dirigir a orquestra. Na época, eu tinha 70 anos e acreditava ter 20. Descobri que os 70 são diferentes dos 20, e aqui estou tentando pagar a conta do fim do mês”, relatou, com o seu bom humor de sempre, a realidade de manter um museu sobre a Amazônia a céu aberto.

No dia 21 de agosto de 2019, recebeu o título de cidadão do Amazonas, proposta do então deputado estadual e amigo pessoal Serafim Corrêa (PSB). “Essa homenagem me sensibiliza muito. Sinto também que me atribui mais responsabilidades naquilo que estou construindo. Agora, sou parte da grande família do Amazonas. A Assembleia do Amazonas me deu o direito de criar raízes nessa terra”, declarou o cientista durante a homenagem.

A pandemia foi um período delicado para o Musa, que sobrevive do caixa de suas visitações e doadores. O museu, para evitar ser vetor de transmissão da covid-19 em Manaus, ficou de portas fechadas por dez meses e enfrentou sérias dificuldades para manter a folha de pagamento e a manutenção do espaço, em que pese seus gastos mensais serem, na ocasião, da ordem de R$ 120 mil a R$ 150 mil.

Órgãos e gestores públicos no Amazonas se mantêm alheios à importância do museu, que representa a fronteira entre a devastação e a floresta em Manaus, no Corredor Ecológico Reserva Florestal Adolpho Ducke Puraquequara. O Musa recebe 70 mil visitantes por ano, sendo o segundo local mais visitado por turistas na cidade, no entanto, as ruas e avenidas que levam ao museu, que fica na periferia da capital amazonense, têm péssima manutenção e pouco reforço na segurança pública.

O roteiro de turismo da cidade não inclui o Musa e os próprios manauaras não conhecem o traço amazônico de Manaus, em que pese haja programas de incentivo à visitação do museu pensados por Candotti.

Em artigo sobre o “Viver juntos no Musa”, Ennio Candotti descreve o local como um “museu vivo” com suas árvores centenárias e diversidade de formas de vida que guardam a história natural. No texto, ele destaca que o Musa foi estruturado para oferecer em suas trilhas, exposições e na torre de 42 metros para observação da floresta a experiência com as plantas, os pássaros, insetos, flores e polinizadores. O contato próximo permite aos visitantes a percepção dos personagens concretos da floresta que “tocam juntos a música da vida, da reprodução, da seleção e da adaptação, da conservação e da mudança”.

O Musa, segundo o físico, também possibilita o contato com um museu imaginário, onde os personagens esperam ser descobertos para poder existir. “Oferecemos ao viajante, visitante atento, trilhas e observatórios encantados, que o aproximam a personagens da floresta que buscam ser descobertos, vistos, para existir no museu. Personagens à procura de um autor”, disse. A famosa frase de Guimarães Rosa “As pessoas não morrem, ficam encantadas” ganha especial significado com as visões do professor Ennio Candotti sobre a floresta e o Musa, e a explicação que pedi ao tuxaua e vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Enock Taurepang.

Segundo o líder indígena, a expressão “se encantou” usada por povos originários para descrever a morte do corpo físico é uma forma de dizer que, aqueles que aqui lutavam ao lado deles, “se transformaram em algo maior, e que de alguma forma continuam a ajudar e olhar por nós” no mundo espiritual dos encantados da floresta. “O mote do projeto Musa é encantar para descobrir os personagens da floresta e, com eles, “viver juntos”, humanos e não humanos, a aventura do conhecimento”, descreveu Ennio Candotti. (Colaboração de Rosiene Carvalho para o Varadouro)

Museu da Amazônia, o Musa, em Manaus, criado por Ennio Candotti (Foto: Divulgação)













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