O desconhecido cinema acreano

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“Núpcias Vermelhas” – o filme, e ele apontou: “É aquela latinha azul ali”


O filme “Noites Alienígenas”, ganhador do Festival de Gramado neste ano de 2023, mexeu com o brio da sociedade acreana ao ser lançado como primeiro longa-metragem inteiramente produzido no Acre; e chegar às telas nacionais e de países da América do Sul até ameaçar produções do Sudeste e do Sul que poderiam concorrer ao Oscar norte-americano. O lançamento em julho, no shopping Via Verde, de Rio Branco, encheu duas salas com plateia heterogênea, e avançou para as redes sociais na Internet causando estranheza. O diretor Sérgio Carvalho, que nasceu em São Paulo, estudou cinema no Rio e há 20 anos vive no Acre, não parou mais de viajar com a película debaixo do braço.

Vi e gostei do filme, mas preciso fazer uma correção no que tem saído na mídia sobre o mesmo: o primeiro longa metragem feito no Acre não foi “Noites Alienígenas”, mas, sim, o “Núpcias Vermelhas”, do estreante cineasta boliviano Jimmy Barbosa (na verdade, um ousado cinéfilo dono de uma casa exibidora em Rio Branco que tinha dinheiro em caixa).

Provavelmente, pouca gente pode dizer que já viu algum filme com esse título; menos ainda que tenha como ator o galã do Cinema Novo Geraldo Del Rey, baiano premiado no Festival de Cannes (1962) com “O Pagador de Promessas”, e destaque no polêmico filme de Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Tais arrojos não eram pro bico da cinematografia acreana, que se deixava enredar por cenas ultrapassadas. No próprio “Núpcias”, teve a participação de um figurante nascido em Brasileia, na fronteira com a Bolívia, Mario Lima, mais conhecido por publicar artigos acadêmicos nos jornais locais. O figurante, que mais tarde se tornaria professor de Economia na Unicamp (SP), faz uma ponta como cawboy de maus bofes, vestido a caráter, dá tiros e assopra no cano do colt, fazendo malabarismo para enfiar a arma no coldre.

TESTEMUNHA

Outro cineasta acreano daqueles tempos (década de 1970), Adalberto Queiroz, esteve no lançamento do filme em Rio Branco, em 1975, e afirma que “foi um tremendo fracasso”. Veterano das dificuldades de fazer cinema no Acre, ele, Adalberto, também ousou fazer um longa-metragem, em 1973, mas operou com equipamento super-8: “Fracassou meu casamento”, que parece ter premonição no título, teve destino pior: a película foi apreendida pela Polícia Federal e recuperada somente em 1979, assim mesmo porque o autor foi a Brasília, e insistiu em procurá-la nos porões da Censura Federal. Lá, na companhia do censor encarregado que insistia que o filme não existia, numa montanha de latas com rolos de 35 mm (bem maiores) ele apontou: “é aquela latinha azul ali”.

Se tivesse ouvido o conselho de Adalberto Queiroz, Jimmy Barbosa não teria caído em desgraça com seu “Núpcias Vermelhas”. Em 1974, Adalberto conseguiu rodar seu segundo longa “Rosinha, a Rainha do Sertão – com equipamento 35 mm do Jimmy, mas tendo roteiro mais simples. Afinal, sua maquininha super-8 nem som acoplado tinha.

Era preciso gravar as falas e ruídos em gravadores comuns, para depois mixar a trilha sonora nas imagens. Nessa tarefa, aliás, era um craque: para fazer o som de trote de cavalo, ele usava os dedos magros e compridos de sua mão direita; e o som da água, mexendo com as duas mãos o produto numa bacia de dar banhos em recém-nascidos. Seus companheiros da firma Ecaja (Estúdio de Cinema Amador de Jovens Acreanos) – Teixeirinha e Toni Van – completavam a trilha: Tocavam violão, operavam o projetor, pensavam os roteiros.

Adalberto Queiroz disse numa entrevista gravada na Biblioteca da Floresta, de Rio Branco, que em 1973 procurou obter ajuda do governador Francisco Wanderley Dantas, considerado o governador dos bois, mas ele logo o despachou num estilo bovino: “Você quer um conselho, vai plantar batatas!

A Ecaja produziu nestes últimos 50 anos um acervo enorme, produzidos desde os mais remotos instrumentos de gravação, compondo uma memória de filmes curtos, documentários e cobertura de eventos diversos. Não tem batatas no seu acervo.

DESFECHO

Já a história de Jimmy Barbosa termina mal. Ele teria gasto boa parte da venda de suas terras – herdadas do pai – no segundo distrito de Rio Branco, e ainda ficou devendo a equipe contratada. Quando menos esperava, a turma de São Paulo (para fazer par com Geraldo Del Rey ele contratou uma atriz pouco conhecida, mas exigente, Ideli Costa, que atuara no filme sobre Waldik Soriano “Paixão de Um Homem”) chegou e tomou tudo: estúdio, equipamento e também o filme fracassado, que sumiu do mapa. Jimmy Barbosa permaneceu afirmando a quem perguntava sobre o filme, que sua obra-prima está bem guardada em La Paz, capital da Bolívia.



Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.

Contato: almanacre@gmail.com




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