
O Carnaval é uma batalha espiritual e o corpo é o lugar de excelência onde ela é travada. A começar pelo modo como a gente se adorna. Eu, particularmente, prefiro muita pele de fora, cores vibrantes e brilho, muito brilho. Mas há quem use máscaras, fantasias e tantas possibilidades nada básicas que a gente encontra pelas ruas. Eu acho que dentre as tantas coisas que o Carnaval é, uma das que eu mais gosto é essa brecha no tempo em que a gente se permite ser uma outra pessoa e também o mais honesto de nós mesmas de uma só vez.
Bota fé? Não tenho pretensões de me aprofundar acerca da importância histórica, social, cultural, econômica e política que o Carnaval tem no Brasil. Pessoas muito mais competentes que eu já o fizeram e elas devem ser lidas – sugiro Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Luiz Antonio Simas. Aqui, quero abrir um varadouro pra falar do Carnaval que vivi neste ano de 2025, e quero fazer isso por vários motivos, mas principalmente pra tentar mantê-lo vivo na memória por mais tempo.
Antes de o Carnaval começar oficialmente, figuras públicas se pronunciaram em redes sociais reduzindo-o a algo qualquer que atenta contra a moral cristã e os bons costumes – seja lá que tipo de chorume isso signifique. As trombetas da batalha já se entoavam e entendo que muito em razão por parte do Carnaval mainstream de escolas de sambas sudestinas pautarem seus desfiles em temáticas ligadas à religiosidade de matriz africana e originária, a exemplo de Unidos de Padre Miguel, Imperatriz Leopoldinense e Unidos do Viradouro no Rio de Janeiro.
Não é um Carnaval que costumo acompanhar, mas as imagens das pessoas e carros alegóricos tomando a avenida com sua fé e alegria são fortes e impactantes, e se tem uma coisa que incomoda quem se sente dono deste país desde sempre é a classe trabalhadora feliz na rua.

Pela sétima vez, vivi um Carnaval em Pernambuco, mais especificamente em Olinda. A primeira vez depois que me mudei de mala e cuia para o Acre e também a primeira vez que tive essa percepção do Carnaval como uma batalha que decidimos travar com nossos corpos – e isso é Acre pulsando em mim do outro lado do país.
As estatísticas estão apostando que mais de 4 milhões de pessoas brincaram o Carnaval de Olinda em 2025 – um pouco menos do que a população de Brasília e Fortaleza juntas! São dias em que a gente vê a terra virar mar diante dos nossos olhos: mar de gente! De modo que pra se movimentar pela cidade é preciso entender de maré. É preciso observar o sentido da correnteza, saber quando é hora de mergulhar e quando molhar o pé é o máximo que podemos fazer.
Sobretudo é preciso saber com quais correntes marítimas queremos fluir, com qual cardume a gente vai se aventurar a tudo o que pode acontecer em uma ladeira olindense habitada por bonecos gigantes, Bois, Caboclos de Lança, La Ursas, Papangus e outros seres extraordinários. E, claro, também é necessário conhecer sua “praia” porque nadar o dia inteiro é cansativo e, quanto mais os anos passam, o Carnaval parece crescer e as praias vão ficando mais lotadas e a gente vai tendo de procurar outras mais distantes e espaçosas, porque os anos também pesam sobre o corpo, mas assim a gente vai conhecendo cantinhos que ainda não tinha ido e se sentindo um pouco mais parte de tudo.
Gosto dessa metáfora marítima pra pensar a aglomeração de pessoas no Carnaval porque as águas simbolizam o universo das emoções e dos sentimentos e se a gente pensar o tanto de fundo do mar que a humanidade ainda não foi capaz de desvendar, talvez se aproxime da dimensão do quanto de camadas conscientes e inconscientes de desejos, emoções, expectativas e realizações que um mar de gente em pleno Carnaval envolve.
Nessa brecha de tempo de ser e não ser quem a gente é, há essa batalha pelo uso do espaço, e estou falando mais do que empurrões e pisões no pé nos blocos e shows. A primeira caipirinha que tomei em Olinda me foi vendida por um ambulante visivelmente indignado. Os vendedores ambulantes pagam pelo ponto de venda e os valores são variados a depender do movimento da rua em questão, mas este ano muitos vendedores pagaram por um local e tiveram de desmontar suas barracas pra vender em outro conforme o registro demarcado pela prefeitura, e era o caso dele, que na sexta de Carnaval teve de rearmar sua banca em um ponto mais distante e, consequentemente, menos lucrativo.
Quem acha que o Carnaval é só farra não está atento. As contradições do mundo do trabalho pulsam e a disputa no corpo também se dá entre a energia pra trabalhar no momento de maior pico da economia na cidade e a disposição para aproveitar a festa, afinal, o Carnaval compõe o espírito de muitos pernambucanos e esse amor pela festa e pela cultura é uma das coisas que mais me encantam.
Então são os ambulantes, os garçons e garçonetes, seguranças, cozinheiras, faxineiras, garis e os caras que carregam gelo (Oh o pesado, oh pesado!) fazendo malabarismo com o tempo e o corpo pra garantir a renda e ainda aproveitar o Carnaval como der. E não dá pra não mencionar os principais responsáveis pela limpeza das ruas-marés: os catadores de materiais recicláveis na sua incansável luta pra juntar latinhas e garrafas que gente como eu vai secando pelo caminho.
Vi mais de um balançar suas sacolas de modo acompanhar a melodia das orquestras a partir da sonoridade produzida por latinhas e garrafas se esbarrando nas sacolas sacolejadas. Se isso não é uma batalha espiritual na disputa entre o ganha pão e o bem viver, eu não sei o que é!

O Carnaval é uma batalha. Nem só de música, frevo, dança, êxtase, gozo e riso se faz um Carnaval. Tem violência física, tem violência institucional, tem assédio, tem estupro, roubo, furto e, neste carnaval, teve até tiroteio com 7 pessoas feridas no show do João Gomes. No dia seguinte, apesar de tudo isso, havia um mar de gente insistindo em estar na rua, entre estranhos, tecendo um sentimento cada vez mais raro entre nós nativos deste século XXI: confiança.
Confiar que o outro é responsável pela integridade física do meu corpo assim como eu sou pela dele. E percebendo o fluxo das correntes humanas e onde elas pretendem desaguar, “decidi” estar entre o encontro dos bois na Rua da Boa Hora, seguir o Boi Cara de Sapo e partilhar das ofertas de frutas e cachaça de Dona Dá aos brincantes. Uma multidão de corpos reproduzindo gestos, sons e afetos tal qual fizeram os corpos dos quais vieram, mantendo viva a dança da memória e da cultura originária, afro-diaspórica e cristã em batalha e em comunhão, e como é bonita a dialética!
Agradeci por ter um corpo e por ele poder movimentar toda sorte de prazer que o milagre da vida provê na ciência de que não há espírito sem corpo neste plano. Se a depressão, como dizem, se apega ao passado e a ansiedade ao futuro, o Carnaval quebra essa linha temporal em espirais coloridas do agora em tudo tanto, exaustão e êxtase, horror e furor, jugo e arrebatamento.

Em cada metro quadrado daquela cidade histórica, o medo disputa lugar com a curiosidade, o cansaço com a alegria, a frustração com o encantamento, a miséria com a dignidade. E assim também não é o Acre? E assim também não somos o ano inteiro? Eu acho que o Carnaval deixa todas as marés que nos conduzem mais em evidência, é um tempo de possibilidades mágicas, de suspensão do cotidiano e de comprovação empírica de que a energia de nosso corpo não deve se mover apenas para o trabalho e a cafonice que é a escala 6×1; de que podemos e sabemos estar em multidão de forma harmoniosa e gentil; de que temos potência criativa para inventar outras formas de viver e de que se temos potência física para seis dias ininterruptos de Carnaval, temos para muito mais. E é justamente aí que o espírito dos donos deste país tem o sono atormentado, eles sabem do que o espírito do povo é capaz – e não é pouca coisa.
