Você acaba de abrir um texto sobre amor. Não estranhe se respingar admiração em suas mãos. É no território das grandes amizades que quero te levar pra caminhar hoje. Quero falar de meu amigo Paulo, o Paulinho. Meu irmão de barco no axé. Minha maior companhia aqui nas bandas mais ocidentais do país.
Antes mesmo de mudar pro Acre de mala e cuia (mais cuia do que mala), eu e Paulinho conversamos pelo site couchsurfing, em que eu já havia descolado uma hospedagem gratuita pra mim e mais três amigos quando viemos fazer o primeiro concurso do curso de direito da Ufac em Cruzeiro do Sul (aliás, eterna gratidão dona Iraci e seu Pedro!). Lembro de ver o perfil de Paulo e pensar “esse menino é muito Fortaleza” – meu jeitinho de sentir que já o conhecia. Eu estava procurando apartamento pra alugar, de preferência para dividir já que a grana era curta, não consegui e a vida seguiu.
O apartamento que acabei encontrando na técnica que os incas utilizavam, o boca a boca, era praticamente ao lado da cafeteria em que Paulo trabalhava na época. Quando fui a primeira vez lá, ele logo me reconheceu e conversamos rapidamente. Pouco viciada em café e doces como sou, ia lá várias vezes. Um tanto para sustentar o vício, um pouco pra fugir do apartamento sufocante de apenas uma janela em que eu morava e muito para enganar a solidão de “cearense braba” recém-chegada que o atendimento de Paulo minava. Quem conhece sabe do que tô falando, a energia e o sorriso absurdos desse ser humano.
Não éramos muito próximos, mas no ano crucial de 2022, o Paulo brilhava no meu olhar. Enquanto observava muitas pessoas de esquerda, principalmente homens brancos, com medo das consequências de vestir uma camisa vermelha, lá estava Paulinho: com suas vestes vermelhas, shorts curtos e seu icônico boné do maior e mais importante movimento social da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras sem Terra (MST). Paulo, com seu corpo na encruzilhada do racismo e da homofobia, jamais ensaiou esconder quem era e nem a ideologia que carrega. Coragem, minha gente, não é para qualquer um (a).
Sem muita conversa entre nós, acabamos por nos reencontrar no Centro Eclético Passarinho Branco, quase na fronteira com Guajará (Amazonas), espaço de encontro da cultura ayahuasqueira em Cruzeiro do Sul. Sem saber, pedimos para fazer parte desse Centro na mesma época, quando ele passou a me dar carona para ir e voltar ao Passarinho Branco, mesmo nossas casas sendo distantes uma da outra e a dele extremamente próxima ao nosso destino.
Foi também nesse lugar de reencontro (em que vivemos tantas intensidades e acabamos por construir nossa amizade) que ele contou a mim e a outro amigo que o que ele queria fazer nessa vida era fotografar. Eu não lembro exatamente das palavras dele, mas acho que a imagem do seu rosto iluminado pela fogueira e por essa decisão radical nunca se apagarão da minha memória. Não é todo dia que a gente vê uma pessoa bater o pé e dizer que vai correr atrás do seu sonho, né?
Como cantaria Siba “toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar” e de lá até aqui, o mundo andou, óia! Paulo Henrique Costa, cruzeirense do pé rachado, comedor de azeitona com sal, formado em engenharia agronômica pela Universidade Federal do Acre, campus Floresta, com mestrado em Ciências Ambientais pela mesma instituição e, atualmente, assistente de comunicação na Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ), é também fotógrafo.
Mas não qualquer fotógrafo, um fotógrafo com reconhecimento nacional e internacional. De lá pra cá, Paulo tem realizado exposições de suas fotografias em vários eventos e ambientes locais, foi premiado pelo IV Festival Photothings 2024, único premiado em sua categoria e a outra única pessoa amazônida já premiada pelo festival. Na terceira edição do Festival Fotodoc (Festival de Fotografia Documental) realizado pela Panamericana Escola de Arte e Design, Paulo conseguiu a façanha de ficar entre os finalistas com sua fotografia “A mulher e o rio”, que, aliás, é uma das minhas favoritas. Ele também está entre os sete artistas que farão parte da exposição “¡Mi tierra tiene palmeras y palmares, donde cantan los zorzal!” na Cidade do México, México. Muito chique, né? E é só o começo.
É o Acre brilhando por todo lugar e, como diria Caetano, “gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”. Não pra morrer sufocada em fumaça tóxica e entediada pela conversa pra boi dormir que floresta virar pasto significa uma vida mais digna. O Acre é mais que isso, o Acre é arte, resistência e insurgência, tecnologia e ciência, é brilho. E de brilho o Paulo entende.
O seu amor pela fotografia tem semente no seu amor pelo Acre, um chão que se torna brasileiro a partir das demandas do imperialismo colonial por extração de borracha, moendo gente e deitando floresta abaixo. Um território que, apesar de tudo, compreende em si uma das maiores biodiversidades do mundo e culturas e idiomas originários e ribeirinhos que resistem e se reinventam sob o crescente terrorismo socioambiental que abocanha este país. A poética de Paulo floresce sob essa ambivalência amazônida, assim como os ipês, que durante os meses sufocantes de seca e queimadas, inundam nossos olhares de beleza em terra arrasada. E é só o começo, não me canso de repetir.
Te celebro, meu amigo! Saúdo teu existir e tua arte. Obrigada por tanto. Obrigada por tu ser tu e dividir conosco teu olhar único sobre nossa casa no mundo.
(Pra acompanhar o trabalho de Paulo e ficar sabendo do lançamento de seu primeiro fotolivro artesanal “Vidas Amazônidas: retratos de um Acre que resiste”, basta seguir o seu perfil no Instagram @phcosta_fotos
Paulo também é colaborador do quadro Retratos Amazônicos, mantido por este Varadouro, cujo objetivo é valorizar e garantir visibilidade ao trabalho de fotógrafas e fotógrafos amazônidas.
Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos. Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.
leonisia.mouraf@gmail.com