O assassinato dos igarapés de Manaus
Capital do Amazonas tem investimento orçado em R$ 34 milhões para manutenção dos igarapés da cidade neste ano; recurso é 32% menor do que o destinado no ano passado
Por Gave Cabral, especial para a Abaré
Conteúdo reproduzido por Varadouro em parceria
A história de Manaus se confunde com a história da ocupação de seus igarapés. Em todas as zonas da cidade, por onde quer que se passe, os braços d’água fazem parte da paisagem. Edificada sobre o aquífero Alter do Chão, a capital do Amazonas abriga cinco microbacias hidrográficas: Educandos, São Raimundo, Puraquequara, Tarumã Açu e Tarumã Mirim, formadas por 166 igarapés, segundo mapeamento do Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), da prefeitura de Manaus. Na maioria dos igarapés, no entanto, as águas não são mais cristalinas. O que antes era espaço de lazer e pesca se tornou local de descarte de lixo, esgoto e poluentes químicos.
O grupo de pesquisa ‘Química Aplicada à Tecnologia’, Universidade do Estado do Amazonas (UEA), é responsável pelo monitoramento regular das cinco microbacias hidrográficas em 55 pontos georreferenciados da capital, um trabalho feito há oito anos. Os dados ajudam a analisar a qualidade da água ao longo dos igarapés monitorados.
Pelas análises dos pesquisadores é possível dizer que as microbacias mais degradadas são justamente as que passam pela área urbana: São Raimundo e Educandos, contaminadas pelo despejo de esgoto e rejeitos químicos e biológicos. Nelas, estão localizados alguns dos braços d’água mais conhecidos da capital amazonense, como o Igarapé do Gigante, nas zonas centro-oeste e oeste, Mindú, na zona centro-sul, Quarenta, na zona sul, Franco, na zona oeste, Mestre Chico, na zona centro-sul, e Cachoeira Grande, na zona oeste, todos com pontos de poluição visíveis em seus cursos.
Apesar da importância deles para os manauaras, os investimentos públicos na limpeza, saneamento e conservação não cresceram nos últimos anos. Segundo dados de gestão financeira disponíveis no portal da transparência da prefeitura, foram destinados R$ 51,4 milhões de reais à manutenção dos igarapés, em 2023. Isso é quase o mesmo valor que foi destinado oito anos antes, quando o município gastou R$ 52,6 milhões, em 2015. Já para o ano de 2024, de acordo com a Lei Orçamentária Anual (LOA), que apresenta a programação dos gastos municipais durante todo o ano, está previsto um investimento de R$ 34,6 milhões, que ainda não foi completamente executado. O valor é 32% menor em relação ao ano anterior.
Os valores são referentes às despesas liquidadas — quando há confirmação dos serviços prestados — pelas secretarias municipais de Infraestrutura (Seminf) e de Limpeza Urbana (Semulsp), responsáveis pelos serviços.Sob a tutela da Seminf ficam as obras de saneamento, ou seja, a conservação e manutenção do leito e canais dos cursos d’água naturais, enquanto a Semulsp é a responsável pelaretirada de lixos sólidos, com ações continuadas de despoluição.
Pela série histórica disponível no portal da transparência, os gastos públicos da prefeitura com os igarapés oscilou nos últimos anos. Em 2016, o orçamento total liquidado caiu de R$ 52,6 milhões para R$ 11,7 milhões, um desfalque de 77%. O valor destinado à limpeza e ao saneamento dos cursos d’água foi se recompondo até chegar em R$ 29,1 milhões, em 2019.
Em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19, o montante liquidado registrou nova queda, desta vez para R$ 12,9 milhões. O orçamento dos igarapés voltou a crescer em 2021, mas caiu novamente em 2022. Apenas em 2023 o valor investido pela gestão municipal voltou ao patamar de 2015, totalizando R$ 51,4 milhões. Não há dados públicos suficientes para traçar uma série histórica anterior a 2015.
A sobrevivência dos que lutam
Por outro lado, ainda existem microbacias com níveis aceitáveis de qualidade de água, é o caso das bacias do Puraquequara, Tarumã Açu e Tarumã Mirim, que se concentram na zona rural da cidade. Em meio a um cenário desfavorável, o igarapé Água Branca, na zona centro-oeste, desponta como um dos últimos trechos de água limpos na área urbana. Localizado em uma Área de Proteção Permanente (APP), ele faz parte da bacia do Tarumã Açu e sofre com forte pressão do desmatamento e da especulação imobiliária. Por isso, mobiliza um grupo de pessoas em defesa de sua preservação.
O jornalista Jó Fernandes Farah preside a organização Mata Viva, que monitora e denuncia crimes ambientais na região do Água Branca. Ele atribui à conservação da área de floresta no entorno como uma das principais razões pelas quais o igarapé permanece limpo atualmente. “Um igarapé sem floresta de margem está condenado”, sentencia.
Segundo ele, o Água Branca produz 4 bilhões de litros de água por ano para a microbacia do Tarumã Açu, além de ser lar para mamíferos ameaçados como o sauim de coleira e o tamanduaí. “Mas o avanço da cidade sobre as florestas de APP do Água Branca é inexorável, ele continua acontecendo”, lamenta.
Farah destaca a comunicação pelas plataformas digitais como uma aliada para a mobilização popular em defesa dos braços d’água. “Existe um monitoramento da sociedade civil feito nas redes sociais. É lá que denunciamos as agressões [contra os igarapés] e a pressão vem para que aquela coisa seja estancada”, reforça.
Desde janeiro deste ano, a prefeitura de Manaus passou a instalar ecobarreiras, estruturas flutuantes que permitem o bloqueio do escoamento dos resíduos, em cursos d’água da capital. Hoje, cinco estruturas já estão em funcionamento — nos igarapés Beira-Rio, no bairro Coroado; Mindu, no Parque 10; Franco, na Compensa; Franceses e Sapolândia, na Alvorada —, mas a meta da gestão municipal é chegar a 33 ecobarreiras nos próximos anos.
As ações fazem parte do programa ‘Anjos da Floresta’, lançado em outubro de 2023 com o objetivo de despoluir e restaurar as bacias dos igarapés da cidade, incluindo suas nascentes, no prazo de 10 a 15 anos, através de parcerias com organizações públicas e privadas.
“É um projeto que visa recuperar os ecossistemas ambientais de Manaus, que ao longo do tempo foram degradados. Nós temos mais de cem igarapés na cidade, a gente não tem como fazer todos ao mesmo tempo. Então, à medida que for dando certo, pretendemos levar a outros igarapés de Manaus”, explica José Arnaldo Grijó, presidente do Conselho Municipal de Gestão Estratégica.
Igarapés podem voltar à vida
Em seminário realizado em março deste ano pelo Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM), o professor Sérgio Roberto Bringel, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), sustentou que a revitalização dos igarapés passa pela universalização do saneamento na capital. “A cada dólar investido em saneamento, o poder público economiza sete dólares em saúde pública. Uma cidade sem tratamento de esgoto é uma cidade assassina”, desafia.
A universalização do esgoto em Manaus, no entanto, parece distante. Em 2024, a capital do Amazonas caiu três posições no Ranking do Saneamento, divulgado anualmente pelo Instituto Trata Brasil. Hoje, a cidade se encontra na 86ª colocação entre os 100 municípios mais populosos do país, com apenas 26,1% da população atendida com coleta de esgoto e 21,8% com tratamento de esgoto.
Segundo a concessionária de saneamento da capital, atualmente, 600 mil pessoas contam com o serviço de tratamento de esgoto disponível em Manaus, com a meta de universalizar o acesso até o ano de 2033, quando a empresa prevê que o saneamento chegue a mais de 90% da população, atendendo ao Plano Nacional de Saneamento Básico.
A universalização do saneamento, nesse contexto, contribuiria não apenas para a diminuição de resíduos sólidos, mas também para redução do esgoto descartado em rios e igarapés, o que pode melhorar os índices de qualidade da água nas microbacias que cortam a grande Manaus e reduzir as contaminações por doenças de veiculação hídrica, como diarreia e hepatite A.
O gerente de recursos hídricos do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), Daniel Borges Nava, acredita que é possível revitalizar os igarapés que cortam a capital. “Nós tornamos os nossos igarapés esgotos a céu aberto, mas é possível mudar isso a partir de um novo posicionamento da nossa sociedade, que se incorpora a uma cidadania pelas águas”, defende.
Nava, que também é doutor em Ciências Ambientais e Sustentabilidade pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), defende que um processo de recuperação das microbacias hidrográficas de Manaus só será efetivo se for resultado do esforço conjunto entre os órgãos públicos e a sociedade civil, o que ele chama de governança em rede.
“O sistema público não consegue sozinho abocanhar todos os desafios de uma recuperação dos igarapés, mas juntamente com os movimentos sociais que estão ali militando diretamente na recuperação nós conseguimos efetivamente transformar a realidade que nós temos como desafio”, completa.
No mesmo sentido, o professor Sergio Duvoisin Junior aposta em ações de educação ambiental. “Conscientizar a população de que cada pessoa tem uma participação efetiva na qualidade do corpo hídrico é fundamental. As pessoas têm que perceber que os seus atos é que causam a degradação do corpo hídrico e isso vai desde o descarte correto do lixo até os costumes diários como uso de detergente em excesso ao lavar louça ou o uso consciente da água”, ressalta.