RESISTÊNCIA INDÍGENA

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Marco temporal: Após vitória no STF, luta dos povos indígenas é por resistência aos próximos ataques do agro

Povos da Amazônia enfrentam investidas do agronegócio (Foto: Alexandre Cruz-Noronha – Secom/ Gov-Ac)


Pelo visto, ainda há muito o que fazer para que a vitória dos Povos Indígenas seja comemorada com toda dignidade possível num tempo em que seus territórios são invadidos por criadores de gado e plantadores de grãos. A ganância e a sanha impiedosa do agro têm mentido sucessivamente, a ponto de o brasileiro esquecer a própria “descoberta” do País na costa baiana.


Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho


O Superior Tribunal Federal (STF) alcançou, quinta-feira, 20, a maioria de votos (9 a 2) para a tese de que o Marco Temporal é inconstitucional. Já o Senado Federal analisa o projeto de lei que fixa o Marco Temporal em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. E daí?

“Foi uma vitória muito importante, não só para os povos indígenas: acho que uma parcela muito grande do povo brasileiro esteve junto nessa luta para que a gente vencesse essa guerra”, afirmou quinta-feira, 21, Francisco Pyãko Ashaninka. Ele é membro da Aldeia Apiwtxa no Acre, e coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj).

Desde os anos 1970, na Amazônia Brasileira, notadamente no Acre e em Rondônia, a grilagem praticada por fazendeiros em terras indígenas resulta em atos violentos e em mortes.

O PL 2.903/2023 foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) no mês passado e agora espera votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em seguida, caberá ao Plenário votar a decisão final. O relator na CCJ é o senador Marcos Rogério (PL-RO).


Vitória em delicado momento

“Dá para ver claramente que o Marco Temporal representa os interesses daqueles que veem o Brasil não com a sua história, como um lugar para o futuro. Talvez estejam no Brasil de passagem, porque realmente negam a história deste País, a existência dos Povos Indígenas, e querem transformar o Brasil num negócio capitalista não moderno, mas atrasado, predador”, lamentou Francisco Pyãko.

Nem bem fora anunciado o resultado da votação no STF, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR) corria para os holofotes para alardear “uma barbárie no campo.”

Além de muitos dos seus representados invadirem terras indígenas, o parlamentar argumentou “que não há previsão de indenização para produtores que perderem suas terras.” Cruel nessa história é que, a (mau) exemplo dos madeireiros do norte do País, agricultores endinheirados do centro-oeste e do Sul fingiram ignorar que o lugar onde plantaram era território que não lhes pertencia.

Exagerado em tenebrosa retórica, Lupion se esqueceu de dizer que grande parte da classe que defende, com o aval do Congresso Nacional, prorroga, todo ano, débitos de financiamentos bancários, sangrando bancos oficiais e prejudicando a pequena clientela.

Essa “garantia para os produtores” por ele já requerida em vídeos nas redes sociais tem evidente caráter duvidoso.

“O momento é delicado, devido à situação climática e o Planeta chegando ao ponto de não retorno”, alertou Francisco Pyãko ao Varadouro. No entanto, se mantém esperançoso: “Se a sociedade como um todo sair de dentro de seus quadrados e começar a olhar para o mundo e a agir, dá para a gente vencer uma luta que é mais global. Quero dizer que estamos muito felizes, mas a luta não acabou: virão outras, porque os ataques aos direitos dos Povos Indígenas e os desafios aos seus direitos continuam: queimaram agora um casal de indígenas Guarani, então haverá sempre aqueles que nunca irão respeitá-los.”

Referiu-se Sebastiana e Rufino, casal de rezadores do povo Guarani e Kaiowá, foram encontrados mortos em meio às cinzas da casa onde moravam segunda-feira (18), na aldeia Guassuty em Aral Moreira, na linha de fronteira entre Brasil e Paraguai, a 359 km de Campo Grande (MS).

“Nesses últimos anos, o STF tem sido o ponto de equilíbrio, o que tem garantido a Justiça; é o firme guardião da Constituição Federal, mantendo este País com a sua Democracia, dando espaço para todos, cumprindo a Lei e fazendo os Direitos serem respeitados”, assinalou.

“Indenizações dos dois lados”

Ivaneide Bandeira Cardoso, Neidinha, fundadora da Kanindé Etnoambiental, disse que o resultado da votação trouxe duas mensagens “muito claras”: “Uma diz que Constituição Federal precisa ser cumprida; que o respeito aos direitos indígenas é um compromisso do Supremo Tribunal e podemos confiar no cumprimento desses direitos; outra, no sentido de ficarmos muito atentos para saber o que vem depois disso.”

Exemplo disso, ela explica, é a proposta de indenização feita pelo setor rural “em benefício dos produtores de boa fé.” “Mas isso nos faz refletir: quando isso acontecer, será que haverá um levantamento a respeito do que foi destruído da terra indígena? É porque quando fazem corte raso para a construção de curral e casas de fazenda também se destrói a natureza. Será que os indígenas serão indenizados pelas madeiras nobres tiradas, por tudo o que foi destruído? Eu defendo que haja, porque do jeito que indenizariam aquilo que chamam de benfeitorias à terra, as benfeitorias dos indígenas são a sua floresta”, questionou.

“Se a pessoa tirou madeira nobre, derrubando e destruindo até igarapés, matou animais, fez um tanto de coisas, eles serão obrigados a restaurar tudo o que destruíram e devolver do jeito era esse ambiente aos indígenas? Eu acredito, então que tem que se pensar em indenizações dos dois lados.”



Séculos de injustiça

Vera Olinda, coordenadora executiva da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), disse que a decisão do STF é “uma vitória histórica dos povos indígenas.” “A tese do Marco Temporal é inconstitucional e o STF trouxe senso histórico, responsabilidade e segurança institucional e jurídica para todo o País.”

Para ela, o resultado da votação “é um peso a menos na permanente batalha dos povos indígenas para manter seus direitos.”

“Precisamos ecoar no Brasil que os Povos Indígenas reconquistaram seus territórios com muita luta e que hoje têm o que sempre lhes pertenceu; que carregam séculos de injustiça, mas ainda assim mantém um precioso patrimônio de florestas em diferentes biomas, especialmente na Amazônia, que tem a maior floresta tropical do mundo e guarda a maior riqueza da sociobiodiversidade”, apelou.

Acrescentando: “Toda a sociedade brasileira precisa entender que isso não se associa a áreas de produção por lucro desenfreado, que detona e esgota recursos naturais; essa lógica tem que ser superada.”


Karipuna

“Nós, Povo Karipuna, estamos sofrendo grande ameaça de madeireiro, e isso faz oito anos. Estamos sendo impactados: impacto social, ambiental e cultural”, lamentou André Karipuna ao tomar conhecimento do resultado da votação.

“Fizemos várias denúncias, mas o momento ainda é difícil porque somos poucos; prosseguimos na luta e na resistência contra essa situação, mesmo assim estamos preocupados porque somos minoria”, alertou.

Madeireiros vêm repelando árvores nobres da T.I. Karipuna, fato denunciado diversas vezes por esse povo e pelo ex-bispo da Diocese de Guajará-Mirim, dom Geraldo Verdier. A Polícia Federal tem relatórios da situação. Estima-se que desde nos anos 1980, mais de 60 mil metros cúbicos de madeira de lei saíram criminosamente da T.I. Karipuna.

Da mesma forma, na beira da estrada interna na T.I.Karitiana, no município de Porto Velho, há marcas da presença de ladrões de madeira. Até zombam daqueles indígenas, atirando em placas ali colocadas pela antiga Funai.

Invasores no interior da TI Karipuna, flagrados em fevereiro de 2019. (Foto: Chico Batata/Greenpeace)


Resistência

Povos Indígenas demonstram que estão fortes e resistentes, comenta ainda Francisco Pyãko Ashaninka: “Nós não desistimos, e se houve algum momento em que fomos ameaçados de extinção, por nossa decisão própria hoje não somos mais; não vamos sair nem desaparecer do Brasil, vamos seguir vivos e fortes lutando, e temos demonstrado isso nos momentos difíceis.”

Apelou agora no sentido da proteção a todas as classes sociais: “Se estiverem unidos, todos os segmentos dessa sociedade irão defender a sustentabilidade. O que está no papel já é muito importante. Essa vitória no STF tem que estar no espírito e na alma de cada brasileiro, porque nós teremos ainda muitos confrontos por conta dos interesses capitalistas de pessoas com o pensamento de que estão aqui de passagem e não como legítimos brasileiros”, previu.



O QUE ELES DISSERAM

“Duas vitórias: no ano em que se cria o Ministério dos Povos Indígenas, derruba-se o Marco Temporal” – Deputada Célia Xakriabá (Psol-MG)

“A decisão do STF deve ser respeitada. Queremos que o projeto seja analisado também pela Comissão de Meio Ambiente” – Senadora Leila Barros (PDT-DF)

“Não me parece de bom tom nós confrontarmos uma declaração de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal com um projeto de lei que flagrantemente será inconstitucional” – Senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP)

“A nossa Constituição acha que foi 5 de outubro de 1988 e a Constituição é clara quando ela considera terras indígenas aquelas ocupadas até aquele momento da promulgação. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e por eles habitadas em caráter permanente” – Senador Plínio Valério (PSDB-AM)

“O PL 2.903 visa resolver os conflitos hoje existentes através da previsibilidade jurídica garantida pelos critérios objetivos, que criam mecanismo de pacificação com reconhecimento da propriedade rural, alinhado aos 119,8 milhões de hectares de terras indígenas, o que demonstra que a consolidação do Marco Temporal não prejudicará os usos e costumes indígenas, dado que já existe um amplo e espaçoso território já demarcado” – Senador Zequinha Marinho (Podemos-PA)

“É uma matéria que agride a Constituição Federal e o seu espírito cidadão; é preconceituosa, porque é dirigida sob medida contra os povos indígenas; é um erro histórico quando falamos da Amazônia e combate à desigualdade. É um projeto como cheio de vícios de constitucionalidade” – Senador Humberto Costa (PT-PE)

Pelas redes sociais, os senadores Beto Faro (PT-PA) e Fernando Contarato (PT-ES) comemoraram a decisão do STF.

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