A década de 90, no Acre, vibrava com os tons de uma era que se movia entre a poeira das ruas e o eco das florestas. Foi nessa época que conheci Marcus Vicente, ou Marcão, como gostávamos de chamá-lo. Ele trabalhava no jornal Página 20, um refúgio para as palavras inquietas e imagens vivas, onde ele logo se destacaria, não só pelo talento, mas pela humanidade generosa que o caracterizava. Entre uma pauta e outra no cotidiano da vida, nossa amizade nasceu e cresceu, firmando-se com o tempo como um laço inquebrantável, tão forte quanto sua paixão pelo jornalismo.
Em 2002 ou 2003 – os anos se misturam na memória como as cores de um pôr do sol –, seguimos juntos para o Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em Natal, no Rio Grande do Norte. Naquela viagem, entre tantos momentos marcantes, houve um instante que se eternizou. Assim que chegamos ao hotel à beira-mar, perto da Praia de Ponta Negra, Marcão, com os olhos brilhando como os de uma criança, me confidenciou seu desejo mais imediato: “Quero conhecer o mar.”
Aquele pedido veio carregado de uma simplicidade poética que só os sonhos antigos possuem. Marcão, o homem da câmera sempre pronta, o jornalista incansável que havia registrado a vida em cada canto do Acre, nunca havia sentido o toque do oceano. Mesmo sendo noite, escura como a tinta de jornal recém-impresso, saímos do hotel rumo à praia. O vento trazia o cheiro salgado e as ondas soavam como um convite.
Chegando à beira da água, fiz a apresentação mais simbólica que poderia imaginar: “Marcão, esse é o mar. Mar, esse é o Marcão.” Ele sorriu como se tivesse reencontrado um amigo de longa data. Encheu as mãos com água salgada e provou para comprovar que o sonho havia se realizado. Ficamos ali por um tempo, apenas ouvindo o vaivém das ondas, um homem e o mar, em silêncio, como se uma conversa secreta se passasse entre eles. Voltamos ao hotel para jantar, mas aquele momento nunca saiu de minha memória.
O Marcão tinha essa característica rara, quase mítica, de transformar instantes comuns em eternidades. Sua presença era uma mistura de intensidade e calma, o que transparecia tanto nas suas fotos quanto nas suas palavras. Ele não apenas registrava a vida através da lente; ele a vivia, a sentia profundamente, como quem se conecta com cada fragmento do mundo à sua volta.
Em abril deste ano, Marcão me chamou para uma conversa. Ele queria escrever sua biografia, deixar suas memórias registradas, contar sua história para o futuro. Conversamos longamente sobre isso, mas deixamos para “um tempo mais à frente”, como ele mesmo disse. O tempo, no entanto, nos traiu. Hoje pela manhã, recebi a notícia de que Marcão havia partido, e a sensação de vazio foi imediata. Ele, que sempre esteve tão presente, agora se tornara ausência.
Lembro-me de nossas conversas, do Marcão caminhando pelas ruas de Rio Branco, câmera a tiracolo, olhos atentos ao movimento das pessoas, sempre buscando capturar aquilo que os outros não viam. A fotografia para ele não era apenas um ofício; era uma maneira de contar histórias, de tocar o intangível. O silêncio das florestas, o calor do asfalto, a dor e a alegria humanas, tudo isso se refletia nas suas imagens, como se ele fosse capaz de traduzir o invisível.
Marcão também era um homem de lutas. Como presidente do Sindicato dos Jornalistas do Acre (Sinjac), nunca se furtou a brigar pelos direitos da categoria, acreditando que o jornalismo não é apenas uma profissão, mas uma vocação que precisa ser respeitada. Ele sabia que as histórias que contamos têm peso e valor, e por isso lutou para que cada jornalista pudesse exercer sua função com dignidade.
Mas, mais que isso, ele era amigo. Um amigo que sabia ouvir, rir junto, aconselhar e dividir as cargas do mundo. Sua vida transbordava generosidade, fosse com os colegas de redação, fosse com a família ou com os alunos que ensinava em suas aulas de fotografia. Sua paixão pela arte de capturar imagens o levava a querer ensinar, a querer dividir o conhecimento, como se o mundo precisasse, urgentemente, ver através das suas lentes.
Agora, ao relembrar todos esses momentos, me pego pensando na grandiosidade de sua simplicidade. Como ele conseguiu transformar uma vida marcada pelo esforço, pela luta e pelo trabalho em algo maior, algo que tocava a alma. E, talvez, essa seja a maior lição que Marcão nos deixou: viver é uma arte, e ele, com sua câmera e seu coração generoso, soube vivê-la plenamente.
Ao imaginar que agora ele está no “andar de cima”, penso que, onde quer que esteja, Marcão deve estar segurando uma câmera, pronto para registrar o que há de mais belo naquele novo horizonte. O mar que ele tanto quis conhecer talvez se estenda agora sob seus pés, sem fim, como as histórias que ele soube tão bem contar. E nós, aqui embaixo, ficamos com as memórias, com as imagens, e com a saudade imensa de um amigo que foi, sem dúvida, um dos melhores seres humanos que já conheci.
Hoje, ao me lembrar daquele instante em que apresentei o mar ao Marcão, não posso deixar de pensar que ele, de alguma forma, foi uma extensão daquele oceano. Gigante, misterioso, profundo. Sua vida foi um movimento constante, como as ondas, que vêm e vão, levando consigo pedaços de tudo que tocam. Marcão deixou sua marca não apenas na areia da praia naquela noite em Natal, mas nas vidas de todos que tiveram a sorte de cruzar seu caminho. Marcus Vicente, o Marcão, agora faz parte do mar.
Pitter Lucena é jornalista e escritor