Restos da vida ferroviária repousam no museu e na memória de sobreviventes
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
A aposentada Elzenir Gomes Felício da Costa, 86 anos, maranhense de Bacabal, é guardiã de um pedaço das memórias despedaçadas da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a mais lendária ferrovia do Planeta no século passado. Durante a 2ª Guerra Mundial, ela teve valor estratégico para o Brasil, operando plenamente para suprir o transporte de borracha, utilizada no esforço de guerra aliado. Em 1957, quando ainda havia um intenso tráfego de passageiros e cargas, a ferrovia integrava as 18 empresas formadoras da Rede Ferroviária Federal.
– Eu escrevia à máquina, usava também a caligrafia, e as outras também – ela conta, lembrando o cotidiano da equipe de datilógrafas da EFMM.
Prédio do Relógio, 1955: naquele ano, as mulheres eram tarefeiras no escritório central. A produção ditava a permanência ou a recusa à continuidade dos contratos de trabalho.
– Era um livro grande de anotações: duas vezes por semana chegavam trens (da região de Guajará-Mirim especialmente) lotados com cargas de pelas (bolas) de borracha e bois engaiolados. O movimento de passageiros era lindo.
Na sala de sua casa no Conjunto Marechal Rondon, em Porto Velho, Elzenir viaja no túnel do tempo para relembrar aquele período do trem ligando a Capital do Território Federal do Guaporé a Guajará, na fronteira brasileira com a Bolívia – 366 quilômetros.
– Passaram seis meses, meu contrato acabou, eu pensei: vão me mandar embora, mas a surpresa me deixou muito feliz, porque fui efetivada como funcionária federal. Fiz a prova para melhorar minha função, e de escriturária passei a oficial de administração.
No século passado, quando iniciadas as obras, alguns escriturários se notabilizaram como redatores de textos históricos. Frank Kravigny, por exemplo, publicou The Jungle Route (A rota da selva), quando havia voltado aos EUA. Ele relata o convívio com doenças tropicais; má gestão dos responsáveis pela construção, entre outros problemas.
Graças ao seu livro foi atribuída a Dana Merril a autoria de mais de duas mil fotografias da ferrovia. Frank assinala: “Dana Merril, apesar de ter sido contratado pela construtora da EFMM para registrar a construção da obra, foi muito além da colocação de trilhos, vigas e pontes.
Merril evidenciou as difíceis condições de trabalho que culminaram com a morte de operários, o fluxo migratório e a devastação da região. Suas imagens serviram não apenas como testemunho da história, mas viraram referência pela técnica fotográfica.”
O fim, nas mãos do 5º BEC
Em 1972 o coronel Oliveira, do 5º Batalhão de Engenharia de Construção (BEC), assumiu a erradicação da ferrovia sob comoção das famílias dos ferroviários. Os que restavam foram todos aposentados.
O então Ministério da Viação e Obras Públicas e o Ministério da Guerra transferiu-a para o 5° BEC, que recebeu ordens para iniciar a paralisação do trem. No entanto, o próprio Exército demonstrou interesse em mantê-la funcionando, pois ela representava o único meio de transporte existente entre os dois maiores polos urbanos da região (Porto Velho e Guajará-Mirim).
Além do mais, serviria de apoio para a construção da rodovia BR-364, no trecho entre Porto Velho e Abunã, e a BR-425, no trecho Abunã e Guajará-Mirim. Com a conclusão da rodovia, o trem perdeu o sentido. Durante muitos anos os usuários dessas rodovias passaram sobre esses trilhos ao longo do caminho.
Homenageada
No dia 21 de julho de 2024, Elzenir inteirou 68 anos de casada com o contabilista aposentado Nilo Costa, 92. Mostra o quadro de fotos na parede, fala dos filhos, lembrando também da sede da EFMM: “A 4ª Divisão funcionava no Prédio do Relógio, a 2ª na Estação Central, no pátio de manobras.
Nos anos 1970, o prédio era sede do Fórum da Comarca; nos anos 1980, sede do Banco do Estado de Rondônia; atualmente, Prefeitura Municipal.
Este ano Elzenir recebeu homenagem do Governo do Estado e voto de louvor da Assembleia Legislativa. Nilo Costa trabalhou lá no período do governador Joaquim Araújo Lima (1955), até o apito final no governo João Carlos Marques Henrique (1972). Foi funcionário da área administrativa:
– Tempo em que o diretor de recursos humanos era Vitório de Puglia; o setor de pessoal chefiado por Américo Paes; e o diretor geral da Madeira-Mamoré, Valter Baivert. Tínhamos intervalo para o lanche – lembra-se Nilo.
A EFMM ficou para sempre em sua vida: durante uma manobra de trens, seu pai, o guarda Raimundo Felício da Costa, morreu atropelado por uma locomotiva. Tinha 55 anos e deixou dez filhos. Nilo foi também proprietário da Livraria Luz e Vida. Ele e Elzeni criaram os filhos Eude e Euza. Elzenir era irmã do ex-vereador e deputado constituinte Amizael Gomes da Silva.
“Ainda há muito a organizar, e essa tarefa exige o máximo rigor com a importância e os acontecimentos na vida do trem”, comenta o diretor do museu, Normando Lira.
A Madeira-Mamoré foi a primeira grande obra de engenharia civil dos Estados Unidos fora daquele país após o início das obras de construção do Canal do Panamá. Aquela experiência de enfrentamento às doenças tropicais que atingiram parte dos mais de 20 mil trabalhadores de 50 diferentes nacionalidades levou o engenheiro e empresário Percival Farquhar a convocar o médico sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz, que visitou o canteiro de obras e saneou a região.
Dessa estrada de ferro que garantiu ao Brasil a posse da fronteira com a Bolívia, possibilitando a colonização de vastas extensões do território amazônico ocidental no início do século passado, restam sucatas de locomotivas, aparelhos, móveis e documentos – cerca de trezentas peças – expostos no museu recentemente reaberto pela Prefeitura Municipal e confiado à empresa Amazon Fort.
Tudo estava paralisado desde a grande cheia do Rio Madeira em 2014. As peças que restaram foram guardadas no Prédio do Relógio e o mais pesado (cofres de aço, rodas de trem e restos de vagões) transferido para um grande depósito no Bairro Lagoinha pelo ex-prefeito Mauro Nazif.
Em 2011, o Governo de Rondônia condecorou in memoriam com a comenda Marechal Rondon, o empresário Percival Farquhar e os 876 americanos que comandaram a construção da ferrovia.
O Museu reaberto
A atual concepção do museu agrega personagens da história de Porto Velho. Mãe Esperança Rita da Silva, por exemplo, nascida em maio de 1888 no Quilombo Areia Branca (MA), chegou aqui entre 1910 e 1912, em companhia do marido Raimundo Silva, que pretendia trabalhar na EFMM.
Na condição de afro religiosa, fundou com o bispo católico Dom João Batista Costa a primeira capela de Santa Bárbara. Um painel conta que foi necessário ela se aproximar da religião católica para evitar a resistência aos cultos afros.
Ela criou os festejos de Santa Bárbara por volta de 1912, tradição que permanece até os dias de hoje. Salvou 30 mulheres da escravidão na antiga Vila de Santo Antônio do Madeira, no século passado. Sua casa era um grande abrigo. Recebia pessoa sem acesso à assistência médica. Era parteira e benzedeira. Fundou o Bairro Mocambo e conseguiu retirar muitas mulheres da prostituição.
Outro painel apresenta a maranhense nascida em Codó Ceci Lopes Bittencourt, a conhecida Chica Macaxeira. Ela chegou para trabalhar em Porto Velho no auge do ciclo da borracha, em 1910.
Considerada uma das pioneiras e responsável pela difusão da prática do culto afro-brasileiro (tambor de minas) em Porto Velho, dona Chica fundou o primeiro terreiro de Porto Velho, conhecido por São Benedito, no Bairro Mocambo. Esse terreno foi invadido, os seguidores sofreram preconceito discriminação e perseguições devido à sua escolha religiosa.
Dona Chica prestou relevantes serviços da competência do poder público, acolhendo crianças abandonadas ou órfãs, em estado de vulnerabilidade. Nascida em 1895, ela viveu 84 anos e faleceu em Porto Velho no dia 4 de dezembro de 1979.
SAIBA MAIS
● Construída entre 1907 e 1912. A partir dela surgiu a cidade de Porto Velho, que se formou a partir de construções de residências de operários da construtora. Em 1907, chegaram: 446 operários; em 1908 foram 2.450 e, em 1909, 4.500 trabalhadores. Comerciantes e mascates se instalaram fora do muro que demarcava os domínios da construtora.
● O Governo de Getúlio Vargas a considerava estratégica para o controle da fronteira no extremo-oeste brasileiro. A EFMM foi a única via de comunicação entre as regiões do noroeste do Mato Grosso e do oriente boliviano com o Rio Amazonas e a capital federal. Em sua direção, o tenente Aluízio Ferreira aproveitaria para estender seu poder a esta parte da Amazônia.
● Uma de suas primeiras ações foi a criação de três contingentes militares de fronteira acompanhados de colônias em pontos estratégicos da região. Ferreira, coronel, foi o primeiro governador do extinto Território Federal do Guaporé (novembro de 1943 a fevereiro de 1946).
● A conclusão da ferrovia fez surgir o povoado de Esperidião Marques, atualmente Guarajá-Mirim. Porto Velho e Guajará-Mirim foram os primeiros núcleos de povoamento a se desenvolver na região. Em Guajará atracavam os barcos carregados de borracha procedentes do vale do Guaporé e Mamoré, tanto dos afluentes do lado brasileiro como também do lado boliviano.
● Ao longo da ferrovia, surgiram os povoados de Jaci-Paraná, Mutum-Paraná, Abunã, Iata e Vila Murtinho, onde se localizavam estações da estrada de ferro, pontos de abastecimento dos trens (lenha e água). Ao lado da estação, foram construídas casas de operários e barracões para a compra de látex e venda de mercadorias. Mas esses povoados pouco se desenvolveram.
● Em 25 de maio de 1966, depois de 54 anos de atividades, a EFMM teve sua desativação determinada pelo então Presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco. A ferrovia deveria ser, porém, substituída por uma rodovia, a fim de que não se configurasse rompimento e descumprimento do Acordo celebrado em Petrópolis, em 1903. Tal rodovia materializou-se nas atuais BR-425 e na BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim.
● Em 10 de julho de 1972 as máquinas apitaram pela última vez. A partir daí, o abandono foi total e, em maio de 1979, o acervo começou a ser vendido como sucata para a Companhia Siderúrgica de Mogi das Cruzes (SP), o que foi evitado pelo ex-governador Jorge Teixeira de Oliveira, diante da indignação da sociedade e de instituições rondonienses.
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