Fabio Pontes
Dos Varadouros de Rio Branco
A SENTENÇA da juíza Carolynne Souza de Macedo Oliveira, da Primeira Vara Federal Cível de Rio Branco, de tornar nulo o edital (130/21)) lançado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), em dezembro de 2021, cujo objetivo era contratar empresa para análises de viabilidade técnica para a construção da rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, no Acre, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali, pode ser vista como a pá de cal para a empreitada da classe bolsonarista acreana. Uma empreitada que, por sinal, nasceu já quase morta ante as pressões internas e externas contrárias.
A decisão é resultado de uma ação civil pública (ACP) movida por um conjunto de entidades dos movimentos ambientais e indígenas do Acre, incluindo a organização não-governamental SOS Amazônia e a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj). Em dezembro de 2021, uma liminar desta mesma Vara da Justiça Federal já tinha anulado o edital. Após recurso do Dnit, o TRF-1 anulou a medida da primeira instância, e o processo de contratação deu continuidade.
Agora, quase 17 meses depois, a Justiça volta a se manifestar com uma decisão mais robusta. Ao contrário de uma liminar, proferida num regime de urgência, a sentença de Carollynne Macêdo, proferida no último dia 14 de junho, foi dada a partir de uma profunda análise da situação, ouvindo todas as partes envolvidas e garantindo o amplo direito à defesa dos réus. Além disso, o veredicto ocorre em meio a um novo ambiente político do país, com a reconstrução da agenda ambiental por parte do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A decisão representa uma importante vitória na luta dos movimentos sociais do Acre contra este projeto bancado, politicamente, pelo governo bolsonarista de Gladson Cameli (PP), e outras lideranças políticas e empresariais do estado. Tal projeto, obviamente, também tinha sido encampado pelo governo federal de então, liderado por Jair Bolsonaro (PL) e sua agenda eficaz de deixar a boiada passar sobre a pauta de proteção amazônica.
Tanto assim, que o Dnit lançou à revelia de quaisquer estudos prévios ou consultas às comunidades impactadas o edital que foi contestado na Justiça, cuja crítica principal é exatamente o atropelo ao que prevê as legislações nacionais e internacionais que tratam de impactos sociais e ambientais ocasionados por obras desta magnitude. O interesse em tocar o empreendimento era tão grande que havia articulações, em Brasília, para que o licenciamento fosse tocado não pelo Ibama, mas pelo Imac, o Instituto de Meio Ambiente do Acre, desde 2019 sob as batutas da classe política bolsonarista local. Este arranjo se mostrou uma afronta. Afinal, o traçado da rodovia passa por terras indígenas e unidades de conservação federais, além de ser uma região fronteiriça. Portanto, de ampla e única responsabilidade dos órgãos federais.
Agora, com a nova sentença, a magistrada Carolynne Macêdo Oliveira determinou ao Ibama a não iniciar o processo de licenciamento ambiental “enquanto não for realizada consulta prévia, formal, livre e informada, nos moldes em que determina a Convenção n. 169, da OIT, aos povos indígenas e comunidades tradicionais, direta ou indiretamente,afetados”. Também determina que a licença não seja emitida sem que sejam feitos os estudos, por parte da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), de referência 64 – Isolados do Igarapé Tapada – sobre a possível presença de populações em isolamento voluntário no traçado da rodovia.
Uma das principais preocupações dos impactos ocasionados pela abertura da estrada são os povos indígenas isolados. Como de notório conhecimento, a fronteira Brasil-Peru, nos vales do Juruá e Javari, tem uma das maiores concentrações populacionais de indígenas isolados do mundo. A região também é dona de uma das maiores biodiversidades (vegetal e animal) do planeta.
A decisão da Justiça Federal tem um forte simbolismo por estancar (num primeiro momento) este que é, sem dúvidas, um dos projetos mais ameaçadores para a preservação da Floresta Amazônica – e isso de ambos os lados da fronteira. As pressões acontecem tanto do lado brasileiro quanto do peruano, sobretudo pela exploração madeireira. A sentença também vem num novo momento político do país, em meio à reconstrução da agenda ambiental promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e sua ministra do Meio Ambiente, a acreana Marina Silva.
A pedra colocada pela Justiça no caminho da rodovia Cruzeiro do Sul-Pucallpa lembra um pouco o projeto de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. São situações e características bem diferentes. Aqui na nossa fronteira Brasil-Peru estamos nas cabeceiras das nascentes dos rios, enquanto lá no Amapá é onde o majestoso Amazonas se encontra com o oceano. Mas, do ponto de vista político, a situação pode ser igual. A diferença é que no Amapá, acredito eu, não haja um bolsonarismo tão reacionário consolidado no poder como temos no Acre.
Em ambos os casos o Ibama está no foco das atenções. A grande questão que fica é: o governo do presidente Lula continuará a assumir este empreendimento devastador para a Amazônia? O Dnit de Lula vai recorrer para anular a sentença de primeira instância? A classe política do Acre vai se mobilizar para fazer com que a rodovia saia do papel? O desgoverno de Gladson Cameli persiste com tal aventura? A minha sugestão é que a prioridade dela seja a reconstrução da BR-364 entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco, que ele e seu presidente Bolsonaro acabaram em quatro anos.
Para ser bem sincero, a construção de uma nova rodovia conectando o Brasil ao Peru não parece encontrar ecos entre a sociedade local. Não sabemos qual o interesse de nossa classe bolsonarista em sua defesa. Nós já temos uma conexão rodoviária com o país vizinho a partir da fronteira do Alto Rio Acre.
Portanto, falar que uma nova estrada é importante para a economia local é balela, já que não aproveitamos nem a que já existe. Ela também não trará benefícios ao Vale do Juruá. Muito pelo contrário. Uma rodovia naquela região tende a fortalecer as organizações criminosas que atuam no tráfico internacional de drogas. Uma estrada seria apenas para assegurar mais agilidade no transporte da droga, hoje feito por rios, igarapés e trilhas no meio da selva.
Portanto, acredito que a sentença da Justiça Federal é a pá de cal para um projeto que já tinha nascido morto. As pressões nacionais e internacionais são muito grandes. O próprio governo peruano também demonstrou não ter interesse pela obra. Com a retomada da agenda ambiental pelo governo Lula, que tem a Floresta Amazônica como uma de suas principais preocupações, é certo que já se pode engavetar a proposta da rodovia Cruzeiro do Sul-Pucallpa – pelo menos até a data de um eventual retorno da extrema-direita a Brasília.
Até lá, as comunidades ribeirinhas, extrativistas, de assentamentos do Incra, e em especial dos nossos povos indígenas – contactados e isolados – podem dormir e acordar tranquilas. Enquanto não houver a estrada (nem mesmo um projeto), a segurança destas amazônidas está garantida.
A aguardar as manifestações do governo Lula…
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