Justiça ao primeiro presidente do CNS

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Esqueceram de mim!

Na tarde de 17 de outubro de 1985, o seringueiro amazonense Jaime da Silva Araujo, alguns anos depois rebatizado de Tyryetê Kaxinawa, encantou estudantes, intelectuais e políticos de Brasília com a desenvoltura, poesia e graça com que anunciou a existência dos povos da floresta. Sim, ele emergiu como um duende das matas lendo poemas e rezando a “oração dos seringueiros” que ele mesmo escreveu, sendo aclamado presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) criado naquela ocasião.

Em meados de 2010, Tyryetê morava em Curitiba com apoio da antropóloga Mary Allegretti (amiga de Chico Mendes que acompanhou sua trajetória internacional) e aceitou um convite para vir colaborar com a Biblioteca da Floresta, um maravilhoso projeto que o PT criou, mas deixou virar sucata. Tyryetê estava animado e brilhou numa exposição de desenhos sobre a floresta, feitos com talento e sabedoria. Já nem queria voltar para Curitiba, manifestou a vontade de ficar morando no Acre, no abençoado calor do Norte.

Ninguém o ouviu, e ele, que se queixava de estar respirando apenas por um terço do pulmão, teve que voltar para o Sul e morrer de frio, no mesmo ano (23 de julho de 2010). Poucos ambientalistas e sindicalistas ficaram sabendo ou lamentaram essa perda enorme.

No começo de 2002, quando eu editava um jornal diário em Macapá (Folha do Amapá), o velho amigo e primeiro presidente do CNS apareceu por lá e tivemos uma longa conversa. Aproveitei pra saber de onde veio ao mundo e ele disse que era índio Potiguar de origem, tinha apenas 2 anos de nascido quando seu povo foi dizimado.

Criado por pais adotivos no Ceará, aos 19 anos veio para a Amazônia tornando-se pescador, castanheiro, embarcadiço, caçador e seringueiro. Perambulava pelos seringais do rio Madeira, no estado do Amazonas, quando o encontraram e o convidaram para o Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros (1985). Pela performance que demonstrou nesse evento, foi chamado pela Universidade Nacional de Brasília (UNB) para dar aulas de História da Amazônia. Mesmo sem formação universitária, lecionou durante um ano e meio.

Como presidente do CNS, Jaime fez palestras no Brasil e no exterior, reproduzidas em vários idiomas. Em 1989 lançou seu primeiro livro: “A Amazônia, o Seringueiro e a Reserva Extrativista” –traduzido para o inglês – se revelando nele um artista plástico inspirado. Após deixar a UNB, foi levado pela antropóloga Mary Allegretti para lecionar e pintar na Universidade Aberta, inaugurada no Parque Chico Mendes, na cidade de Curitiba.

Foi Mary quem o levou ao Amapá e nos apresentou. Impressionado com sua lucidez, pautei a minha filha Vássia, que era repórter da Folha do Amapá, para entrevistá-lo. O que segue são alguns trechos da entrevista. Dá dó pensar que Tyryetê morreu sem que os povos da floresta e os intelectuais que os representam não tenham prestigiado todo seu brilho.



ENTREVISTA


Folha – Fale como você reagiu ao ser convidado para o I Encontro Nacional dos Seringueiros.

Tyryetê: Na época eu lutava ao lado dos seringueiros do rio Madeira por nossa libertação. Eu era membro das Comunidades Eclesiais de Base, denunciava agressores e prometia: -Olha, nós vamos criar uma instituição para nos representar, não sei que dia, não sei que mês, não sei que ano…O Chico Mendes fazia o mesmo no Acre, como se tivéssemos conversado antes. Então visitei e conversei com as comunidade, após o que escrevi o primeiro roteiro para criação das reservas extrativistas. Este documento existe, foi escrito por mim. Depois pensei que ainda era pouco e escrevi a poesia “Tu e Eu”. Na véspera da viagem, ainda pensei que era pouco e escrevi o Pai Nosso do Seringueiro, que foi lido na minissérie Amazônia na TV Globo.

Folha – E como foi a experiência como presidente do CNS?

Tyryetê: Fui porta-voz dos seringueiros, praticamente no mundo inteiro. Fiz campanha sobre o meio ambiente na Europa, meus txtos foram reproduzidos por lá.

Folha – Você encarava isso com naturalidade?

Tyryetê: Sim. Eu sempre esperei por isso, porque tinha um sonho de menino. Todo menino é rei, não é? Então queria ganhar uma coroa, e essa coros, eu ganhei.

Folha – Como acaba de afirmar, você viajou muito. O que achou dos lugares que conheceu?

Tyryetê: Vou lhe dizer uma coisa: quando chego numa cidade como Berlim, Barcelona ou Nova York eu não vejo beleza. Acredite, pra mim é tudo feio e asqueroso. Agora você quer ver eu achar bonito é quando chego de volta, entrando na Amazônia. Quando olho a grandeza do rio, a gigante floresta, aí eu digo “Aqui é bonito”! Lá é bonito pra eles…

Folha – A vida na floresta melhorou com a organização dos seringueiros e a criação do CNS?

Tyryetê: As melhoras foram localizadas. A gente queria generalizar, mas o governo brasileiro não cumpriu o que prometeu: o repasse de recurso e tecnologia. E como surgiram muitas ONGs e os recursos foram fracionados, diminuiu o volume do dinheiro que entrava no CNS. A entidade não pôde mais ser uma escola de líderes.

Folha – Você se considera um líder nato?

Tyryetê: Eu me considero sim, porque não passei por nenhuma escola. Tudo eu aprendi na prática. Pra mim, a escola é o amanhã. Eu aprendi hoje, e amanhã falo de hoje; isso é uma grande escola para mim, o dia a dia. Quando falo sobre a defesa, qualidade e comercialização da piaçaba, é porque eu cortei piaçaba. Quando lhe falo sobre a castanha, é porque eu trabalhei com castanha. Quando lhe falo de copaíba é porque coletei copaíba. Quando lhe falo da malva e da juta é porque trabalhei com mal e juta. Quando lhe falo sobre a borracha é porque fui seringueiro.

Folha – E essa força de artista que você tem, de onde vem?

Tyryetê: Comecei muito jovem…eu escrevia com pedaços de pau. Eu morava num local onde muito areiae escrevia nela com um pedaço de pau. Depois eu ficava de pé, do lado e ia discursar o que eu tinha escrito. Devia ter uns 8 anos.

Folha – Hoje (1995) você continua sentindo como o menino que escrevia na areia?

Tyryetê: Continuo sonhando, sempre sonhando…porque a gente nascer velho e morrer com 100 anos, muito criança. Toos nós temos uma criança dentro de nós. Quando nós a matamos, nós nos tornamos cruéis. Ficamos individualistas e passamos a nã respeitar os mais os diritos dos outros. Mas enquanto essa criança está viva dentro de nós, nós temos um ponto de sensibilidade que nos leeva anos unir, pelo menos em alguns momentos, à condição de minoria dos outros, a somar com eles…





Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.

Contato: almanacre@gmail.com
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