TERRAS DESTINADAS

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Judiciário supervisiona reforma agrária diferente em Rondônia

Com a intermediação do Judiciário, Rondônia tenta amenizar os impactos de uma grave característica de sua formação: os conflitos fundiários (Foto: Divulgação)





Montezuma Cruz
Dos Varadouros de Porto Velho

O desembargador Gilberto Barbosa, corregedor geral do Tribunal de Justiça, uniu-se à Secretaria de Estado de Patrimônio e Regularização Fundiária (Sepat) do Governo do Estado e Rondônia, com o objetivo de estruturar uma equipe multidisciplinar de 35 a 40 profissionais para atuar na regularização fundiária em 52 municípios.

O esforço governamental desenvolvido neste estado amazônico ocidental ainda não desnudou o papel do misterioso Instituto de Terras de Rondônia (Iteron). O órgão vive um papel hamletiano: ser ou não ser. Existe e não existe. E ninguém dá a devida atenção para isso no governo que coleciona decretos de transparência, mas corre o risco de não explicar corretamente seus métodos para executar reforma agrária.

Tudo é esquisito e até misterioso, eis que o Iteron faz parte do organograma oficial, mesmo sendo a sua direção totalmente desconhecida pela população. Se o leitor consultar o portal do governo encontrará vazios: agenda e “quem é quem.”

Varadouro já denunciou essa situação, sem qualquer ressonância. Saiba mais a respeito.

Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça, desembargador Gilberto Barbosa (d), pediu às autoridades estaduais que chamem os prefeitos para contribuir com o trabalho (Foto SecomRO)

Pelo que o Varadouro apurou, há prefeitos declaradamente “inimigos de sem-terra ou camponeses”, devido a conflitos acirrados desde o final dos anos 1980.

Assim, percebe-se que o papel do Judiciário mudou 360 graus, pois até os primeiros 40 anos do novo estado limitava-se tão somente a julgar litígios fundiários, decidindo a respeito de posse, reintegração de posse e despejos, estabelecendo indenizações.

Reforma centralizada

O que a transparência governamental não explica é a razão pela qual movimentos de sem-terra e camponeses nem sequer serem ouvidos ou terem assento nesse grupo, na condição de pessoas diretamente interessadas pela reforma agrária na Amazônia Brasileira.

A maior parte da área não destinada no estado (90%) pertence à União. Na criação do Estado de Rondônia, em 1981, as terras não foram registradas em nome do estado e continuaram em nome da União. Algumas glebas não tiveram o processo de arrecadação formalmente concluído pelo governo federal, não sendo efetivamente matriculadas pela União, constatou em estudo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Segundo o relatório, tais áreas somam mais de 600 mil hectares e correspondem a 2,5% do estado. Atualmente, elas aguardam transferência para o Governo de Rondônia.

Cansadas de esperar, famílias remanescentes do massacre de 1995 chegaram a cortar seus lotes e dividi-los para o milho, mandioca e frutíferas (Foto jornal Resistência Camponesa)

Em sua primeira fala a respeito do propósito multidisciplinar, o desembargador conclamou municípios a essa participação. “O projeto prevê a atuação conjunta dos governos estadual e municipal”, ele resumiu.

A presença do Judiciário agrada sobremaneira o governo, conforme demonstrou o titular da Sepat, David Inácio. Palavras dele: “A união de forças entre as duas instituições é fundamental para ampliar a regularização fundiária em Rondônia.”

Inácio reafirmou o oferecimento de servidores da Sepat à disposição da Corregedoria. “Para prosseguir o mais rápido possível com o projeto, atendendo assim, os cidadãos que aguardam o documento de posse de suas propriedades” – justificou.

Mesmo diante da inversão de papéis e com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) impossibilitado de trabalhar apenas com seus recursos orçamentários, a expectativa de melhora existe.

A coordenação coube ao juiz auxiliar da Corregedoria Geral do TJ, Marcelo Tramontini. Segundo ele, servidores cedidos pelos municípios e pelo estado constituirão a equipe centralizada. Houve promessa de “dar mais eficiência ao processo e acelerar a emissão de títulos.”

A Sepat indicou a servidora Hannyeller Bragado Alecrim, coordenadora de Regularização Fundiária, para uma espécie de pontapé inicial. No âmbito governamental ela é considerada experiente e suas orientações seriam fundamentais para garantir que o projeto siga o cronograma estabelecido e alcance os resultados esperados.

De sua parte, na semana passada a Superintendência Estadual do Incra reuniu-se com assentados na antiga Fazenda Santa Elina, em Corumbiara, a 722 quilômetros de Porto Velho, para anunciar-lhes modalidades do chamado crédito instalação. Tratou ainda de questões ambientais e embargos na área.

Na antiga fazenda onde ocorreu o massacre de Corumbiara, em 9 de agosto de 1995, o Incra reconheceu seis assentamentos: Alberico Carvalho, Alzira Augusto,  Maranatá, Maranatá II, Renato Natan, e Zé Bentão.

A equipe do Incra abordou ainda os embargos ambientais impostos ao local desde a época da desapropriação da fazenda. O objetivo foi ouvir os assentados sobre a atual situação, sanar dúvidas e propor soluções para dar continuidade à regularização das áreas.

Segundo informou o superintendente do Incra, Luís Flávio Carvalho Ribeiro, a autarquia e a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) estão finalizando um Acordo de Cooperação Técnica que daria condições para a revisão dos embargos do local.

Título de domínio tem exigências ambientais

No encontro da semana passada foram entregues contratos de concessão de uso, documento que transfere provisoriamente o lote ao beneficiário, assegurando o acesso à terra, a créditos e a outras políticas do Governo Federal de apoio à agricultura familiar.

Cada família poderá usar racionalmente seu lote e fazer a preservação ambiental para obter o título de domínio.

Em 2021, Diretório Central de Estudantes, representantes do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo), Associação dos Advogados do Povo, e executiva estadual de estudantes de pedagogia celebraram Santa Elina (Foto jornal Resistência Camponesa)

Agosto de 2007: as vítimas de Santa Elina acamparam em Brasília por 23 dias, presenciando reuniões na Comissão de Direitos Humanos com o então ministro de Direitos Humanos Paulo Vanucci e com o então chefe do gabinete civil da presidência Gilberto Carvalho.

Não se sabe qual a razão, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva negava-se a receber as vítimas de Corumbiara, embora estivesse na área do massacre de 1995 fazendo campanha eleitoral.

Em 11 de maio de 2008, famílias remanescentes do massacre, juntamente com outros acampados da região de Cerejeiras e Corumbiara, organizaram-se no âmbito do Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina (Codevise), retomando o latifúndio com o apoio da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia e Amazônia Ocidental (LCP).

E a partir dali, cortaram seus lotes para a reocupação da fazenda. No entanto, em 19 de maio, oito dias após a retomada, o juiz da Vara Cível da Comarca de Colorado do Oeste – a 761 quilômetros de Porto Velho – Cristiano Gomes Mazzini, baseado em relatório do próprio Incra, datado de novembro de 2007, deu ao latifúndio o status de “altamente produtivo”, e concedeu liminar de reintegração de posse determinando um prazo de cinco dias para que os camponeses deixassem o local.

De lá para cá, diversas vezes as famílias foram cercadas e perseguidas por topas da Polícia Militar e Força Nacional, que praticamente ignoraram a discussão aberta entre o Codevise com o Governo Federal, através da Comissão Especial de Direitos Humanos, direção nacional do Incra e gabinete do presidente Lula.

Insatisfeito com a demora e com a maneira como se buscavam soluções indenizatórias, o Codevise acusava a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Rondônia (Fetagro) de haver “embolsado” R$ 94 mil “na intermediação de informações e triagem das vítimas”.

Famílias e acampamentos foram desmobilizados e desmoralizados com a entrega de cestas básicas e lona – acusava o Codevise em nota. Algumas famílias foram expulsas dos acampamentos.

“Depois de meses de provocações e ataques de pistoleiros ao acampamento camponês, em setembro de 2008 a Polícia Militar executou um despejo, entretanto, elas permaneceram no acampamento Adriana. Enquanto isso, jagunços armados continuaram atacando aqueles que apoiavam a tomada da terra” – lembrava o Codevise.

O então ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Brasil, Paulo Vanucci, visitava Ji-Paraná para discutir indenizações às vítimas; foi aguardado por 440 camponeses, entre eles vítimas, parentes e amigos, mas frustraria a todos, saindo do estado sem ouvir desabafos de ninguém.

Em 2011, o Codevise e a LCP voltaram-se contra o Incra, acusando a autarquia de “omissão”, ao anunciar a conclusão da aquisição da Fazenda Santa Elina, com o objetivo de transformá-lo em projeto de assentamento, no total de 14,8 mil hectares.

Parte da antiga fazenda havia sido cortada por decisão dos próprios camponeses em mais de 250 lotes de 12 alqueires na área conhecida por Água Viva, onde eles cultivaram milho, mandioca e frutas. Do total de lotes, pouco mais de 30 % foram entregues a remanescentes das famílias vítimas da chacina ocorrida em 1995. Uma escola com 30 alunos funcionou na área cortada.

E aí a história ganhava novo contorno: a responsabilidade das indenizações passaria ao Governo de Rondônia.

O próximo capítulo está sendo escrito sem a participação do Iteron, a quem, conforme a Lei que o aprovou cabe: I – Promover a discriminação administrativa das terras localizadas na área rural de seu território; II – Reconhecer as pessoas legítimas e destinar as terras apuradas, arrecadadas e incorporadas ao patrimônio imobiliário do Estado de Rondônia, de forma a promover a democratização do acesso à terra e fixação do homem no campo.
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* O crédito instalação é uma política para o desenvolvimento e a fixação das unidades familiares nos assentamentos. Após a aprovação do projeto da atividade produtiva e do contrato, os valores são liberados em conta pessoal do beneficiário no Banco do Brasil. O Incra é o responsável pelo acompanhamento e a fiscalização dos créditos concedidos. Segundo o Chefe da Divisão de Desenvolvimento do Incra, Claudinei Barreto, essa política pública atende beneficiários do Programa Nacional da Reforma Agrária com Fomento (R$ 16 mil por família), Fomento Mulher (R$ 8 mil por família) e Habitação (R$ 75 mil).

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