Obra de intervenção no rio Acre pela Bolívia deixa em alerta autoridades do Brasil
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O projeto inicial prevê a construção de muros de contenção que passarão pelos bairros da parte baixa de Cobija, e será executado em fases. Nesta semana, a Prefeitura de Cobija aprovou uma lei que declara de necessidade pública e interesse municipal a construção de medidas estruturais no rio Acre. Especialistas do Acre dizem temer impactos inestimáveis do lado de cá da fronteira.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
O projeto de uma obra de contenção dos impactos das cheias do rio Acre pelo governo da Bolívia, na cidade de Cobija, deixa as autoridades ambientais e de Defesa Civil do Acre em estado de atenção, ante os possíveis efeitos negativos do empreendimento do lado de cá da fronteira. O anúncio do projeto foi feito no último dia 10 de janeiro, pelo vice-ministro da Defesa Civil do governo de Luis Arce, Juan Carlos Calvimontes. O investimento anunciado por La Paz é de 20 milhões de bolivianos – ou pouco mais de R$ 16 milhões.
O projeto inicial prevê a construção de muros de contenção que passarão pelos bairros da parte baixa de Cobija, e será executado em fases. Nesta semana, a Prefeitura de Cobija aprovou uma lei que declara de necessidade pública e interesse municipal a construção de medidas estruturais no rio Acre.
“A partir de agora, começam os trabalhos de redirecionamento e gestão integral do rio Acre; redirecionar e trabalhar preventivamente; imediatamente no rio”, afirmou o vice-ministro da Defesa Civil.
O problema é que, logo de frente para Cobija, estão as cidades acreanas de Brasiléia e de Epitaciolândia, também bastante afetadas pelos transbordamentos do rio Acre – que passaram a ser mais recorrentes e frequentes ao longo da última década. Ano passado, Brasileia foi atingida pela maior alagação de sua história, quando o manancial alcançou a marca dos 15,58m. Mais de 70% do perímetro urbano ficaram debaixo d’água, além dos efeitos para as comunidades ribeirinhas e rurais.
Por conta dos sucessivos impactos de grandes inundações, a Prefeitura de Brasileia trabalha com projetos de “remoção” de uma parte expressiva da cidade para áreas mais altas e afastadas do rio. Entre elas está o próprio centro histórico, localizado de frente para a Bolívia e o primeiro a ficar inundado durante os transbordamentos.
A área sofre, desde 2012, com o desbarrancamento. Na cidade, o governo do estado realiza ums “qualificação do espaço urbano da orla de Brasiléia”. A obra seria uma contenção dos processos erosivos do barranco do rio – nos moldes do que foi feito em Rio Branco na região da Gameleira. Uma intervenção bem diferente do proposta pelas autoridades bolivianas, que poderia produzir sérias alterações no curso das águas durante os meses das cheias.
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Impactos a jusante e a montante
Não por acaso, as autoridades de Defesa Civil do Acre dizem estar preocupadas com o projeto. Para especialistas ouvidos por Varadouro, a intervenção seria capaz de provocar impactos tanto a jusante quanto a montante do rio – ou seja, as partes baixa e alta.
Mesmo distante mais de 200 quilômetros da região de fronteira, a capital Rio Branco também poderia ser afetada. Mais da metade da população acreana vive nos municípios que forma o Vale do Acre. Com pouco mais de 960 quilômetros de extensão, o manancial tem sua nascente no Peru e deságua no Purus no município amazonense de Boca do Acre.
“Mesmo sem conhecer a fundo o projeto, eu acredito que há sérios riscos de termos impactos aqui. É uma região distante, mas é de lá de onde vem toda a água que pode ocasionar impactos aqui. Eu acho muito temeroso”, afirma o coronel Cláudio Falcão, coordenador da Defesa Civil de Rio Branco. Ele defende a participação das sete prefeituras dos municípios banhados pelo rio Acre para discutir os efeitos do projeto.
O rio Acre é o limite natural da tríplice fronteira amazônica formada por Bolívia, Peru e Brasil, a Bolpebra. Toda e qualquer intervenção no manancial por um dos países tende a ocasionar impactos para as três partes, o que poderia provocar consequência não apenas ambientais e sociais, mas também problemas diplomáticos.
Procurado pela reportagem do Varadouro, o Ministério das Relações Exteriores se limitou a dizer que tem ciência do projeto do governo boliviano por meio da embaixada do Brasil em La Paz e que “mantém contato com as autoridades bolivianas para obter informações oficiais sobre o referido projeto”. Ao fazer o anúncio da obra, o ministro da Bolívia afirmou que o próximo passo seria procurar as autoridades brasileiras para um diálogo.
“Isto não é solução para nada. Enquanto o mundo discute revitalizar, reflorestar, recuperar as nascentes, as beiras dos mananciais, os engenheiros da Bolívia estão pensando em gerar impactos para o rio Acre”, afirma o geógrafo Claudemir Mesquita, pesquisador e um dos maiores especialistas na Bacia Hidrográfica do Rio Acre. “É muito complicado pensar num projeto desse como a solução para se evitar as alagações do rio Acre. Eu não vejo como solução. Nós temos que pensar na sustentabilidade, e não causar impactos no rio Acre”, completa ele.
Em reportagem publicada no mês passado, Varadouro mostrou que o rio Acre já perdeu mais de 40% de toda a sua cobertura de mata ciliar ao longo das últimas cinco décadas. A perda desta vegetação agrava os efeitos dos eventos climáticos extremos. E esta fronteira trinacional da Amazônia é uma das regiões mais impactadas por tais fenômenos – situação essa que tende a se agravar ao longo das próximas décadas.
Antropólogo social e pesquisador-membro do grupo MAP (Madre de Dios, Acre e Pando), uma rede formada por cientistas dos três estados (departamentos) da fronteira Bolpebra, Guillermo Rioja-Ballivián diz ver com menos objeção o projeto das autoridades bolivianas.
“Não temos conhecimento dos projetos de contenção hidrológica nem dos seus relatórios periciais anteriores. No entanto, como existe uma coordenação binacional, esperamos o início de programas bem-sucedidos de prevenção de inundações na fronteira binacional”, afirma ele. Professor da Universidade Amazônica de Pando, Rioja-Ballivián é um dos principais nomes nos estudos sobre as consequências da crise climática nesta parte da fronteira pan-amazônica, bem como os seus efeitos sobre as suas populações.
Enquanto muito se discute e pouco (ou nada) se faz para “salvar” o rio das fronteiras, o rio Acre vem sendo afetado pela degradação de suas margens, o desmatamento, o despejo de esgoto sem tratamento e a mineração (retirada de areia) sem controle. Além do próprio manancial, as populações dos três países que vivem em seus barrancos são as mais atingidas. E, aqui, os impactos não têm fronteiras.
Ao que tudo indica, o rio Acre precisa de mais floresta, e menos concreto!
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