História Burlesca na Amazônia

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Conheci faz pouco tempo o frenético jornalista mineiro Mouzar Benedito, nascido em Nova Rezende, que pintou o sete durante a ditadura militar e civil de 1964. Seu currículo de 1970 para cá é alucinante: participou da fundação dos jornais Versus e Em Tempo, trabalhou em dezenas de jornais, alternativos ou não, publicou 50 livros e andou por todos os cantos do país cutucando os milicos com vara curta. Chegou a frequentar algumas celas da ditadura e, mesmo assim, frequentou o curso de Geografia na USP e escapou vivo. Hoje, e diariamente, ele aparece no grupo Sirkis e Ricardo, na internet, contando novos e velhos causos que sua prestigiosa memória guardou.

Foi através desse grupo (no WhatsApp) que eu o localizei, pensando em obter alguma dica para reativar o jornal Varadouro, que eu com outros amigos criamos nos anos 1970 para ajudar as famílias de seringueiros que sofriam violência policial e de jagunços armados, para que abandonassem suas colocações de seringa. Ele se mostrou interessado e solidário, e a partir daí temos conversado on-line. Melhor, ele passou a me mandar alguns de seus livros, entre estes “1968, por aí…- Memórias Burlescas da Ditadura”, cuja capa mostra o autor barbudo e sorridente empunhando uma espingarda de brinquedo.

Que surpresa! Na página 199 vejo uma foto do sujeito amparado num par de muletas e a informação de que ele quebrou o pé direito ou esquerdo durante uma visita ao Acre em 1977. Ele queria conhecer a turma do Varadouro na redação do jornal, mas, no hotel em que se hospedou (e onde se encontravam fazendeiros e capatazes envolvidos nos conflitos acreanos), soube que um seringueiro tinha recebido a bala e matado dois agressores “paulistas”. Na verdade, ele se referia à ocorrência no seringal Bagaço, onde o seringueiro Raul Veras matou um jagunço e estragou a bunda do capataz Gaucho com um tiro de chumbo grosso.

Com o pé quebrado, o que ocorreu quando ele tentava chegar ao local do conflito para entrevistar o seringueiro Raul (que escafedeu vestido de mulher para a Bolívia), Mouzar esqueceu o Varadouro e pegou o primeiro avião para São Paulo.

O que me chamou atenção, além dessa situação burlesca, foi o que nosso herói escreveu na mesma crônica “Quando Chico Mendes começava sua luta”. Ele informa que “durante a ditadura, os militares, com a desculpa de levar o ‘progresso’ para a região, dava terras aos seus colaboradores. Pessoas que financiavam os aparelhos de repressão e tortura ganhavam milhares de terra em troca. Um paulista, dirigente da Copersucar, chegou a ganhar título de propriedade de uma área de 500 mil hectares que tinha até várias vilas lá dentro. Como os demais, contratou jagunços para expulsar todos. Quem reagia, morria”.

Eu tinha a mesma informação que me foi passada pelo advogado da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) Pedro Marques da Cunha Neto, uma de minhas fontes preferenciais na cobertura dos conflitos entre seringueiros e fazendeiros no Acre.

Pedro Marques, um cearense grandalhão e experiente, ex-motorista de caminhão na estrada Rio-Bahia, foi convidado pelo superintendente da Polícia Federal no estado, seu conterrâneo e amigo, a participar de uma semana de festas de fazendeiros no Mato Grosso do Sul, para arrecadar fundos para a UDR (União Democrática Ruralista) , entidade que teria contribuído para pagar os assassinos de Chico Mendes, em 1988. O advogado ficou assustado com o que viu: muito uísque, muitas mulheres (prostitutas de luxo contratadas em São Paulo) e muita arrogância dos que se embriagavam.

Eles falavam abertamente de torturas das quais participavam durante a ditadura, e se orgulhavam de terem sido recompensados com milhares de hectares de terra na Amazônia.

Na época, atuando como repórter, fiz proposta de pauta para o jornal O Estado de São Paulo, do qual era correspondente, que me aconselhou a esquecer assunto tão perigoso. Ofereci à revista Veja, que tinha uma sucursal regional em Manaus, como freelancer, também não colou. Fiquei, então, com a minha indignação e o medo de assumir sozinho a denúncia. Mas acredito que a pauta continua de pé, e até serviria, ainda hoje, para explicar porque acontece tanto desmatamento, tanta queimada, tanta droga e tanto crime na Amazônia.



Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.

Contato: almanacre@gmail.com
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