MPF tira da esfera estadual “investigação tartaruga” de assassinatos de líderes rurais em Rondônia
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
Quatro anos depois das “porteiras abertas”, da desmoralização do Incra, Ibama e ICMBio, e da presença da Força Nacional expulsando famílias em Rondônia, nuvens claras e democráticas surgem no horizonte. O Ministério Público Federal (MPF) começa a chamar para si a investigação eficaz e o indiciamento de mandantes dos assassinatos de líderes camponeses no estado. Com o bolsonarismo isso seria impossível. A busca da garantia de investigação mais eficiente para que ilícitos sejam esclarecidos e seus eventuais autores julgados e punidos levou o órgão a “federalizar” crimes praticados no campo.
E por qual razão? – Mesmo considerada exceção no mundo jurídico, essa medida lidará com a impotência de autoridades locais para lidar com a situação e a impunidade seria iminente. A ação é fundamentada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a pedido da Procuradoria Geral da República. E assim, a “federalização” irá apurar detalhadamente a matança de líderes que denunciaram e deram a vida na luta contra a grilagem de terras e exploração ilegal de madeira nas regiões de Jaru, Ariquemes, e do chamado “Cone Sul” de Rondônia.
Atualmente, Rondônia é o segundo estado com o maior número de mortes em consequência de conflitos agrários; perde apenas para o Pará. Entre 2015 e 2016, o estado ficou no topo do ranking, contribuindo para a liderança mundial do Brasil em mortes no campo.
A reação do MPF às mazelas fundiárias em Rondônia, que se diz “do agronegócio”, parece merecer o aval do governo federal. Devagarinho e pisando igual macaco em loja de louças, o governo Lula está diante do conservadorismo do eleitorado que elegeu Jair Bolsonaro em 2018, votou nele de novo em 2022, e cegamente ainda o venera.
Mesmo tendo criado uma Ouvidoria Agrária inicialmente atuante, desde o seu governo anterior [2003-2010] o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não solucionou o drama das indenizações das vítimas da Chacina de Corumbiara, ocorrida em agosto de 1995.
Seis inquéritos que apuram crimes de homicídio praticados contra líderes de trabalhadores rurais e outras pessoas que denunciaram grilagem passarão às mãos de procuradores da República. Até então eles corriam numa vagareza de fazer dó e de autoridades coniventes com o latifúndio.
“A atuação dos órgãos policiais e judiciários da União pode prevenir a responsabilização do Brasil nas cortes internacionais”, lembrou o MPF em nota.
Durante o governo Bolsonaro, a Polícia Militar de Rondônia, da qual fez parte o governador coronel Marcos Rocha (União), vergou-se à intervenção da Força Nacional e, ao mesmo tempo, viu alguns de seus integrantes serem condenados pela Justiça, em Vilhena (a 705 km de Porto Velho), por servirem descaradamente a latifundiários.
Segundo o MPF, a decisão de “federalizar” a apuração das mortes foi tomada pelo STJ na quarta-feira, 23 de agosto, ao acolher pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) feito em setembro de 2019 pelo documento chamado Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) 22.
Vítimas do latifúndio e de madeireiros
Os inquéritos “federalizados” se referem às mortes do professor Renato Nathan Gonçalves, Gilson Gonçalves, Élcio Machado, Dinhana Nink, Gilberto Tiago Brandão, Isaque Dias Ferreira, Edilene Mateus Porto e Daniel Roberto Stivanin.
Em sua maioria, as vítimas faziam parte de movimentos em prol dos trabalhadores rurais e camponeses. A recordista em líderes assassinados no estado é a Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia (LCP) e Amazônia Ocidental, que desde o início dos anos 2000 perdeu pelo menos dez pessoas seviciadas, sequestradas e mortas por jagunços em emboscadas.
A transferência das investigações para o âmbito federal possibilitará esclarecer crimes resultantes de extrema violência e prática de tortura, a consequência maior do grave conflito agrário instalado neste estado amazônico.
Para o MPF, as investigações locais dos assassinatos dessa lista de vítimas, “além de morosa, foram inconclusivas e insuficientes para punir os responsáveis, seja pela corrupção de agentes públicos ou pelo sucateamento dos instrumentos de segurança pública e investigação do Estado.”
“Tal cenário demonstra a incapacidade da esfera estadual em oferecer resposta pronta, efetiva e eficaz aos crimes, com sério risco de responsabilização perante a comunidade internacional protetiva de direitos humanos.”
O MPF alertou para a existência e o desenvolvimento de organizações criminosas que atuam em benefício de grupos mais fortes, visando a manter o controle sobre as terras. O Poder Judiciário tem conhecimento da situação, tanto que reverteu um cenário aterrorizante – com mortes de ambos os lados – ao punir policiais militares a serviço de fazendeiros.
De acordo com a decisão do STJ, o pedido apresentado pelo MPF preenche todos os requisitos de ordem constitucional e legal para o deslocamento de competência da esfera estadual para a federal. Entre eles, “a grave violação de direitos humanos, a possibilidade de responsabilização do Brasil em razão de descumprimento de obrigações contraídas em tratados internacionais e a incapacidade de órgãos locais darem respostas efetivas às demandas.”
A transferência de investigações ou processos para a Justiça Federal visa, ainda, a garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo País nos tratados internacionais de direitos humanos.
Grupos paramilitares
Em novembro de 2022, o jornal “Resistência Camponesa” informava a respeito de uma operação das polícias civil e federal e do Ministério Público comprovando antigas denúncias do movimento camponês em Rondônia: a existência de grupos paramilitares fortemente armados, a soldo do latifúndio, envolvendo policiais e pistoleiros.
Com isso, conforme publicava o jornal, cinco mandados de prisão preventiva, dentre eles um advogado, foram cumpridos. Também foram executados um mandado de “afastamento de função pública” e 32 mandados de buscas em Porto Velho, Ariquemes, Vilhena, Cassilândia (MS) e Brasília (DF).
A investigação surpreendeu políticos e a seccional de Rondônia da Ordem dos Advogados do Brasil, que ainda estava incrédula no tamanho do estrago provocado pelo latifúndio armado.
Segundo a investigação, os envolvidos – dentre os quais estão policiais militares, policiais civis, delegados da Polícia Civil e pistoleiros – foram pagos e estavam a serviço da empresa Leme Empreendimentos Ltda, de propriedade de Antônio Martins, o “Galo Velho”, denunciado sucessivas vezes por camponeses, desde Jaru, como “um conhecido e criminoso grileiro de terras públicas”.
Os grupos armados do latifúndio, nesse caso, atuaram ampla e impunemente contra a Área Tiago Campin dos Santos, que ocupou as terras da empresa do “Galo Velho”, em Nova Mutum-Paraná, próximo à BR-364, no sentido Acre.
Em novembro de 2021, uma grande operação policial nacional com mais de dois mil homens foi organizada para expulsar mais de 800 famílias camponesas. Ainda conforme o Ministério Público, jagunços a serviço do grileiro cometiam abusos cometiam abusos e execuções sumárias usando armamento e viaturas oficiais.
“O grupo ainda lavava dinheiro e fraudava processos judiciais de desapropriação de terras. A partir do afastamento do sigilo bancário dos investigados foi possível identificar movimentações financeiras superiores a R$ 445 milhões, sendo efetivamente comprovado o pagamento de valores aos servidores contratados para a função de bando paramilitar particular do latifúndio”, publicava “Resistência Camponesa.”
Um agosto pesado
Em 3 de agosto, um casal de camponeses foi assassinado a sangue frio dentro de sua própria casa em um ataque feito por pistoleiros na comunidade rural de Ipixuna, município de Humaitá, sul do Amazonas, a 200 quilômetros de Porto Velho.
O marido era conhecido por “Fumaça”, a esposa era Cleide da Silva. Ela levou cinco tiros no peito, enquanto o marido foi executado com sete tiros no pescoço e na cabeça. Os dois estavam em casa.
Nove dias depois, em 12 de agosto, noutro ataque violento, policiais e pistoleiros estavam em um acampamento no município de Cujubim, distante 222 km de Porto Velho. Lá, eles prenderam 25 trabalhadores, apreenderam diversas motos e as incendiaram.