Governador de Rondônia considera “maldade” ter o maior cinturão verde do país entre o centro-oeste e a fronteira boliviana

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TI Karipuna, no território de Porto Velho, que forma cinturão verde no oeste de RO; área está entre uma das mais invadidas e desmatadas dos últimos anos (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)


Bolsonarista criticou o fato de Guajará-Mrim ter mais de 90% de seu território formado por áreas protegidas, e promete pacote de rodovias para região


Montezuma Cruz
Dos Varadouros de Porto Velho

UM TANTO na contramão dos Objetivos do Milênio, o governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (União Brasil), parece não ter encontrado o esquadro, o compasso e o prumo para recompor esta parte da Amazônia Ocidental brasileira da série de agressões cometidas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro – e da qual ele próprio, como bolsonarista que é, ajudou a fomentar ao longo dos últimos quatro anos. “Fizeram uma maldade com Guajará-Mirim: 93% a 94% da área são de preservação; eu tinha que conseguir fazer com que as pessoas tivessem emprego e renda, que movimentasse a economia lá”, discursa num vídeo Rocha, ao lado da deputada estadual Taíssa Sousa (PSC).

Guajará-Mirim, na fronteira brasileira com a Bolívia, situa-se a 362 quilômetros de Porto Velho. É homônima de Guayaramerín (Beni), cidade boliviana do outro lado do rio Mamoré. Disse o governador que recentemente retirou o ICMS da gasolina e do diesel dentro de Guajará-Mirim, ou seja, os moradores e as empresas fixadas nesse município fronteiriço terão o benefício.

Enquanto ele fala no vídeo gravado em seu gabinete, a deputada esboça um sorriso tão amarelo quanto o casaco que usava quando se avistou com o chefe do Executivo. A base eleitoral-política da parlamentar é o município da fronteira – ponto final da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, cujos trilhos e pontes ainda são vistos ao longo das BR-364 e 425.

Rocha admite que a obtenção de crédito de carbono poderia contribuir para a consolidação da renda de Guajará-Mirim, apesar dos mais de 50 milhões de metros cúbicos de madeira de lei roubados das suas terras indígenas.

“Como Guajará-Mirim tem 94% de sua área preservada obrigatoriamente, de repente pode ganhar recursos justamente por isso” – projetou sem nenhuma estimativa oficial. Informou que esteve em Brasília, onde tratou do nó górdio da RO-420, estrada-parque Ariquemes-Nova Mamoré: “Queremos asfaltá-la.” “Já tive um parecer [de quem?] praticamente favorável; será feito um estudo, mas percebi que vai dar certo. Federalizar a 420 e a 421 passa para mim. Isso vai facilitar muito até para o governo federal.”

A estrada-parque possui 30 metros de largura e sua construção interrompeu vários igarapés ou intermitentes. Parte de seu traçado passa por dentro do Parque Estadual de Guajará-Mirim, uma das unidades de conservação mais ameaçadas pela grilagem dentro de Rondônia.

“Passo a passo a gente vai conseguindo abrir o caminho pro Pacífico através dessas ações”, disse, talvez ignorando que o Estado do Acre já construiu parte da Rodovia Transoceânica há quase duas décadas. Em 1976, quando o governador era criança no Rio de Janeiro, a 421 era conhecida como “rodovia da cassiterita” e não raro utilizada por narcotraficantes para negócios de fachada nessa região de Rondônia.

Não é novidade alguma que a grilagem de terras e a exploração ilegal de madeiras corre solta no município de Buritis – outro município citado por ele no vídeo, e que seria beneficiado pelo seu “pacote de bondades” no asfaltamento e abertura de estradas numa das regiões de Rondônia mais impactadas pela invasão de UCs e terras indígenas. Como também já é de conhecimento público, a abertura de estradas e ramais (chamados de linhas em RO) serve como principal indutor para o avanço do desmatamento na Amazônia.

Buritis, ao lado do distrito de União Bandeirantes, acabam servindo como uma base logística para essa indústria da grilagem na região centro-oeste de Rondônia. A área, não por acaso, está localizada na tríplice divisa Amacro: Amazonas, Acre e Rondônia – definida como a nova fronteira do desmatamento na Amazônia. Entre as áreas mais invadidas estão a Resex Jaci-Paraná e a Terra Indígena Karipuna, que passou a ser alvo de operação da Polícia Federal para expulsar madeireiros e grileiros.

No Mapa da Violência, o município de Buritis aparece como o 15° mais violento do Brasil. Relatório divulgado entre 2010 e 2012 aponta 79 mortes causadas por arma de fogo, o que representa uma taxa média de 78,8% para cada 100 mil habitantes. Os resultados daquele período até agora ainda não foram divulgados.

Em janeiro deste ano, o perímetro urbano da RO-420, no trecho do distrito Nova Dimensão a Nova Mamoré começou a receber 60 quilômetros de patrolamento, limpeza lateral e encascalhamento. A obra é do Departamento de Estradas de Rodagem de Rondônia (DER), conhecido por “balcão da campanha política” pela reeleição de Rocha.


Um parque grilado e desmatado

O Parque Estadual de Guajará-Mirim está invadido há décadas, reconheceu o ex-governador Confúcio Moura (MDB), hoje presidente da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado Federal. Ele próprio um dia desabafou: “Não aguento mais a invasão do território dos Uru-eu-wau-wau, Rondônia está impotente diante dessa situação”. Imagine-se com o Parque. Foi durante a festão Confúcio que Rondônia mais criou unidades de conservação estaduais – agora alvos da bancada ruralista-bolsonarista da Assembleia Legislativa (ALE-RO).

Logo, o asfaltamento que pode ser visto com deslumbre pelo governo e por alguma parcela da população de Guajará-Mirim, tem tudo para ser mais um nó górdio nos próximos meses. A prometida desintrusão do Parque – que deveria ser feita pela Secretaria Estadual do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) – até hoje está no papel, seguindo-se o faroeste entre ocupantes de áreas sempre resistindo ou atacando a polícia.

Julio Dalponte, da Universidade de Brasília, doutor em biologia animal, lembra em depoimento ao jornal eletrônico (o)eco que em fevereiro de 2014 houve a cheia histórica do Rio Madeira e em consequência dessa emergência um percurso de 11,5 Km dentro do Parque – antes uma trilha fechada e de tráfego limitado – foi transformado em estrada. “Chegou a haver um embate entre a Justiça Federal e o Governo de Rondônia, que paralisou a abertura dessa via”, ele recorda.

Júlio foi contratado pela Sedam para elaborar um projeto técnico que atendesse à Lei Complementar nº 762, de 27 de fevereiro de 2014 e que pudesse ser executado o mais rapidamente possível. Seu trabalho resultou no rastreamento contínuo de pegadas, “o mais eficaz no caso”, no que constatou 28 espécies de mamíferos de médio e grande porte – com massa corporal acima de 1Kg – que efetivamente cruzaram a estrada, e 368 eventos de travessia bem-sucedida por indivíduos dessa espécie durante o estudo. Listou ainda 40 espécies de mamíferos de médio e grande porte, dos quais, nove em espécie de extinção: anta, ariranha, cachorro-vinagre, macaco-aranha de cara preta, onça-parda, onça-pintada, queixada, tamanduá-bandeira, tatu-canastra.

E alerta: “Com base nessa Lei, o governo do estado conseguiu ir em frente com a obra; essa lei permite a construção de estradas-parque em Unidades de Conservação, dede que o projeto desse tipo de via contenha um estudo prévio de impacto socioambiental.”

“Não foi o que aconteceu, assinala Dalponte: a abertura da estrada foi feita da noite para o dia, desamparada de qualquer estudo ambiental prévio. Ela atravessa a porção norte do parque, para viabilizar a conexão entre os municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, garantindo o acesso pelas regiões de Ariquemes e Buritis.” As zoopassagens propostas dariam prioridade aos corredores de fauna, evitando-se ou reduzindo-se, desta maneira, atropelamentos.

Segundo o biólogo Paulo Bonavigo, primeiro-secretário da Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé), a castanha, lembrada pelo governador, tem sua produção concentrada em terras indígenas e nas unidades de conservação de uso sustentável (como a Reserva Extrativista do Rio Cautário) e beneficia o município, proporcionando renda. Essa “maldade” feita contra Guajará-Mirim não foi lembrada pelo governador Marcos Rocha. A venda da castanha está entre as principais fontes de renda para as comunidades indígenas e ribeirinhas do município – um dinheiro obtido sem a necessidade de colocar boi ou soja no lugar da floresta.

Nem Associação Comercial, nem Receita Federal revelaram até o momento o volume da safra anual e que mecanismos podem ser adotados para que o produto atenda diretamente ao mercado dos Estados Unidos.

“A isenção de impostos sobre produtos florestais em Guajará-Mirim foi, na verdade, resultante da luta do terceiro setor e de castanheiros, contra atravessadores de empresas”, diz Paulo Bonavigo. Verdade, ela não provém de nenhuma política pública da Secretaria Estadual da Agricultura. Esta, por sua vez, nem divulga o preço do quilo do látex extraído em Unidades de Conservação e nem esclarece a quantas anda o investimento da Permian Global.

Essa empresa foi autorizada pelo governo estadual a pagar R$ 1 mil por mês a cada família de sete comunidades da região do Rio Cautário – entre Costa Marques e Guajará-Mirim – sob a exigência de conservar a floresta nativa visando ao crédito de carbono que aquela empresa pretende negociar no mercado internacional.

Uma CPI da Assembleia Legislativa, pelo visto, deverá revelar esse aspecto muito cinzento desde 2021.




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