No começo dos anos quarenta o governador do Acre, Epaminondas Martins, recebeu um telegrama do Rio de Janeiro (então capital do país) comunicando que o presidente Getúlio Vargas visitaria o então Território Federal, permanecendo três dias em Rio Branco. Estava em formação, na época, a Grande Marcha para o Oeste, através da qual o governo brasileiro planejava ocupar e proteger o imenso espaço vazio amazônico cobiçado por países estrangeiros. E a Segunda Guerra Mundial ampliava os temores de Vargas quanto a isso.
O comunicado da Presidência causou alvoroço na administração local. Como se faz para receber um homem tão poderoso como Vargas? O que ele gostaria de ver? Que tipo de comida prefere? Alguém poderia informar sobre os gostos e manias do presidente? Pra dizer a verdade, ninguém entendia patavina de cerimonial. Além disso, quem imaginaria naqueles tempos que um presidente quisesse visitar o Acre?
No corre-corre, alguém sugeriu passar um telegrama perguntando se Getúlio Vargas tomava banho quente ou frio… Convém lembrar que havia sido criado o ”escalão precursor” que, nos dias de hoje, se antecipa e dá um “chega pra lá” nas equipes locais, isolando o presidente em nome de sua segurança. Ah! A pista de pouso do aeroporto de Rio Branco era de barro puro: como explicar que uma verba liberada pela Aeronáutica para pavimenta-la, tinha sumido?
No Acre Território faltava tudo, por isso dois pilotos baseados em Rio Branco foram acionados: o comandante Sérvulo, que pilotava um velho Ferchald; e o coronel João Donato, pai do excepcional cantor e compositor João Donato, que num outro avião recebeu a missão de transportar uma carga de sabonetes, toalhas e papel higiênico de Manaus.
Mas o “menu”, gente, como fazer com o “menu” presidencial? Com o declínio da borracha, a cozinha acreana perdera sua performance europeia. A comida regional era gostosa, mas faltava tempero e requinte da “belle époque” do começo do século.
O “frisson” palaciano se ampliava com a situação quando um salvador da pátria (aleluia!) informou sobre a existência, em Cruzeiro do Sul, segundo município mais importante do Acre, de um cozinheiro francês remanescente dos tempos áureos da borracha. Chamava-se Elli Gaby e a fonte advertiu: “o sujeito é meio enjoado!”
Não teve conversa. O governador mandou seu ajudante de ordem (vixe!), capitão Sérgio, buscar o homem de avião. Ele teria que vir para Rio Branco por livre e espontânea vontade, ou “amarrado”.
Quando Gaby chegou ao palácio do governo e tomou pé da situação fez escândalo: Como fazer “menu” especial com macaxeira, jerimum, farinha d’água e açúcar preto? Não tinha maionese, nem petit fois, nem patê, nem vinho, nem licor de espécie alguma…Não tinha nada, ele teve que fazer imensa – abusou até, provavelmente se vingando- e lá se foi um avião do governo buscar tudo no Rio de Janeiro.
PRA ENCURTAR A HISTÓRIA
À véspera da visita presidencial , o “maitre” já havia feito comida sofisticada para um batalhão. A cozinha, que funcionava no palácio mesmo (também residência do governador) lembrava a de um restaurante francês. Entretanto, chegou novo telegrama avisando que Getúlio Vargas, aconselhado por seu esquema de segurança, cancelara a viagem. O presidente correria o risco numa terra tão distante habitada por “alguns perigosos comunistas”.
Bobagem! Por precaução o governador Epaminondas Jácome tinha mandado prender a corriola subversiva encabeçada pelo poeta Tomé Manteiga, destemperado, de língua afiada, que certamente acharia meio de fazer chegar aos ouvidos de Vargas críticas dura sobre “como estava o povo acreano”. O cancelamento da visita, além de privar o Acre de um fato histórico, acentuava o despropósito de prender, por nada, esse pessoal.
Para amenizar a situação – e já que tinha tanta comida chique sobrando – o governador mandou buscar Tomé Manteiga e seus companheiros para jantar no palácio as especiarias de Elli Gaby. Tomé foi: comeu, bebeu, mas, após se fartar de vinho francês, deixou o palácio bufando de raiva pela humilhação sofrida.
(Essa historinha ouvi do escritor e poeta acreano Océlio Medeiros, falecido, também comunista e um dos comensais).
Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.
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