Governo Cameli persiste com projeto de outra rodovia entre Acre e Peru

Em reunião realizada no fim de março com Geraldo Alckmin, o secretário da Indústria do Acre voltou a colocar a rodovia entre Cruzeiro do Sul a Pucallpa como uma das estratégias nacionais de desenvolvimento. A proposta é “encurtar” as exportações brasileiras para a Ásia pelo Pacífico. A China é a principal beneficiada com o projeto, que serviria como corredor de commodities do agronegócio no meio da Amazônia.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
O projeto para a construção de uma estrada interligando Cruzeiro do Sul a Pucallpa, no departamento peruano de Ucayali, ainda é um dos principais sonhos de consumo da classe política acreana. A proposta, que passou a ter uma aparência de “morta”, vez ou outra é ressuscitada nas agendas entre os integrantes do governo Gladson Cameli (PP) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A estrada, que pode representar um dos maiores desastres ambientais para a preservação da Floresta Amazônica, ainda parece ter alguma sobrevida.
É o caso da mais recente reunião entre o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, com o secretário Assurbanípal Mesquita, da pasta de Indústria, Ciência e Tecnologia (Seict), do governo Gladson, ocorrida no final de março em Brasília.
O representante acreano voltou a colocar a interligação rodoviária entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa como uma das principais políticas estratégicas do Palácio Rio Branco para o desenvolvimento econômico do estado.
Meio que de forma indireta, Assurbanípal Mesquita deu a entender que esta seria mais uma “rodovia da soja” na Amazônia, servindo como um corredor de commodities produzidas no Brasil para o mercado asiático – leia, a China. Não há a menor dúvida de que Pequim é um dos principais interessados na construção da nova rodovia entre o Brasil e o Peru para encurtar o caminho de suas importações de grãos e proteína animal, reduzindo a dependência do canal do Panamá.
A guerra comercial chinesa com os Estados Unidos, desde o retorno de Donald Trump à Casa Branca, tende a recolocar a estrada Cruzeiro do Sul-Pucallpa como uma das estratégias nacionais em projetos de infraestrutura.
“Essa proposta vai tornar o Acre esse elo, podendo atrair as cargas de commodities que hoje fluem pelo Rio Madeira e passam pelo Canal do Panamá, para que cheguem diretamente ao Porto de Chancay, no Peru, rumo à Ásia”, disse o secretário da Indústria. “O Acre tem esse grande potencial, por estar numa posição geográfica estratégica, num contexto geoeconômico muito interessante, mas para isso alguns investimentos são necessários.”
Oficialmente, a estrada ficou de fora da chamada Rota Quadrante Rondon, iniciativa liderada pela ministra Simone Tebet com uma série de propostas para maior integração sul-americana – seja ela nos mais diferentes modais.
Em 2024, durante visita a Rio Branco, a nova interligação rodoviária entre o Acre e o Peru foi apresentada à ministra. Todavia, ela não entrou na Rota Rondon. As inúmeras polêmicas sobre os impactos sociais e ambientais que a abertura de uma estrada numa das regiões mais bem preservadas da Amazônia é visto como um dos fatores a levar o governo Lula a não comprar a ideia – ainda.
Atualmente o Acre já possui ligação rodoviária com o Peru, até Lima, por meio da Rodovia Interoceânica – ou a BR-317. Construída durante as gestões petistas, a estrada também era vendida como a solução para o desenvolvimento econômico do Acre. O mesmo discurso de hoje era ouvido há mais de 20 anos. Porém, o empreendimento se mostrou inviável para o transporte de grandes cargas na Cordilheira dos Andes.
Os defensores da estrada Cruzeiro do Sul-Pucallpa “vendem” a proposta como economicamente viável por ser o caminho mais curto do Brasil até os portos de Lima, enfrentando menos regiões montanhosas.
Sozinho, o Acre não teria a mínima condição financeira de bancar os custos da abertura da estrada numa das regiões mais remotas do bioma amazônico. Sem a verba do Tesouro Nacional, o empreendimento jamais sairia do papel. O mesmo se pode dizer no lado peruano. É certo que, caso a disputa entre China e EUA fique ainda mais acirrada, é provável que Pequim banque a construção no Peru, assim como fez com o bilionário porto de Chancay.

Uma estrada no tribunal
Entre 2019 e 2022, quando a desastrosa dobradinha Gladson Cameli e Jair Bolsonaro provocou um desastre ambiental para a Amazônia, a proposta de uma nova interligação rodoviária do Acre com o Peru tinha força total. Em dezembro de 2021, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) chegou a lançar edital para a contratação de uma empresa que faria a viabilidade técnica para a abertura da estrada.
A medida só não avançou por conta da sentença judicial obtida a partir de uma ação civil pública apresentada por organizações da sociedade civil e encorpada pelo Ministério Público Federal.
O Dnit lançou à revelia de quaisquer estudos prévios ou consultas às comunidades impactadas o edital que foi contestado na Justiça, cuja crítica principal é exatamente o atropelo ao que prevê as legislações nacionais e internacionais que tratam de impactos sociais e ambientais ocasionados por obras desta magnitude.
O interesse em tocar o empreendimento era tão grande que havia articulações, em Brasília, para que o licenciamento fosse tocado não pelo Ibama, mas pelo Imac, o Instituto de Meio Ambiente do Acre, desde 2019 sob as batutas da classe política bolsonarista local. Este arranjo se mostrou uma afronta. Afinal, o traçado da rodovia passa por terras indígenas e unidades de conservação federais, além de ser uma região fronteiriça. Portanto, de ampla e única responsabilidade dos órgãos federais.
Uma das principais preocupações dos impactos ocasionados pela abertura da estrada são os povos indígenas isolados. Como de notório conhecimento, a fronteira Brasil-Peru, nos vales do Juruá e Javari, tem uma das maiores concentrações populacionais de indígenas isolados do mundo. A região também é dona de uma das maiores biodiversidades (vegetal e animal) do planeta.
“O projeto de construção da estrada entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa está sendo encaminhado pelo governo federal brasileiro sem transparência, sem discussão ampla com a sociedade sobre os interesses envolvidos e sem respeito ao nosso direito de sermos consultados previamente sobre qualquer medida administrativa ou legislativa que nos afete”, dizia trecho de manifesto assinado por diferentes organizações indígenas do Acre, em junho de 2021.
“Sabemos que estradas não trazem benefício para as populações locais. Trazem a oportunidade para que interesses de fora acessem as riquezas locais, transformando as comunidades em mão de obra temporária e deixando, como legado, desmatamento, grilagem de terra, violência, conflito e degradação ambiental. E quais são os interesses de fora que chegarão com a estrada? Em especial, o interesse em invadir os territórios, em extrair madeira ilegalmente e de promover a mineração e exploração de recursos do subsolo.”
Desde a chegada de Lula ao Palácio do Planalto em 2023, o governo Gladson Cameli tirou o pé do acelerador no projeto da rodovia. Após quatro anos de desmonte das políticas ambientais locais de proteção ambiental para favorecer o agronegócio, Cameli passou a se apresentar como uma roupagem de “ecologicamente correto”, para não ser mal visto por Brasília – onde é réu por vários crimes de corrupção.
Todavia, o projeto da conexão rodoviária de Cruzeiro do Sul a Pucallpa parece ser um fantasma a vagar e ainda ameaçar a preservação da maior floresta tropical do mundo: a Floresta Amazônica, e também os direitos das populações tradicionais que nela vivem.
