EXPLORAÇÃO NAS ALDEIAS

Compartilhe

Governo Wilson Lima ‘rifa’ indígenas do Amazonas em projeto de US$ 2,5 bilhões da Potássio Brasil

O governador do Amazonas, Wilson Lima, e seus auxiliares durante anúncio de licença para exploração de potássio em território do povo Mura (Foto: Diego Peres e Mauro Neto / Secom Amazonas)



Povo Mura questiona processo de consulta que empresa alega ter feito, e que foi validado pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), autarquia estadual responsável pelo licenciamento. Funai afirma não ter sido consultada sobre processo, e MPF diz que vai recorrer


Steffanie Schmidt
dos varadouros de Manaus


Sob ‘intensos holofotes’, o governo do Amazonas anunciou nesta segunda-feira, 8, a liberação da licença de instalação para exploração de potássio na área de abrangência do território ocupado pelo povo indígena Mura, no município de Autazes (a 110 quilômetros de Manaus). Dada como certa, a autorização foi emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do próprio governo estadual, responsável pelo licenciamento de outras obras de impacto socioambiental questionadas pelos Ministérios Público Estadual e Federal, como a da exploração de gás e óleo no campo de Azulão, em Silves (a 203 quilômetros de Manaus). 

Em março, o governador do Amazonas, Wilson Lima (União), declarou a possibilidade de liberar a operação ainda no primeiro semestre. A declaração foi feita na presença do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB), durante a 313ª reunião ordinária do Conselho de Administração da Suframa (CAS). 

A segunda instância do TRF-1 já havia derrubado a decisão da Justiça Federal no Amazonas que impedia o licenciamento ambiental para exploração do minério pela Potássio do Brasil. Nessa mesma época,  funcionários da Potássio do Brasil já vinham realizando obras dentro do território indígena, à revelia dos mesmos, conforme denúncia feita pela comunidade do Lago do Soares, principal alvo da exploração de potássio.

Nesta segunda-feira, pelo menos sete representações indígenas emitiram Notas de Repúdio contra a liberação da licença de instalação para exploração de potássio na área de abrangência do território indígena: Aldeia Murutinga Tracajá; Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV); Aldeia Ponta das Pedras – Terra Indígena Guapenú; Aldeia Moyray – Terra Indígena Guapenú; Comunidade Indígena Lago Soares; Aldeia Paracuuba; e Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). Todas foram enviadas ao conhecimento do MPF, que confirmou o recebimento das mesmas. 

Em nota, o Ministério Público Federal (MPF) informou que “considera irregular a licença concedida pelo Governo do Amazonas por meio do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) à empresa Potássio do Brasil para exploração de potássio na região de Autazes(AM) e irá adotar as medidas cabíveis. Para o MPF a licença viola direitos constitucionais, normas internacionais e também direitos dos povos indígenas”.

“Seguimos na luta por nossos direitos. Queremos que faça valer o que tá Constituição Federal de 1988 sobre os nossos direitos. Queremos também ser ouvidos, ser consultados. Vamos fazer nossas manifestações sim, mas pedimos que sejam vistas com a atenção que merecem”, afirmou Gabriel Mura, Tuxaua da Aldeia Soares, em entrevista ao Varadouro.  




Violações, desrespeito e crimes

Todas as manifestações emitidas pelos indígenas após o anúncio do governo do Amazonas, alegam não terem sido consultadas sobre o empreendimento, o que viola o direito à consulta livre, prévia e informada estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5.051, de 19/04/2004 e consolidada pelo Decreto 10.088, de 05/11/2019. O Brasil é um dos signatários da Convenção 169.

As bases questionam ainda o coordenador do Conselho Indígena Mura (CIM), Kleber Mura, presente no evento do governo do estado e do qual discordam quanto à liberação da exploração do potássio em terras indígenas. 

“Nosso protocolo de consulta foi violentado. Alguns indígenas corruptos, por assim dizer, fizeram atas falsas, pegaram assinaturas sem informar do que se tratava. Como nosso protocolo é dividido por região, eles fizeram reuniões separadas e pegaram assinaturas dizendo que já era a consulta. Falsificaram atas, e a nossa principal região atingida, a aldeia Soares, não foi consultada, não fomos convidados para reunião alguma, como aldeia”, afirmou ao Varadouro um indígena Mura que pediu para não ter o nome revelado. 

“Estão usando de má fé ao dizer que nosso povo foi consultado. O pessoal da aldeia fica desesperado, achando que já vai acontecer. Que eu saiba, nem um passo do nosso protocolo foi cumprido. Isso é uma baita de uma mentira”, completou.  

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) lembrou, em nota de repúdio, que a permissão para instalação vem sendo “conjecturada há pelo menos uma década, marcada por intensa incidência contrária dos povos indígenas em razão dos impactos sobre as aldeias Soares e Urucurituba”.

“Entendemos que tal autorização é retrocesso à medida que já tem causado danos irreparáveis ao território e ao Povo Mura. As comunidades locais, mesmo antes da implementação desse projeto, já vêm sendo impactadas psicologicamente e socialmente, especialmente nesse momento pelo assédio às comunidades como estratégia para aceitarem a implantação do empreendimento.” 

Em outubro, o Varadouro denunciou disputa de narrativa, pressão psicológica e ameaças na guerra pela exploração mineral na região, como tática de divisão dos povos indígenas e da opinião pública. 

Apesar disso, o chefe do Executivo estadual, Wilson Lima, afirmou, durante o evento de entrega da licença ambiental à Potássio do Brasil, “que o empreendimento promoverá qualidade de vida para a população da região, como os indígenas do povo Mura”.  

Em novembro, a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), coletivo de entidades baseado em Manaus, denunciou em carta aberta a situação de  pressão e assédio ao Povo Mura, feito pelo presidente da Potássio do Brasil e por políticos amazonenses, classificados como “agenciadores do interesse particular dos mineradores”.

“O estado é totalmente contra [a demarcação]. Vão acabar com a Bacia Leiteira de Autazes e definitivamente com a possibilidade da exploração do potássio e de uma área que a gente não tem conhecimento de população tradicionais indígenas”, declarou o governador Wilson Lima, em junho de 2023, durante a 1ª Assembleia Geral dos Governadores da Amazônia Legal, em Cuiabá. Dias antes, o líder do executivo estadual havia recebido  o presidente da empresa Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, na sede do Governo, em Manaus.

O interesse do capital é claro: hoje, 95% do potássio consumido no Brasil, principalmente pela indústria de alimentos, é importado. Sozinho, o depósito de Autazes é capaz de suprir, nos próximos 23 anos, cerca de 20% do potássio que o Brasil necessita anualmente, segundo dados da empresa.

Na região, o Potássio é encontrado a 800 metros de profundidade. A fase de implantação e construção do projeto Potássio Autazes tem previsão de quatro anos e meio e a empresa estima a geração de 2,6 mil vagas de emprego diretos na fase de implantação e diversos indiretos. Na fase de operação, afirmam que serão criados 1,6 mil postos de trabalho diretos e cerca de 16 mil indiretos. 

Varadouro entrou em contato, por meio de e-mail, com a empresa Potássio do Brasil, o Governo do Amazonas e a autarquia responsável pelo licenciamento, Ipaam, mas não teve retorno até o momento.  


Contexto 

Historicamente, o município de Autazes é reconhecido como uma região habitada pelos indígenas Mura. A informação, de domínio público, consta no site do IBGE. Mas a história vem sendo reescrita pelo capital que avança sobre o território amazônico: o agronegócio. O município está situado entre os rios Madeira, Amazonas, Solimões e Baixo Purus,  

Do total de 41 mil habitantes, mais de 10 mil são compostos por pessoas com ocupação em estabelecimentos agropecuários, segundo o IBGE. Deste total, 8,4 mil possuem laços de parentesco com o produtor. O dado disponível é do censo agropecuário de 2017. 

Já nessa época, o número de cabeças de gado (42,8 mil) era maior do que de habitantes. Hoje, a população do município é de 41.564 pessoas, segundo dados de 2022 e o número de cabeças de gado ultrapassa os 76 mil, segundo a Secretaria Municipal de Produção Rural de Autazes. 

Autazes hoje é conhecido como a ‘Terra do Leite’, processo que vem se intensificando desde a  década de 1950, quando algumas famílias começaram a criação de gado para investir na produção de leite na região.   A produção de leite chega a 50 mil litros/dia, em média, número considerado o dobro da média nacional (25.508 litros em 2021), de acordo com o portal sobre lácteos MilkPoint, com base nos dados da Associação dos Produtores de Queijo de Autazes (Aproqueijo). 

A TI Soares/Urucurituba é reivindicada pelo povo Mura há pelo menos duas décadas. O território ainda não é demarcado,  o que motiva o aumento da pressão do poder político e econômico em cima das riquezas minerais identificadas na região. As disputas levaram os indígenas a “autodemarcarem” a região, em 2018, processo em que autodelimitam o território por meio de trilhas e sinalizações monitoradas por grupos de indígenas organizados para a proteção do território contra invasores. 

No dia 3 de agosto de 2023 foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Portaria n° 741 da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que instituiu um Grupo Técnico (GT) para realização dos estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica necessários à identificação e delimitação dessa terra indígena, informou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em nota enviada ao Varadouro

A portaria determina o deslocamento do GT e estabelece 30 dias para os trabalhos de campo. O mesmo ato normativo estabelece o prazo de 180 dias para entrega do relatório, a contar do retorno do coordenador dos estudos. Considerando a precedência da reivindicação do povo Mura, e o que prevê a Constituição e o Decreto 1.775/96, que trata da demarcação de terras indígenas, os direitos territoriais desse povo devem ser respeitados, segundo o MPI.

“No anúncio da criação ainda vieram em dezembro do ano passado para saber se era demarcação que queríamos. Aí falaram que voltariam em janeiro, depois passou para março e agora dizem que vêm em maio. Estamos na espera… e na expectativa que realmente aconteça,  que não mude nada depois do acontecido de ontem”, afirma o tuxaua Filipe Gabriel. 

A Funai afirmou, em nota enviada à reportagem que o próximo passo do GT será a elaboração de um Plano de Estudos, instrumento que tem por objetivo reunir informações sobre o histórico do procedimento, a indicação das ações que serão realizadas, bem como de metodologias e prazos. “A partir da consolidação do Plano de Estudos é que se dará a pactuação entre o GT e a Funai, por meio da Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação (CGID), para dar curso ao procedimento demarcatório”.

O órgão indigenista esclareceu, ainda, que não é órgão licenciador, mas sim órgão interveniente em procedimentos de licenciamento ambiental, em todas as esferas de governo: federal, estadual e municipal. “Ou seja, quando um determinado empreendimento tem o potencial de causar impactos socioambientais sobre povos ou terras indígenas, a Funai realiza o acompanhamento de todo o processo a fim de assegurar os direitos indígenas, inclusive fazendo recomendações aos órgãos licenciadores.”

Assim, conforme determina a Lei nº 13.140/2015, caso existam controvérsias jurídicas envolvendo a administração direta e indireta da União, impõe-se a submissão do feito para a Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal.

No caso citado, a submissão do processo judicial para a Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal objetiva esclarecer sobre a existência de tal controvérsia. Após manifestação dos órgãos e entidades interessados, caso constatado o conflito, busca-se a adoção de medidas de autocomposição.

Na ação judicial em curso sobre o caso desde 2016, ingressada pelo Ministério Público Federal, documentos históricos comprovam que a terra indígena Soares/Urucurituba é uma área ocupada pelo povo Mura ao menos desde o século 19, segundo os registros disponíveis que apontam um indígena que participou da Cabanagem, primeira revolta popular do Norte brasileiro, como um dos fundadores.  

Pela tradição navegante, os Mura registraram ampla mobilidade territorial dentro do Amazonas historicamente, baseando a ocupação ao longo de lagos e igarapés Têm como cultura a manutenção de atividades de subsistência. Falavam originalmente a língua mura, mas depois migraram para o nheengatu (língua geral amazônica) e para o português.

“O processo tá num momento em que não anda e com isso a empresa vem desrespeitando nosso território, invadindo, ameaçando. Precisamos que os órgãos que dizem nos representar se manifestem”. Os documentos assinados pelas aldeias do povo Mura praticamente pedem por socorro.

LEIA TAMBÉM:

Direitos de povos indígenas são violados para se avançar com projetos de mineração e grandes obras

Justiça acolhe ação emergencial do MPF e de lideranças Mura, e suspende licenciamento da Potássio do Brasil em Autazes

Logomarca

Deixe seu comentário

VEJA MAIS

banner-728x90-anuncie